Três golpes de Lehane

Os livros de Dennis Lehane são leitura essencial para que aprecia desvendar os mistérios dos grandes romances policiais
Dennis Lehane: habilidade para tecer tramas envolventes
01/10/2004

Estou para entender por que é que os erúditos (apud Millôr) consideram literatura policial algo tão desprezível. Ou “literatura de segundo escalão”, como eu já ouvi dizer. Há vários bons nomes de literatura policial, mas é sempre preciso frisar o “policial” como se fosse algo menor. Ora, Rubem Fonseca faz literatura policial. E, no entanto, quase sempre se oculta a especificação, como se ela fosse depreciativa.

Tenho algumas pistas para entender este fenômeno brasileiro. A melhor delas diz respeito a trabalho e apuro. Para se escrever um bom romance policial é preciso muito trabalho. E escritores brasileiros não gostam muito desta palavra. Preferem deixar a inspiração falar mais alto. E o que a gente escuta nem sempre é bom.

Livros policiais são dotados de uma técnica extrema. Não é fácil manter o leitor preso, numa tensão constante, por mais de trezentas páginas. Mais difícil ainda é fazer isso sem cair nos clichês do gênero. Isso tudo me cheira a desafio — outra palavra da qual fogem os escritores brasileiros, que preferem ficar ruminando suas angústias numa masturbação intelectual sem fim.

Este cenário de devastação também é culpa dos leitores. Cada vez mais percebo que há no consumidor de livros mais do que um desejo de se divertir e de se informar. Há, sobretudo, um desejo de se auto-afirmar como intelectual. Dizem que dá status, que é bonito. O leitor brasileiro lê livros com o mesmo desejo com que compra carros de luxos para andar nas nossas estradas cheias de buracos. É mesmo uma palhaçada.

Não os condeno. Afinal, também eu fui assim. Lembro-me de certa vez estar trabalhando como atendente de livraria. As pessoas me pediam indicação de livros e eu nem passava perto da estante de policiais. Não me ocorria, simplesmente. Eu indicava livros difíceis — e chatos. Fiz muito mal à literatura brasileira com meu trabalho numa livraria. Mas acho que nunca é cedo para se arrepender e mudar.

A verdade é que , no Brasil, ninguém escreve livros policiais como Dennis Lehane. Eu diria que ninguém escreve livros de quaisquer gêneros, no Brasil, como Lehane, o que seria uma verdade, mas eu sei que haveria revolta se eu dissesse uma coisa destas. Mas repare como o escritor queridinho da vez comete coisas como aliterações, cacófatos e ecos indesejados em seus escritos. Todo mundo fala mal do Paulo Coelho, mas no fundo todo mundo que escreve , no Brasil, tem um quê de Paulo Coelho.

Mas daí a culpa é dos editores que nada mais são do que empresários preocupados em vender livros como a Uni Lever vende sabão em pó. Du-vi-do que os editores brasileiros dêem sugestões e corrijam os livros que avaliam. Aposto minha coleção de livros policiais nisso.

Aliás, os livros policiais publicados pelas grandes editoras dão a exata medida do desprezo que elas sentem pelo gênero. Coisa de um mercado editorial que, assim como os leitores, precisa se auto-afirmar em cada lançamento. O sonho de todo editor nacional é ser como a Gallimard, que destruiu a literatura francesa no século 20 ao dar voz ao chatérrimo nouveau roman, em vez de privilegiar a grande tradição de aventura da literatura francesa.

Agora, faço uma análise dos três livros de Dennis Lehane que trazem os detetives Angie Gennaro e Patrick Kenzie. É preciso dizer que são análises pessoais, impressões de um leitor — nada mais do que isso.

Um drink antes da guerra
Ao que me consta, Um drink antes da guerra é o primeiro livro de Lehane em que aparecem os detetives Angie Gennaro e Patrick Kenzie. Infelizmente, eu o li depois de Sagrado e Apelo às trevas. Tenho certeza de que o teria admirado muito mais se o lesse como um livro de estréia. Bem, foi o que fiz depois de um certo momento. E deu certo.

O livro foi bastante elogiado quando do seu lançamento. Pelo menos é isso que me informa a orelha da editora — e eu acredito porque estou com preguiça de pesquisar. Mas, sinceramente, se eu o tivesse lido antes dos demais jamais pegaria um Lehane novamente. Insisto: isso não quer dizer que o livro seja ruim. Mas é demais para mim.

O que Um drink antes da guerra tem que me irrita é a violência desmedida. Os outros livros do autor também são violentos. Ele não faz o estilo Agatha Christie ou mesmo Rex Stout. Está mais para Dashiel Hammet mesmo. Não é nenhum problema. Mas até mesmo para criar um clima de tensão, medo e coação física é preciso elegância.

O que falta em Um drink antes da guerra é psicologia. Entendo que o escritor estivesse tentando delimitar os personagens, sobretudo os detetives que aparecerão nos seus livros posteriores. Lehane, contudo, nos dá estas informações como se fossem uma notícia de jornal, isto é, da maneira mais objetiva possível. E, como que para contrabalancear, carrega em tiros e socos e sangues e hematomas.

