Tristes sádicos (?)

Réplica de Paulo Sandrini à crítica de Luiz Paulo Faccioli, instrutor da Tica (The International Cat Association) e resenhista *
Paulo Sandrini, autor de “Códice d’incríveis objetos & histórias de lebensraum”
01/03/2006

Queria começar dizendo: meu caro Luiz Paulo; porém, estou impedido. Quem leu sua resenha sobre o meu Códice d’incríveis objetos na edição de fevereiro de 2006 deste Rascunho deve saber o motivo.

Já de início, quero dizer que não sou contra posicionamentos críticos negativos em relação ao meu trabalho literário. Reafirmo: críticos; descartando aqui qualquer tipo de histeria ou chilique. Quanto à neurastenia, só posso mesmo é lamentar o despreparo que essa por vezes causa a quem reivindica o título de resenhista crítico de literatura. E o diagnóstico de neurastenia me parece cair como uma luva para o seu caso, Luiz Paulo.

De início, sua indignação em relação ao meu novo livro chegou quase a me assustar (digo quase, porque hoje a literatura é algo, infelizmente, quase irrelevante em nossa sociedade e não há, por isso mesmo, motivo para medrarmos diante de algumas críticas, em sua maioria pouco lidas — geridas e digeridas por grupelhos que fazem das Letras seu lebensraum de portas cerradas —, por isso mesmo inócuas). Fora a indignação demonstrada, temos como agravante (e aqui me parece tanto pior) a generalização que — por mais que você queira prevenir (induzir) o leitor de que não a comete — tendenciosamente visa, sim, comprometer todo um trabalho; isso assusta um pouquinho mais, só um pouquinho, confesso.

Acho mesmo um direito mais que seu, Luiz Paulo, fazer críticas e restrições. No entanto, só acho desonesto pegar alguns pontos (feito um intrépido caçador de pêlo em ovo) e fazer disso algo tonitruante (talvez aqui seja necessário ir ao seu eletrônico Houaiss para verificar o significado de tal palavra, ou não — aí depende do seu domínio lexical). O que não acho uma atitude responsável (principalmente por parte de quem se dá ao direito de exercer a crítica) é pegar falhas possivelmente encontradas em várias outras obras ou com a mesma “gravidade” que você acusou na minha (seja por “descuido” do autor, do revisor e o diabo a quatro) e, a partir daí, repito, querer invalidar todo um trabalho, que você mesmo dá a entender não ter lido por inteiro (pegando um conto aqui, outro ali: aleatoriamente).

Generalizar é algo fácil e cômodo de se fazer, não requer a busca necessária de um repertório adequado ou fundamentações mais sérias para um aprofundamento de análise. E, por esse mesmo motivo, generalizar não passa de um ato covarde. Talvez você, Luiz Paulo, tenha mesmo encontrado outras falhas durante sua atenciosa leitura; agora, colocar tudo que ali está escrito como problemático, gritando ao mundo que o trabalho é pura imperfeição é, sim, uma atitude bastante questionável. Fazer execração em praça pública, transformando um livro em algo abjeto sem ter analisado seu lado ideológico, ético ou o que há de humano nele (e a falta desse olhar é que faz com que sua crítica se torne rasa e neurastênica — consegui até ver você como um daqueles personagens de desenho animado, esperneando e gritando, “Não pode, não pode! Capturem esse Sandrini, vivo ou morto!”) é, ao meu ver, um ato alienado.

E, veja, apesar de eu estar aqui lhe dando minha atenção (e de certo modo passando um recibo para a sua crítica), não acho, mesmo, que esse seu posicionamento irá mudar o rumo da minha produção. Caso seu tecido crítico fosse menos ríspido, menos exacerbado, sem chiliques e sem expelir regras tolas para o fazer literário (onde eu encontro um manual do que pode e do que não pode em literatura?), eu digo que me seria de grande proveito enquanto autor que inicia recentemente sua produção. Porém, a crítica construtiva, essa é uma dádiva daqueles a quem podemos chamar de mestres. Acho que você pecou não pelos apontamentos, mas pela falta de elegância. Refinamento crítico, é o que quero dizer.

Sendo-se minimamente perceptivo, não se faz necessário buscar no seu subtexto uma alta dose de má-fé; está ali, tudo estampado, de modo bem claro.

