Três corações pensantes

A poesia de Leila Danziger, Adriana Lisboa e Maria Lúcia Dal Farra é uma sutil mas renitente inadequação
Ilustração: Tereza Yamashita
27/01/2018

No final de 1942, uma judia holandesa de ascendência russa, aluna espiritual de Rilke, descreveu numa carta a paisagem humana do campo de Westerbork, ao norte da Holanda, de onde partiam trens semanais de mil passageiros para Auschwitz. Lá estavam, misturados à gente anônima, num descampado de quinhentos por seiscentos metros, os líderes dos círculos culturais e políticos, agora retirados de seus contextos, despojados de prestígio, autoridade e bens: todos indistintamente juntos “num espaço vazio, entre terra e céu, que têm de preencher eles mesmos, com o que ainda possuem dentro deles — por fora, já nada existe”. Essa carta, que circulou como documento testemunhal numa edição clandestina de 100 exemplares ainda durante a guerra (Carta a duas irmãs de Haia), depois republicada em 1959, 1962 e 1978, para só então ressurgir integrada ao conjunto dos escritos de Etty Hillesum, é uma carta também endereçada à literatura a partir da segunda metade do século 20.

Quando caem alicerces e bandeiras, quando alguém só dispõe de sua humanidade em meio a uma terra desolada, quando valores mínimos fundamentais estão sendo postos à prova, o que ainda pode a linguagem? O que se pode reerguer depois de estremecida uma fé interna, o que se pode redesenhar com sentido a partir do caos, qual palavra vale a quebra do silêncio eloquente dos que perderam (quase) tudo, só com a alma por um fio? E qual poeta ainda consegue manter uma melodia sustentável diante do afundamento das próprias seguranças, diante da destruição de territórios e identidades familiares, a casa, a pátria, um ideário? Como chegar à emoção de poucas palavras, e essa emoção ser pungente? Será possível, será crível, será lícito não apenas rir — e esse riso não ser amargo depois de tudo o que já houve —, mas, além disso, chegar a alguma beleza extraordinária?

Essas são questões que se colocam a certa altura de uma vida que, em circunstâncias históricas e pessoais extremas, vê-se instada a constituir uma melodia interna para encontrar sua vez/voz no coro total do mundo, como diria Rilke. Questões de literatura e vida, escrita e espírito entremeados, que estão presentes nos livros mais recentes de três autoras brasileiras de poesia universal: Leila Danziger [LD], Adriana Lisboa [AL] e Maria Lúcia Dal Farra [MLDF].

Lembrar a carta de 1942, de Etty Hillesum, no caso dessa tríade poética, não é fortuito. Ano novo, Pequena música e Terceto para o fim dos tempos, respectivamente, são livros que partem de descampados semelhantes, de ruínas de vulto histórico e familiar, do silêncio como impasse ou matéria mesma da escrita, da palavra como resquício, palimpsesto, desvio. Três livros de uma sutil mas renitente inadequação, numa clave (também não por acaso) ceciliana, de mulheres que se sentem estrangeiras onde quer que estejam, entre Oriente e Ocidente, mesmo dentro da própria casa. Três livros publicados entre final de 2016 (Ano novo) e final de 2017 (Pequena música e Terceto para o fim dos tempos), de poetas que passaram, também elas, por um “espaço vazio, entre terra e céu”, que tiveram de preencher elas mesmas, com o que ainda possuíam dentro delas, quando por fora já nada parecia existir.

Há vários pontos de contato nos trabalhos poéticos de Leila, Adriana e Maria Lúcia. Há uma sabedoria do tempo que a palavra assimilou de um encadeamento vivo de gerações, há um desenho da pequena vida em ato, escrevendo-se (inscrevendo-se) no corpo, no rosto, na trama de um destino, há a onipresença da memória em lascas de imagens, entre falhas e faltas, em janelas de momentos da história, e um mistério dentro da pele das coisas que não se deixa tocar pelo assédio da língua. Numa “literatura consubstancial” [MLDF], outros poetas em epígrafes, citações e paráfrases alimentam essas vozes, que falam e pensam sobre si mesmas, na sua potência ou impotência de fazer sentido num mundo de alegrias instantâneas e recorrentes desastres.

Territórios de linguagem
As três autoras também transitam por outros territórios de linguagem: Leila é artista visual (desde 1987), professora do Instituto de Artes da UFRJ; Adriana, romancista, contista e tradutora; Maria Lúcia, pesquisadora de longa carreira acadêmica, com mais de uma centena de ensaios e artigos publicados. Lê melhor a poesia de Leila quem visita sua iconografia de memórias transfiguradas (a começar pelas capas de seus livros), as reflexões-em-imagens em torno do que ela chama de melancolia: “uma lentidão desejada, um desacerto produtivo”, o trabalho com os resíduos da história e seus afetos latentes, instantes do passado no presente sobre um fundo de esquecimento necessário. Lê mais intimamente a poesia de Adriana quem conhece a força do silêncio e o sentimento do tempo em sua prosa, o estrato poético de seus contos breves, a presença da música, da pintura e da poesia propriamente dita (Manuel Bandeira, Bashô) como elementos constitutivos da interioridade de personagens ou, como um todo, da trama narrativa. Lê com mais luz os poemas de Maria Lúcia quem sabe de seu intenso diálogo com a poesia portuguesa, quem reconhece linhagens e linguagens às quais ela se filia como a uma obra de infinita urdidura coletiva.

Para Leila, uma “escritura da lentidão”. Para Adriana, “o que a palavra/ na palavra que excede/ cala”. Para Maria Lúcia, uma “caligrafia do permeio”. Em todas elas, uma melancolia, uma condição externa e interna de exílio, de descompasso, de casa perdida, de contingência em par e acorde com os exilados, órfãos e melancólicos do mundo. E mesmo com imensos aspectos históricos, políticos e literários envolvidos na poética de cada uma, o que se vê não é a ostentação de nenhuma bandeira: é “somente o mastro/ e um movimento” [AL], é “o saldo/ das perdas dos dias” [LD], é “poalha batida, auréola fóssil, astro incerto” [MLDF].

Se há bandeiras, no livro de Leila (Ano novo) são “bandeiras incertas, trapos/ da Europa” no quarto dos fundos do apartamento do pai que está a ser esvaziado. Esse esvaziamento, num rito de luto, é consoante a um rito poético de acolhimento e transfiguração de restos, montanhas de papéis, recortes de jornal, moedas sem valor, agendas de anos embaralhados. A poeta, que é filha dessa pátria, está ali, em trabalho de arqueologia afetiva, “no centro/ de seus mundos/ em extinção”. Lugares, tempos, calendários, línguas e vidas sobrepõem-se, “Tel Aviv sobre Copacabana”, Rosh Hashaná e Ano novo, “mil sóis” a leste de Stalingrado e “insurreições íntimas”, a idade da avó numa fotografia e quase a mesma idade da neta agora, um livro lido pelo filho agora dentro do livro da mãe. O que se deixa transmigrar para o poema é como uma estrela: “rastro-de-luz/ remanescente/ do desejo/ arremessado/ e já extinto”. Estrela, mensagem, destino.

Em Pequena música [AL], também se vê o rito do luto de um microcosmo doméstico e “fantasmas famintos”. Há a presença da mãe no mais além das coisas visíveis, em partículas subatômicas. Há as diferentes idades de um filho sobrepostas. Há as dores do mundo, recolhidas por direito de quem, a um século ou a um oceano de distância, ainda as sofre. Nesses poemas, como nos de Leila, “migrações cíclicas”, “babéis”, “travessias de desertos montanhas/ sob a neve num país estrangeiro”, “nomes/ esquecidos de civilizações/ esquecidas” e o secreto lema, que já vem de poemas anteriores (do livro Parte da paisagem), de que “seremos tenazes antes/ da extinção, como o leopardo-de-zanzibar/ e o lobo-da-tasmânia”. Em Adriana, como em Leila, a comoção de sentinela dos anjos de Wim Wenders diante da “beleza em câmera lenta”, a poeira das guerras, os ossos da história aos quais a poeta infunde alento reanimando-os na figura de um livreiro judeu de Belgrado, das viúvas da Índia, de Alexandre III da Macedônia.

Reflexão metapoética
Pequena música compõe-se de partes, como os livros de Leila e Maria Lúcia, e em todas essas partes tem lugar uma reflexão metapoética que quer atravessar a palavra para tocar no que não é palavra (lembrando Clarice), mas a vida mesma, o instante-agora, “sístole/ diástole/ sístole”. Do Oriente, chegam não apenas notícias de filhos desaparecidos, mas as palavras dos mestres, dos poetas antigos, e a lição sem palavra do zen-budismo de uma perspectiva das coisas ao rés-do-chão. Vem inclusive de um Oriente transfigurado essa “pequena música”, de um verso de Poemas escritos na Índia, de Cecília Meireles (“Uma pequena música toca no fim do mundo.”). Uma pequena música é ainda o que se ouve nos quatro minutos e trinta e três segundos da peça de John Cage, outra inspiração de Adriana: esse bulício imparável da vida que trai (ou acompanha) todo o silêncio.

Terceto para o fim dos tempos [MLDF] traz no título uma evocação musical de Olivier Messiaen num campo de concentração na Polônia. Diz a poeta, numa nota introdutória, que ela própria se multiplica em três (número de partes do livro) “para registrar a miséria (e a magnitude) das nossas idades e cataclismos”. Pois aí estão os ausentes e os ritos de luto por eles, a perda da mãe, a desmaterialização da casa, o futuro gorado de um filho, as dores do mundo. Na parte central do livro (Parque de diversões), conversações com outros escritores em poemas metalinguísticos e performances de voz (a exemplo do poema De Florbela para Pessoa. Com amor.) que se aproximam da metalinguagem muito particular da portuguesa Ana Luísa Amaral. A música que toca nesse “Terceto” vem da “partitura dos anos”, uma música que só se torna audível “quando o corpo a sanciona”. Uma poesia em que a “língua de fogo” arde atrelada a cada “chaga do corpo”. Teresa Cabañas, no texto de apresentação do livro, vai ao ponto: “Aqui, na borda do irrecuperável, poeta e poesia estão se olhando e, certamente, se re-conhecendo, irmanados, desta feita, na lucidez do desencanto”. “De resto”, como reza um dos poemas, “o que não se diz atrai mais enigmas/ diverte e exercita outros modos/ e faz raiar uma flor miraculosa”.

Essa “lucidez do desencanto” de que trata Teresa Cabañas em relação a Terceto para o fim dos tempos igualmente se aplica a Pequena música e Ano novo. As três poetas escrevem a partir dessa maturidade trabalhada na experiência da perda, as três se ocupam de pensar o que pode a linguagem em meio às guerras e depois delas, diante de seus descampados internos e externos. “Qual será o meu gesto essencial?// Enovelar o tempo? Mover imagens? Ativar espaços?/ Amar um filho, o meu, o único?”. Interrogações do pensamento poético que Leila, já em seu livro de estreia (três ensaios de fala), colocava, e agora, aqui, se recolocam. É a partir desse “gesto essencial” que a poesia de cada uma das autoras encontra o espírito da voz de Etty Hillesum, uma escritora que, em plena Segunda Guerra, desabonando a futura máxima de Adorno, deixou em suas cartas e diários a sugestão de uma poética com a parte humana da vida em seu centro, no que nela há de belo e terrível, para além de esteticismos e bandeiras. Etty dizia que desejava ser “o coração pensante” dos barracões de Westerbork. Leila, Adriana e Maria Lúcia são três corações pensantes de uma poesia que dialoga com o mundo.

Ano novo
Leila Danziger
7Letras
96 págs.

Pequena música
Adriana Lisboa
Iluminuras
Pequena música
Adriana Lisboa
Iluminuras
Terceto para o fim dos tempos
Maria Lúcia Dal Farra
Iluminuras
128 págs.
Leila Danziger
Nasceu em 1962 no Rio de Janeiro (RJ). Doutora em história da arte pela PUC-RJ, com pós-doutorado pela Bezalel Academy of Arts and Design Jerusalem. Possui mais de cinquenta participações em mostras de arte visual (individuais e coletivas) no Brasil e no exterior. Já viveu na França, na Alemanha e em Tel Aviv. É autora de dois livros de poesia: três ensaios de fala (2012) e Ano novo (2017).
Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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