O mistério do livro é dos bons. Envolve intolerância racial, política e sexo. Lehane mostra habilidade narrativa — que é o que se espera de um livro policial. Mas, novamente, é impossível não compará-lo com os outros livros do escritor.

Eu seria capaz de escrever uma crítica arrasadora ao livro. Não que dele tenha desgostado. Isso é que é curioso: eu gostei do livro, mas falaria mal dele. Não me sinto enganado. O livro me dá exatamente aquilo que ele propõe. Mas, novamente, eu não consigo deixar de compará-lo. E eis o problema. Se eu recomendo que se compre Um drink antes da guerra? Sim. Com duas ressalvas.

Primeiro de que se leia o livro antes dos outros do mesmo autor. Se você já conhece Lehane, simplesmente ignore Um drink… Não é por mal. Ignore. Será melhor assim. A outra ressalva eu esqueci.

É claro que eu corro o risco de estar falando para uma pessoa que, em livros policiais, admire justamente a violência, a brutalidade. Daí Um drink… é prato cheio — e com muito ketchup. Para mim, contudo, bom livro policial é aquele que, além de me prender absurdamente na solução do mistério, também me dá subsídios para compreender a ação dos personagens e que, por fim, me engane o suficiente para eu achar, durante todo o livro, que sei quem matou e por quê.

Bem, sei que foi uma opinião negativa. Sinceramente, não era para ser. Eu tenho disso: quando quero falar que um livro é mais ou menos, é bom, mas não tão bom, acabo dizendo que ele é muito ruim, mesmo não querendo. Talvez seja o diabinho aqui em cima do ombro esquerdo me soprando coisas. T’esconjuro!

Apelo às trevas
Gosto de boa literatura. De alta literatura. Os grandes mestres e tal. Mas não posso esconder minha admiração por escritores que, não sendo gênios, tampouco são medíocres. Eu diria que são mestres de uma literatura intermediária, cujo propósito não é elevar. Se bem que Dennis Lehane, em seu Apelo às trevas, consegue extrair da trama policial momentos de reflexão pós-moderna acerca da violência. Sem pretensão nenhuma, é bom dizer. Eu mesmo já escrevi algum dia, sobre alguma coisa, que temos uma obra perfeita quando o artista alcança aquilo a que se propôs. Assim é Lehane.

Eu há muito tempo não sentia um ímpeto tão grande de terminar um livro. Comprei Apelo às trevas num domingo. Já era quase meia-noite quando comecei a lê-lo. Sessenta páginas depois, o sono me venceu. No dia seguinte, segunda-feira, não li mais do que vinte páginas. Novamente o sono. Na terça-feira, a história se caminhava para uma repetição. O sino bateu as dez badalada noturnas e eu estava caindo de sono. Houve protestos e eu disse que tentaria, então, ler um pouco, antes de dormir. Às quatro horas da manhã eu virava a última página.

Eu sempre fiquei intrigado com histórias de amigos meus que liam livros “de uma sentada só”. Quero dizer, eu sabia o que era isso, sim, porque já havia me acontecido algo parecido em pelo menos dois livros do Rubem Fonseca. Mas aquele era outro tempo, o tempo era farto e havia uma paixão intensa sobre os livros, que se dissipou bastante. Quando, pois, meus amigos diziam que liam livros de um só fôlego, eu os invejava. Porque sabia que a experiência era mágica. Na noite de ontem fui tocado pelo milagre: li mais de 350 páginas sem descanso nem para ir ao banheiro.

A trama de Apelo às trevas gira em torno de um serial killer. Mas Lehane não se entrega aos lugares-comuns do gênero. Não há, exatamente, um desequilibrado a ser pego pelos policiais. O que há é um grande desajuste no mundo, como se os pecados de uma dezena de pessoas fossem cobrados de inocentes. Entre eles estão Patrick e Angie, a versão de Lehane para Sherlock e Watson.

Como sempre acontece em livros policiais, fui enganado. Lá pela página 160, ou seja, menos da metade do livro, me virei para a namorada e disse que já sabia quem era o assassino. Rimos eu e ela, porque isso já havia acontecido antes. Mas desta vez eu tinha certeza, era evidente, coisa e tal.

Lehane nos ilude. Sua prosa flui de tal maneira que somos incorporados à trama a ponto de disparates na vida real. Em certo momento de tensão, por exemplo, eu me vi fazendo um movimento para a direita, à procura de um telefone. Queria avisar a vítima da morte iminente. Eu estava descontrolado. Mas é exatamente isso o que um livro tem que conseguir fazer com o leitor: chamá-lo para a história a ponto de os personagens se tornarem seus amigos e conhecidos pelos quais se sente alguma coisa muito próxima de carinho.