Reviravolta boba
Outra atitude covarde e pródiga em falta de honestidade, visando confundir o leitor mais desatento, é a de querer cambiar seu posicionamento de crítico para uma posição de simples leitor que se dá a partir de “uma experiência de leitura” (contudo, sabemos que os modos de ler mudam razoavelmente nas duas experiências). Então, você vai buscar no texto em primeira pessoa a abertura possível para mostrar toda sua irritaçãozinha e toda a sua subjetividade; engraçado é precisar dessa reviravolta boba para simplesmente lascar a lenha no livro. Você, em vez de se pôr realmente no papel de especialista(?), simplesmente se põe no papel de leigo (simples leitor), ferido em sua inteligência altamente sensível e com necessidade de gritar contra autores pouco literários como eu.

Como já disse antes, e reitero, exercer a crítica é um ato que requer responsabilidade; e acrescento: um bom filtro ético. Portanto, Luiz, não é preciso cambiar (meio que dissimuladamente) um papel que você está reivindicando, o de crítico, para um outro, o de leigo (simples leitor); assuma de uma vez o que você reivindica, é mais digno e respeitável.

Quanto a outros problemas, por exemplo: o subtexto ausente na obra — uma obra em que, na sua opinião indúctil, pão é pão e queijo é queijo —, caso você não tenha percebido o livro se constrói, muitas vezes, com alegorias, daí a pergunta: como podem as alegorias e o absurdo e o fantástico que muitas vezes elas engendram ser algo assim tão direto e reto? É da natureza desses recursos a objetividade? Contudo, se por algum motivo o leitor se sente excluído, pula mesmo é fora, não só por ausência de subtexto, mas por desestímulos de outras ordens presentes no texto. Você mesmo diz que o livro flui, que não dificulta a leitura, porém se esquece de salientar que o ritmo, a trato com a temática e a imagética podem também estimular e fazer pensar o leitor, não apenas o subtexto. Por outro lado, será que toda literatura deve ser feita somente de pontas de iceberg? Ou temos outros recursos para tirar o direto e reto do texto, tais como a ironia (essa quase você pescou, quase), a paródia e o humor que conferem também à ficção as ambigüidades necessárias para extirpá-la do terreno da simples objetividade? Todavia, Luiz Paulo, você talvez não carregue em sua sensibilidade carrancuda a propensão ao riso.

Aqui, cabe outra pergunta: será que algum dia alguma obra de ficção resultou numa única leitura (fechada, pronta) para todos os seus receptores? Já uma obra que dá tudo de bandeja, como a minha, talvez consiga. Eis um fato histórico para a literatura. Um brinde, amigos!

O subtexto que você tanto reivindica inapelavelmente me remete não só ao conceito de vazio, mas também ao de programação do texto, conceitos esses que a gente encontra lá na chatinha Estética da Recepção. O subtexto e o vazio não seriam uma espécie de programação que o autor coloca no texto para que a mensagem se complete no leitor? Sim. Porém, isso depende do repertório do leitor para que a comunicação se conclua. Certo? Certo. Mas há também outras formas de programação que não necessariamente ficam no subtexto, sim? Antes de uma resposta afirmativa, vamos ver se a minha pergunta procede. Para o trecho em que você pergunta o que significa a expressão mundo crasso (assim mesmo, em itálico), dou uma dica: A divina comédia, de Dante, Cantos do inferno (tive infelizmente de estragar o jogo da minha própria ficção por conta da cegueira do resenhista; perdoe-me o leitor). O itálico está ali para indicar justamente alguma referência (talvez a única que trago diretamente, no livro todo, de outra obra literária), há ali uma programação que, esperava eu, concluísse seu sentido a partir do repertório de quem lê. No entanto, no seu caso, o resultado foi: leitura frustrada, o autor programou, o repertório do leitor falhou. Paciência, acontece com os melhores leitores. Respondendo então à última pergunta por mim colocada: certo! há outras formas de deixar que o texto provoque a participação do leitor e gere outros sentidos. A referência pode ser uma delas, pois. Desculpem o didatismo, mas viu, Luiz Paulo, como nem tudo precisa ser subtexto para que o leitor seja instigado. Aqui é um exemplo mínimo que lhe dou.

Ético e estético
Outro ponto frágil na sua leitura crítica é o fato de você demonstrar uma inexaurível inclinação para microquestões estéticas. Você me lembrou mesmo os velhos formalistas: tudo se dá na forma. Estética acima de tudo. (Por onde você andou nas últimas décadas, Luiz?). E onde ficam ética ou ideologia? Ou não se precisa mais disso para escrever? Literatura se faz tomando vinho importado em frente a uma lareira em dias de inverno, esperando por um prato francês? Ou dentro de um apartamento aconchegante, onde ficamos alisando os pêlos de um Sagrado da Birmânia enquanto temos insights? Ou ainda: dentro de um bureau de novos burocratas/escravos da pura estética é que se pensa literatura?

