Indúctil. Eis aí um atributo que, se alguma vez me serviu como resenhista, a partir de agora já não serve mais. Senão, vejamos. Esta é a trigésima quarta resenha que assino para o Rascunho. Não é obviamente um número assim tão expressivo, tampouco redondo para que ele sugira algum tipo de comemoração. O turning-point íntimo é que hoje escrevo rompendo de um só golpe com dois de meus princípios mais caros. Um deles: nas trinta e três resenhas anteriores, preferi sempre a terceira pessoa. Houve apenas uma meia exceção, quando comentei um livro que traz um narrador mentiroso e criei de galhofa um falso resenhista que se intrometia no trabalho do verdadeiro a bordo de um “eu” opiniático. Pode parecer bobagem essa preocupação, mas ela expressa meu respeito pelos livros e autores que tenho tido o privilégio de comentar. Algo como usar a senhoria, hábito cada vez mais restrito por conta do bom argumento de que respeito nada tem a ver com formalidade, e vice-versa (basta assistir a dois parlamentares trocando amabilidades no plenário). Portanto, apenas para fugir do tal adjetivo aí em cima, a inovação já seria legítima sem causar maiores transtornos, ou seja, sem comprometer o exigido respeito à obra e a seu criador. Mas existe um motivo mais sólido para a mudança e ele está relacionado com a quebra do outro princípio, sobre o qual falarei logo mais. Por enquanto, posso adiantar apenas que a intenção é relatar a intimidade de uma experiência de leitura, e para isso a primeira pessoa cai como luva.
“Indúctil.” Assim começa a primeira das treze narrativas de Códice d’íncríveis objetos & Histórias de Lebensraum, de Paulo Sandrini, terceira coletânea do paulista radicado em Curitiba e que vem no formato dois em um, opção nada original mas ainda freqüente por diversas razões; aqui, para dar carona no mesmo volume a um livro pequeno, o Histórias…, cuja publicação individual talvez não fosse comercialmente viável. Antes de conhecer o texto de um escritor para mim ainda inédito, segui o ritual de sempre. Comecei provando a incrível maciez do papel da capa — supremo 250g com laminação fosca, esclarece a última página —, depois prestando atenção aos detalhes todos do belo projeto editorial assinado pelo próprio Sandrini, que também é designer gráfico, desde a interessante e colorida figura da capa até as fontes das letras, passando pelo papel chamois luna do miolo, as várias ilustrações de Guilherme Zamoner e a epígrafe com a célebre frase do pintor Francisco de Goya: “los sueños de la razón engendran monstruos”. Confesso ter aspirado, como de hábito, seu cheiro inigualável de livro novo. Li a contracapa e encontrei um trecho enigmático e bem escolhido. Li a orelha assinada por Marcelo Benvenutti, que teve a divertida idéia de dividir o texto em duas partes, Esquerda e Direita, pondo cada qual no respectivo lado. Até agora, o bom gosto só fez aguçar a curiosidade. Li o bizarro prefácio assinado pelo autor, sob o título de Codice degli oggetti incredibili, explicando a origem do primeiro livro: um manuscrito trazido de Itália pelo bisavô dos Sandrini, depois perdido e resgatado parcialmente pela memória da família, e que continha as histórias mirabolantes sobre as quais se baseiam agora seus cinco contos. Tudo corria às mil maravilhas.