Interessante, ainda, na prosa de Dennis Lehane é como ele consegue dar uma dimensão humana a seus detetives. Isto é uma coisa que me incomoda muito seja em Rex Stout, seja em PD James e em Agatha Christie: os detetives parecem serem superpoderosos, dominados pela lógica fria dos fatos que conduzem à elucidação do mistério. Stout até consegue dar um certo humor a Nero Wolf, mas não vai além disso. Lehane, não. Ele criou detetives que, em Apelo às trevas, inclusive duvidam da utilidade de seus serviços. São pessoas que amam e que odeiam, que têm problemas pessoais além dos inerentes à profissão. Não se trata, porém, daquele existencialismo chinfrim tão fácil; Patrick e Angie são humanos porque são ambíguos — o que é raro, há que se dizer, neste tipo de literatura.

Sagrado
Outro dia eu conversava com uma amiga e dizia que o que busco num livro é sempre uma sensação única, que se reflete no gesto de economizar as páginas dele, para que nunca acabe. É uma espécie de avareza bem-intencionada. É certo que um livro é passível de inúmeras leituras. Mas ler com extrema lerdeza as últimas páginas do livro revela um apego apaixonado pela história. E é bom estar apaixonado.

No mesmo dia comecei a ler Sagrado, de Dennis Lehane, o mesmo autor de Sobre meninos e lobos. Como se trata de um livro policial (e um bom livro policial) tratei logo de lê-lo rapidamente, até porque este é o objetivo de um bom livro policial. O sono, porém, me impediu de avançar tão rápido quanto eu queria. Li 50 páginas no primeiro dia, 50 no segundo, mais 50 no terceiro. E assim até o fim.

Mas as últimas páginas foram, sim, economizadas. E eu me lembrei desta sensação rara e, por isso mesmo tão desejada. Foram poucas as vezes que me senti tocado por ela. Lembro-me de algumas. Com o último suspiro do mouro, de Salman Rushdie, foi assim. Com Cem anos de solidão também. E com dois livros de Rubem Fonseca que foram vendidos juntos, numa bela embalagem: Histórias de amor e E do mundo prostituto… A esta lista posso acrescentar agora Sagrado, de Lehane.

Comprei este livro por um motivo simples: gostei de Sobre meninos e lobos. E gosto de ler romances policiais bem escritos. Eu vinha de umas leituras pesadas e estava a fim de saborear um mistério apenas. Lehane é conhecido pelo trato psicológico de seus personagens, o que, para falar a verdade, eu achei fraquinho neste Sagrado. Não importa. O modo como o escritor conduz a história é de tirar o fôlego de qualquer um.

Em Sagrado aparece a dupla de detetives Patrick Kensie e Angela Gennaro, a versão de Lehane para o Sherlock Holmes e Watson. Comecei a gostar desde este ponto, porque é interessante que uma mulher participe de uma investigação, sem que ela perca seus bons momentos de violência — algo sempre relegado aos machos do grupo. Com uma mulher como detetive, Lehane pôde ainda acrescentar uma permanente tensão sexual no romance. O que é sempre bom.

Pois no livro os dois detetives são contratados à força por um biliardário para achar sua filha desaparecida. Antes dele um outro grande detetive fora contratado, mas desaparecera também. E isso é tudo o que dá para dizer sem entregar bons momentos de Sagrado.

Mas é um pecado confundi-lo com Sobre meninos e lobos. Porque o livro que deu origem ao filme de Clint Eastwood é muito mais pretensioso em termos psicológicos. Já Sagrado é mais… bruto. Mais cheio de ação e de fatos. De coincidências e equívocos. Não que Lehane despreze o cuidado psicológico, nada disso. Mas ele não tem tanta importância assim dentro da história.

Para compensar o que alguns podem entender como perda, afirmo: Sagrado ganha em humor. É um livro que me fez lembrar os ótimos momentos de Máquina mortífera, com grandes tiradas dos detetives e também dos criminosos.

Para minha surpresa, o final do livro é uma ode à fantasia. Não do modo surrealista a que estamos acostumados. Seria idiota um livro policial que terminasse deste modo. Lehane, contudo, faz de seu final uma ode à imaginação, à inverossimilhança, ao humor que sempre acompanha os livros do gênero.

Pena que eu não vá reler o livro. Histórias policiais, ou melhor, histórias essencialmente policiais têm este defeito: uma vez desvendado o mistério, quase sempre o livro não tem razão para ser lido, por mais qualidades que tenha.

Mas que não se animem os amigos, querendo o romance de presente. Guardo-o num cantinho reservado da estante, para quando ficar velho e não mais me lembrar dos livros que li na juventude.

Um drink antes da guerra
Dennis Lehane
Trad.: Luciano Vieira Machado
Companhia das Letras
304 págs.
Apelo às trevas
Dennis Lehane
Trad.: Luciano Vieira Machado
Companhia das Letras
432 págs.
Sagrado
Dennis Lehane
Trad.: Luciano Vieira Machado
Companhia das Letras
360 págs.
Leonardo Gemmi

É advogado.

Rascunho