Três mergulhos no Peixe solúvel

Passeio de inspeção pelas exíguas 75 páginas desse oceano sem fundo inundado por André Breton
01/02/2004

Segundo mergulho

O sonho e as demais experiências e conceitos a ele agregados

As experiências com a escrita automática, cujos primeiros resultados datam de 1919, foram o início da exploração do estranho domínio cuja existência os surrealistas já intuíam a partir da leitura de Freud. O primeiro livro a nascer com a ajuda desse expediente foi Os campos magnéticos, resultado da ação conjunta entre Breton e Soupault. A partir daí, o grupo passou a pesquisar outras técnicas que pudessem libertar a mente das amarras do raciocínio lógico: alucinações autoprovocadas, sessões de sono hipnótico, rituais mágicos e certas práticas do espiritismo. “Aos textos automáticos e aos discursos falados em estado de sono vinham acrescentar-se os relatos de sonhos: sonhos noturnos, sonhos diurnos, imediatamente expressos, por Desnos, por exemplo, que não tinha nenhuma necessidade de adormecer para começar a narrar seus sonhos à vontade” (História do surrealismo, de Maurice Nadeau, p. 51).

O fato de o Peixe solúvel ter sido estruturado com as ferramentas da escrita automática aproxima essa novela do universo do sonho e, por conseguinte, da noite. Tudo aqui faz e não faz sentido, cada fresta esconde e revela os escorpiões que a lua renegou, cada sombra é o contorno genuíno dos impulsos ancestrais que o lampião de rua esforça-se para iluminar. Paridas pelas regras da livre associação de formas e idéias as pessoas e as coisas mudam de identidade o tempo todo, desmembrando-se e se misturando umas com as outras. Ao estudar as manifestações oníricas, Freud analisou tais metamorfoses e as comentou no clássico A interpretação dos sonhos, nos capítulos reservados às distorções, às condensações e aos deslocamentos provocados pelo mecanismo psíquico. As alucinações da noite arcaica projetam-se sobre a superfície côncava do inconsciente, posicionada bem em frente à superfície convexa que já nos acostumamos a chamar de realidade. Esse duplo jogo de espelhos tão presente nos poemas surrealistas e no Peixe solúvel é o que, na opinião de Freud e de Breton, ocorre entre os fatos da realidade e seus reflexos oníricos, sempre distorcidos, condensados, deslocados para além da ilusão de causalidade da consciência cartesiana.

O humor negro
O humor negro, presente nas intervenções dadaístas e, depois, na literatura e na pintura surrealistas da década de 20, surge mais da intuição e da experimentação do que propriamente dos programas fixados no Manifesto do surrealismo e nos demais textos doutrinários da época. Como aconteceu com o acaso objetivo, é apenas na década seguinte que sua teorização será levada a cabo. “Pois, se o humor negro não esperou o surrealismo para existir (embora a este se deva a denominação), se o surrealismo não esperou os anos 30 para dele se impregnar como de um estado de espírito, a sua denominação data claramente desses anos pré-guerra. Através dos textos de Breton de 1935 (Situação surrealista do objeto), de 1937 (Limites non frontières du surrealisme), de 1938 (Dictionnaire abrégé du surréalisme, com a colaboração de Paul Eluard) e finalmente do prefácio da Antologia do humor negro (1940, publicação adiada pela censura), foi elaborada a passagem da noção de humor objetivo herdada de Hegel para a de humor negro, especificamente surrealista. Pode-se dizer em linha gerais que a noção, no seu sentido surrealista, integra à sua definição as implicações assinaladas por Freud — e a tradução d’Os chistes e sua relação com o inconsciente data precisamente, na França, de 1930” (O surrealismo, de Chénieux-Gendron, p. 102).

O adjetivo negro vem do clima geral dos romances góticos, ou roman noir, com seus castelos, fantasmas e feiticeiros medievais, tão ao gosto dos surrealistas. Monk Lewis, Horace Walpole, Ann Radcliffe, Charles Maturin e, é claro, Sade — cujo materialismo lúcido e cuja busca do absoluto no prazer, entre outras preferências, “formam o desenho perfeito do homem tal como os surrealistas o concebiam” (Nadeau, pág. 37) —, são os romancistas de sua predileção. Tida como gênero inferior, a prosa romanesca só adquire valor literário, na opinião de Breton, quando se deixa fecundar pelo fantástico e pelo maravilhoso, e O monge, de Lewis, é citado no Manifesto do surrealismo como modelo a ser reverenciado. “Em Limites non-frontières, publicado alguns anos antes da Antologia, esboça-se o paralelismo entre o romance negro, ‘patognômico da grande perturbação social que se apossa da Europa no fim do século 18’, e o humor destinado, em 1937, ‘a assumir um valor defensivo na época sobrecarregada de ameaças em que vivemos’. O humor negro deve dar resposta às agressões brutais à liberdade humana, assim como o romance chamado negro. Longe de ser a cor do trágico, o negro é finalmente, para Breton, a cor da exaltação: é a cor da bandeira da Anarquia” (Chénieux-Gendron, p. 105). Entre o humor negro e o acaso objetivo há oposição, mas também complementaridade: agindo sincronizadamente, enquanto “o humor corrói a representação do mundo, o acaso ataca a própria realidade” (idem, p. 102).