Ao que me parece, Luiz Paulo, suas idéias não fazem questionamentos de outra ordem além dos meramente estéticos. Um outro lado, sim, é que eu gostaria de ver em sua resenha, mesmo que fosse para levar outra surra em praça pública. Queria ver nas suas condenatórias linhas o ético e o estético de mãos dadas; pois sem esses dois irmãos, acho qualquer tipo de abordagem carente de profundidade, portanto eu mesmo me dou o direito de invalidar o que você diz a respeito do meu livro. Para mim, não serve. Sua visão de mundo é limitada.

No mais, quando se acusa alguém de desatenção na escrita temos de tomar todo o cuidado com aquilo que nós mesmos escrevemos a respeito dessa desatenção alheia para também não sermos pegos. Até quando lemos um colofão (aquilo que na sua resenha você trata por “última página” do livro —; chamemos aqui novamente o Houaiss eletrônico), é necessário não se equivocar. O papel do livro, do miolo, que tanto agradou ao seu delicado tato, chama-se chamois dunas e não luna, como você grafou. Viu como procurando a gente acha pequenas falhas num texto? Ao meu ver ela nem é grave. Mas pode passar a ser se o assunto é abordado por um leitor especializado como você. Aqui, mais uma pergunta: como você me cobra subtexto (esse não dar tudo de bandeja) se você demonstrou baixo grau de apreensão até quando o texto é objetivo, como no caso do colofão?

Outra falha boba, boba mesmo, é você dizer que o livro tem várias ilustrações dentro, são apenas duas. Para que sejam várias, há aí uma boa distância. Só assinalei esse seu equívoco com os números, Luiz Paulo, porque o acho importante para salientar o fato de que você realmente mal folheou o livro para resenhá-lo. (Aqui peço desculpa ao leitor por ter de entrar no terreno da mais medíocre matemática para mostrar a desatenção do resenhista).

Sinto-me ainda no direito de lhe dizer um pouco mais: melhor seria ter começado sua crítica logo pelo segundo parágrafo, já batendo, sem rodeios. No primeiro parágrafo você fala mais de sua própria figura do que de qualquer outra coisa; ou será que foi enchimento de lingüiça por ter pouco a dizer, Luiz? Já a gravata da sua resenha que diz que Sandrini “fica indeciso entre dois estilos — o culto e o coloquial — e se perde pelo caminho” é um baita lugar-comum. Já vi esse perder-se pelo caminho mais de uma dúzia de vezes saindo da cuca de resenhistas desprovidos de base conceitual ou teórica que os ampare para além de tal mesmice.

Bem, resenhista Faccioli, reafirmo aqui o seu direito à crítica, total, faça o que bem entender dele. No entanto, você pode ser um tanto mais instigante. Menos figadal. E bem poderíamos, Luiz (algoz dos pouco literários), debater sobre outras falhas, ora filhas minhas; ora, filhas suas. No entanto, deixo aqui um simples pedido com a finalidade de evitar certas barbáries: menos impressionismo, menos exasperação, um pouco mais de estudo crítico e as referências por vezes necessárias e indispensáveis.

Continuo, apesar dos trejeitos afetados da resenha sobre o Códice, achando o Rascunho um veículo importante. Reconheço-o ainda como um pródigo espaço para o debate; por isso, Luiz Paulo, generalizações e covardia só fazem com que toda e qualquer credibilidade vá por água abaixo, nem é preciso dizer. Mas isso não é problema meu.

Fechando: quando você fala em tristeza após escrever sua resenha sobre meu livro, lhe digo que tristeza é um sentimento nobre que os sádicos desconhecem. Se você não usou de sadismo, no mínimo chegou bem perto disso.

PS: não posso me esquecer de lhe dar os parabéns por uma coisa: o fato de que nessa resenha sobre o Códice (livro que chacoalhou sua poltrona, para o bem ou para o mal) você demonstrou alguma dose de inconformismo, algo que, talvez, nunca tenha acontecido antes, nas suas outras trinta e tantas bovinas resenhas.

* A gravata do texto de Luiz Paulo Faccioli é de responsabilidade do editor Rogério Pereira.

Paulo Sandrini

É autor de Códice d’incríveis objetos & histórias de lebensraum e mestrando em Estudos literários (UFPR).

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