“Indúctil. Eu sempre fora um sujeito assim.” Depois do arcaísmo no título e da abertura com uma palavra pouco ou nada usual no português contemporâneo, surge uma construção no pretérito mais-que-perfeito. “O Papa morrera” foi o que me veio à cabeça, lembrança boa de um início famoso dentre as minhas leituras adolescentes. “Um inflexível incurável (…) uma soberba inexaurível distinguia, inapelavelmente, a minha personalidade.” Estava clara a predileção de Sandrini pelos adjetivos e advérbios, mas talvez a recorrência do prefixo “in” tenha sido mero descuido… “Manifestava sempre minhas ilações sobre os mais variados assuntos e opiniões sobre as mais insignes personalidades com a máxima acuidade em minhas declarações a respeito delas (…) tal compilação causaria um furor indelével nos indivíduos assestados (…) mais dinheiro nos nossos coadunados bolsos…” Minha nossa! Não tinha chegado ainda ao fim do primeiro parágrafo, e esse desfile de termos esnobes sugeria que talvez fosse bom deixar à mão o dicionário. O que estaria ainda por vir? Procurei com os olhos o velho Aurelião, já aposentado pela versão eletrônica do Houaiss, imaginando que ele exultaria em voltar à ativa. “Essas enchidas de bola no meu ego, é preciso dizer, corroboravam meu comportamento individualista insensato megalomaníaco e de senhor de todas as verdades.” Nesse ponto comecei a me preocupar. Que o narrador apresentasse um discurso empolado, talvez como elemento de caracterização, ainda seria aceitável. Mas “enchida de bola no ego”, além de destoar do resto, é medonho e, por isso mesmo, nem um pouco literário.
Segui pelo conto O capacete da imortalidade, esbarrando ora em vocábulos cultos e construções pomposas — “do sólio em que acomodava meu adiposo traseiro como sumo pontífice regional da religião do capital” —, ora em soluções coloquiais — “estou de fuça pro chão molhado” — e em algumas passagens de gosto mais do que duvidoso — “mas que lhes beijei os rostos e pedi-lhes perdão umas mil vezes, ah, isso eu fiz.”. Talvez a pretensão tenha sido a ironia; nesse caso, o autor pecou pelo excesso. A história é absurda, mas isso por si só não quer dizer rigorosamente nada, nem a favor nem contra. Um empresário bem-sucedido e com inclinação nazista sofre um atropelamento ao tentar fugir de um assalto, fica em coma por dois meses e, ao sair dele, resolve promover uma radical mudança em sua vida. Um de seus novos objetivos é uma longa viagem de motocicleta, e para isso precisa de um capacete adequado à vulnerabilidade craniana que ele imagina ter adquirido. Encontra então o objeto referido no título, sofre um novo acidente, a cabeça permanece viva depois de ter sido brutalmente apartada do corpo. Nova mudança, ele se torna escritor e ganha o Nobel. Acaba perseguido pelos árabes por ter permitido a tradução de sua obra para o hebraico, no afã de se transformar em best seller também no mundo judeu. Haja tragédia para tanta mudança.
“A literatura não é feita de idéias, mas sim de palavras.” O conselho de Flaubert ao amigo Degas (narrei o episódio na resenha do mês passado) foi a primeira coisa que me veio à lembrança ao terminar o conto, frustrado. Mais que isso: profundamente irritado. Não era possível que a boa expectativa tivesse acabado dessa forma: uma historieta ridícula e mal narrada. Aliás, ela só se torna ridícula na medida em que não é bem contada, ou alguém se atreve a qualificar de ridículo o argumento da Metamorfose de Kafka?
Faltavam doze contos, e decidi que não iria perder mais meu tempo com eles. Acalmado o primeiro impulso e tentando ser justo, dei ao livro uma segunda chance: escolhi outros três de forma aleatória. Infelizmente, a má impressão persistiu. Resolvi então desistir da empreitada. Não via sentido algum em assinar uma resenha de todo negativa, mesmo com o pressuposto que seria apenas uma opinião e, como tal, sujeita a réplicas, tréplicas e toda sorte de discordância. Sempre defendi o silêncio como a crítica mais contundente. Entretanto, minha intenção durou apenas três dias, o tempo de descobrir na internet um artigo bastante elogioso ao Códice… que me fez atinar que, se alguém conseguira encontrar beleza numa obra que tanto me desagradava, o contraditório precisava ser dito. Foi como decidi romper com outro princípio e retornar ao trabalho, garantindo a mim mesmo uma espécie de benefício da dúvida. Certa feita uma leitora do Rascunho escreveu comentando que talvez eu tivesse lido de cabeça para baixo determinado livro, obviamente por não ter concordado com minha opinião sobre ele. Quem sabe tenha acontecido algo semelhante com a leitura do Códice…? Aceito, de bom grado, qualquer contraponto. Estou apenas pondo minhas cartas na mesa. O leitor que decida.
A indecisão entre dois estilos, um pendendo ao culto e outro, ao coloquial, é o grande problema da obra no que diz respeito à linguagem. Pior: muda o narrador, mas o registro permanece inalterado. Uma rara exceção — e o melhor momento do livro — é o conto Sandálias de Hermes que, se não está livre de alguns tropeços, eles ali são menos comprometedores. Uma boa revisão teria minimizado o impacto de algumas soluções, mas ela também cochilou de forma vergonhosa:
“Dite pela sua pujança atual, ao contrário de outros tempos, já não pode ser considerada um mundo crasso; a metrópole é hoje um lugar de refinamento e muita badalação, seus possíveis embustes culturais não mais devem implicar em ignorâncias e equívocos. Ali, poetas não precisarão mais de poesia para provar talento. Bastará-lhes a classificação: Poeta.” (sic)
Foi necessário um sic geral, tantos são os deslizes encontrados nesse pequeno trecho do conto Em frente aos portões de Dite. Dois deles atentam diretamente contra o vernáculo: “implicar em”, erro de regência bastante comum na língua falada mas inadmissível no texto literário, e “bastará-lhes”, ênclise impossível que chega a causar arrepios — o correto, “bastar-lhes-á”, também dói no ouvido, e a solução teria sido construir a frase de outra maneira. Afinal, é justamente esta a sensibilidade que se espera do escritor, cujo compromisso maior deve ser sempre com a estética. Por outro lado, há expressões pretensamente inteligentes que não conseguem ir além da vacuidade: o que é um “mundo crasso” ou um “possível embuste cultural”? Existe uma boa razão para se flexione no plural o substantivo abstrato “ignorância”? Talvez as respostas estejam na penúltima frase: no exótico mundo idealizado por Sandrini, “poetas não precisarão mais de poesia para provar talento”, e ele ainda insiste na sucessão de “p”, a mostrar que o futuro já está aí, fora dos limites de Dite.
Fica evidente, desde o começo, que a grande preocupação de Sandrini é com a história propriamente dita, e ele se restringe a contá-la quase sempre de forma linear, na ordem exata em que os episódios vão surgindo em sua mente de ilimitado poder imaginativo. Vem daí a preferência pela narração no presente. E também um aspecto positivo da obra: os contos todos são vencidos com facilidade, não há desvios nem sobressaltos que não sejam os intrínsecos à própria maluquice dos enredos, o discurso não sai nunca dos trilhos. Mas o mérito logo se transforma em vício. Preocupado em contar, Sandrini apenas conta. Nada sugere mas revela tudo. Não constrói um único personagem de carne e osso nem explora suas contradições. Tampouco se interessa por ambigüidades: tudo é sempre pão, pão, queijo, queijo. E, maior entre os maiores pecados, não dá a mínima ao subtexto. Se o personagem é, como ele mesmo diz, indúctil, limita-se a qualificá-lo como tal e não acha necessário descrever uma única cena em que o leitor possa enxergar por ele mesmo essa característica tão importante que, sozinha, é chamada a abrir o conto. Sem ânimo ou paciência para criar o subtexto, Sandrini vale-se de todos os adjetivos e advérbios que encontra, poluindo a narrativa com uma retórica fátua e afastando perigosamente a participação do leitor, algo que o verdadeiro artista sabe que jamais pode se dar ao luxo de dispensar.
Prevejo me acusarem de ter iluminado apenas defeitos pontuais e, através deles, tentado desmerecer todo o conjunto. Não é verdade. Se os exemplos escolhidos se referissem a situações eventuais, juro que eu seria o primeiro a ignorá-los. Infelizmente eles são apenas uma pequena amostra.
Alheio a todos esses comentários, o Códice… permanece ao meu lado, onde sempre deixo o livro sobre o qual esteja escrevendo. Continuo olhando com carinho para ele: a belíssima capa, a ilustração, as cores, a maciez do papel, o cheiro de livro novinho… Como eu queria estar enganado sobre tudo o que falei.
Talvez ninguém acredite, mas esta resenha me entristeceu.