No Peixe solúvel o humor abre mão da agressividade e parte para a sutileza — não muito excessiva, diga-se —, adquirindo com isso maior consistência, sugerindo por vezes um espetáculo circense conduzido por figuras caricatas e rocambolescas. No capítulo 2, por exemplo, depois de ser apresentado ao senhor Omesmo, à senhora Senhora e aos filhos de ambos, o narrador se sente meio perdido: “Em seguida volto sobre os meus passos e meus passos também voltam, mas não sei exatamente para onde” (p. 72). No capítulo 7, cavaleiros usando não armaduras, mas escafandros, passam o tempo “levando para o fundo das águas as máquinas que deixaram de ser úteis, e também algumas que estavam começando a ser úteis”, pois, como eles mesmos se consideram: “somos criadores de destroços de naufrágios; e não há nada em nosso espírito que possa vir a flutuar outra vez” (p. 83). No capítulo 27, que se inicia como os contos de fada — “Era uma vez um peru sobre um dique” (p. 120) —, temos o caso de um peru meio desajeitado que, “por facécia, tinha o nome de Três-Estrelas”, era obrigado a dividir seu poleiro com uma cartola e, como se não bastasse, tinha que comover o narrador da história, caso não quisesse se meter em encrenca. No capítulo seguinte, temos o depoimento de um motorista que, dirigindo um carro voador, “acabava de incorrer em sua milésima punição por excesso de velocidade” (p. 121). Enquanto sobrevoava Paris, esse motorista imprudente chocou-se com um veículo que vinha na direção contrária, também em alta velocidade. Resultado: “Os dois bólidos, branco e verde, vermelho e preto, fundiram-se terrivelmente e desde então só me reencontro passageiramente, morto ou vivo, pondo minha cabeça a prêmio em grandes cartazes como esse, que prendo em todas as árvores com o punhal do meu coração” (p. 122). No capítulo 31, o próprio Satanás deixa de lado as obrigações infernais para se tornar ator e dramaturgo em Paris:

Senhoras e senhores, a peça que tivemos a honra de representar na vossa presença é minha. (…) O inferno acaba de ser de todo em todo restaurado; ele já não tinha, nos últimos séculos, senão um valor de aplicação: intelectualmente era perfeito mas, do ponto de vista da dor moral, deixava a desejar. (…) Nas fábricas, esforcei-me por encorajar de todas as maneiras a divisão do trabalho, de sorte que hoje em dia para fabricar uma lixa de unhas, por exemplo, são necessárias várias equipes de operários que trabalhem dia e noite, uns deitados de bruços, outros trepados numa escada. (…) A peça a que acabais de assistir é uma dessas lixas de unhas último modelo, para a fabricação das quais tudo concorre em nossos dias, desde o marfim de vossos dentes até a cor do céu, um negro de pervinca, se não me engano. Mas dentro em breve terei a honra de convidar-vos a espetáculos menos racionais, pois não desespero de fazer da eternidade a única poesia fugidia, estais-me a ouvir, a única poesia fugidia! Ha, ha, ha, ha! (Sai escarnecendo.) (p. 130)

Essas e outras situações menores, espalhadas pela novela, atenuam o tom sombrio, por vezes melancólico, das mininarrativas que compõem o Peixe solúvel. E o fazem oferecendo a jocosidade sutil, com toques bizarros, que no futuro, ao organizar a Antologia do humor negro, Breton denominará justamente de humeur noir.

Já o capítulo 12 apresenta mais do que pequenas passagens cômicas, pois todo ele foi votado ao humor. Nele, certo jornal especializado na publicação do resultado de estranhas operações psíquicas envia seu melhor repórter para entrevistar o professor T, “grão-mestre da especulação assassina, com o único objetivo de inteirar-se da opinião do ilustre prático sobre a reforma, há muito projetada, do aparelho da morte”. No laboratório do cientista, alguns pacientes chamam a atenção do repórter, entre eles uma mulher, vítima do “amor compartilhado”, na qual o professor T tentava induzir o que chamava de “despersonalização progressiva”. “Para tanto, todas as manhãs entregavam a essa mulher uma carta supostamente enviada por seu bem-amado, que era a mais bela amostra que se possa imaginar de todas as figuras de pensamento, entre as quais novas variedades particularmente venenosas acabavam de ser aclimatadas. Da mistura inteligente de mentiras insignificantes e dessas flores raras, o experimentador esperava um efeito tão nocivo que a paciente já podia ter-se por morta.” Outro paciente curioso era o menino que aprendia generalidades de cosmografia, química e música, tendo como quadro-negro um jovem padre muito elegante. As aulas o privavam, assim, “de toda possibilidade de abstração, mas não da vontade de abstração”. O capítulo e a história terminam — de maneira trágica para o repórter — com palavras de louvor à curiosidade científica e ao conceito de progresso:

O professor T devia expor seu sistema, no dia seguinte, numa sala completamente vazia cujo teto consistia num único vidro plano; mas, durante a noite, o repórter imaginou dividi-lo em duas partes iguais, que ele dispôs em forma de telhado acima da sala de conferências, e, feito isso, maquilou-se para ficar perfeitamente igual ao cientista e ingressou na sala ao mesmo tempo que ele. Sentou-se ao seu lado, lentamente, e com a ajuda de um raio de sol conseguiu, sem dizer palavra, persuadir o temível inquisidor de que os saltimbancos do fogo solar, tão familiares ao rapazinho do anfiteatro, divertiam-se em desdobrá-lo em pessoa-agente e pessoa-passiva, o que fez com que sentisse grande simpatia por esta última e permitiu que tomasse certas liberdades com o repórter. Infelizmente não se limitou a isso e, como este esboçasse um fraco movimento, em seguida a uma liberdade inadmissível de que fora objeto, o cientista lançou-se sobre ele bruscamente e fez com que entrasse num banho de gesso, onde o mergulhou, esforçando-se por consolidá-lo na magistral atitude de Marat morto, mas de um Marat apunhalado pela curiosidade científica, da qual fez erguer ali ao pé a estátua alegórica e ameaçadora. A investigação não foi levada adiante e o jornal que a promovera contribuiu, mais tarde, para atear o incêndio do progresso. (p. 90)

Também no capítulo 17 há o predomínio do tom debochado sobre o maravilhoso:

Numa esplêndida tarde de setembro dois homens conversavam num parque, sobre o amor, naturalmente, uma vez que se estava em setembro, no fim de um desses dias de poeira que cobre as mulheres de jóias tão minúsculas que suas criadas erram grandemente ao deitá-las janela abaixo, no dia seguinte, servindo-se para despegá-las de um desses instrumentos musicais cujo som me fala tanto ao coração, que chamam escovas. (p. 98)

Segue-se rápida descrição dos tipos de escova, depois o arremate:

Os dois homens, então, passeavam no parque, fumando longos charutos que, embora parcialmente consumidos, ainda mediam um metro e dez e um metro e trinta e cinco, respectivamente. Explicai-o como puderdes, quando eu vos disser que eles os tinham acendido ao mesmo tempo. O mais jovem, aquele cuja cinza era uma mulher loura que ele percebia muito bem ao baixar os olhos e dava mostras de uma exaltação inaudita, dava o braço ao segundo, cuja cinza, uma mulher morena, já caíra. (p. 99)

A loucura
Que é essa criatura multiforme? É a perda da razão aquática? É a alteração da personalidade acadêmica? É o incêndio do bom senso primaveril? Em muitas das culturas antigas, o louco era tido como possuído por uma divindade e por isso digno de todo o respeito. Na Idade Média a loucura era aceita como fato normal da vida cotidiana e também podia ser vista como manifestação de entidades do além. O fantasma do castelo, a enorme vespa e o lampião de rua, do Peixe solúvel, aprovariam o modo respeitoso com que a suspensão das regras e dos interditos mentais e culturais era recebida pela sociedade dessa época. A loucura cruza pontes e viadutos, alaga incêndios, traz Satanás para dentro do teatro do absurdo. Mergulhar fundo nas suas águas infernais pode ser muito perigoso. Uma vez tocado o fundo do oceano, a ficção pode mudar de espelho e nos levar para além da noite sonora, para o dia sombrio da realidade. Para Nadja, sereia insolúvel cujo retrato Breton publicou em 1928.

A principal faceta de Nadja, a que mais atraía Breton, além do desapego ao bom senso e às normas de conduta, era a sua inclinação para a clarividência: para se ter uma idéia, apenas na tarde e na noite de 6 de outubro de 1926 ela previu vários fatos triviais, apontou a janela de um quarto escuro que em um minuto iria se acender, viu o que os outros não conseguiam ver, o vento azul nas árvores, a mão de fogo sobre o Sena, ouviu vozes que lhe diziam “Você vai morrer, vai morrer”, imaginou ter participado realmente do capítulo 31 do Peixe solúvel (na pele de Helena), acreditou ser a reencarnação de alguém do séquito de Maria Antonieta e citou metáforas de um livro que não havia lido (Nadja, p. 71). Noutra ocasião entregou a Breton um papel assinado por Henri Becque, dramaturgo falecido em 1899, no qual este lhe dava conselhos (p. 136). Esta faceta intuitiva e pouco racional estava intimamente conectada, ao menos aos olhos da psiquiatria da época, à questão da loucura. A par das previsões e dos desenhos cheios de símbolos que Nadja passara a executar incentivado por Breton, certo comportamento esquizofrênico foi aos poucos minando o relacionamento dos dois. Nadja falava sozinha, quando não permanecia em silêncio absoluto, alheia ao companheiro durante os passeios pela cidade. Foi internada e tratada duramente, para horror do cardume de golfinhos que nadavam nos seus olhos transatlânticos.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho