Travessias enigmáticas

Na ficção de Pólvora, fatos aparentemente triviais acabam conduzindo a uma reflexão filosófica existencial
Hélio Pólvora não abre mão do enredo bem delineado
01/07/2004

A vida é absurda, somente a escrita lhe dá aparência de lógica.”
Hélio Pólvora

O escritor Hélio Pólvora acaba de publicar o livro Contos da noite fechada, no qual reafirma o vigor estilístico e a força evocativa que vêm caracterizando sua obra ao longo de 45 anos de produção. Após sua estréia, em 1958, com Os galos da aurora, Pólvora logo se tornou um especialista no gênero curto, como um aplicado cultivador de sua linguagem, de sua forma compósita, da técnica que valoriza a brevidade do cerne dramático. Por isso mesmo, tornou-se um crítico respeitado, exercendo o ofício em jornais e revistas de alcance nacional. Depois de consolidar sua carreira no Rio de Janeiro, onde viveu durante cerca de 30 anos, o escritor retornou à Bahia e atualmente reside em Salvador, onde é cronista no jornal A Tarde. Sua obra já contabiliza duas dezenas de títulos, entre os quais O grito da perdiz (1983) e Mar de Azov (1986), ambos vencedores do Prêmio Nestlé de Contos. Na ficção de Pólvora, fatos aparentemente triviais acabam conduzindo a uma reflexão filosófica existencial. Por este viés, o autor acaba de ser estudado numa dissertação de mestrado, intitulada Finitude Existencial no conto de Hélio Pólvora, recentemente defendida por Jairo Sapucaia de Faria Góes, na Universidade Estadual de Feira de Santana (BA).

No novo livro, o autor enfeixa 14 contos centrados, na sua maioria, na temática da morte, evocada não como agente de perdas e desespero, mas como fonte de motivos e circunstâncias das revelações e descobertas que alargam os sentidos da vida em sua condição de transitoriedade essencial. Assim, os temas encerram significados que se desdobram na história narrada: a travessia de um rio adquire o significado de passagem da própria vida, um cão espera fielmente o seu dono para só então morrer em paz, uma cerimônia de lava-pés celebra a morte do ente querido, um ancião transfere o sentido de sua vida para o ato de suicídio, a inocência de um jovem cede à experiência da vida, um naufrágio revela a coragem de um homem simples diante do fim inevitável. São histórias fortes e envolventes, bem urdidas, com situações de impacto, carregadas de ironia e tragicidade, traços que caracterizam a narrativa do autor.

O primeiro conto, Do outro lado do rio é emblemático da temática geral da coletânea. Um homem, o narrador, é convidado pelo canoeiro a atravessar um rio até uma ilha, prometida como lugar paradisíaco. Indeciso, estabelece um diálogo com o velho e experiente canoeiro, que se revela um interlocutor enigmático e instigador. O narrador, ao ponderar sobre a prosa do velho, afirma; “Não sou dado a enigmas, mas de súbito me vem a impressão de que marcamos um encontro ali naquela margem deserta, e que ele está ali com a sua canoa para me prestar um serviço, para levar-me à outra margem” (p. 13). Assim, reflete sobre o sentido maior da travessia, como possível passagem sem volta entre duas dimensões da existência. E admite ao barqueiro que o estado perfeito é: “O não-ser. Aquela noite escura, de uma escuridão total, sem desejos, sem necessidades” (p. 14).

A depender da acuidade do leitor, a simples travessia do rio até a ilha, a bordo de uma canoa conduzida por um velho canoeiro, pode ter os sentidos ampliados para algo muito mais profundo. Trata-se de uma evocação do mito grego do barqueiro Caronte, que faz a travessia do rio Estige, conduzindo sempre um passageiro solitário até a ilha de Hades, reino dos mortos. A alusão é feita com sutileza, sem referências diretas, convidando o leitor à reflexão sobre a enigmática travessia. O narrador-personagem supera, por um instante, o medo, e aceita o desafio do canoeiro. Consciente de seu destino, ele embarca na canoa que o conduzirá ao outro lado. Sem deter nenhuma certeza, como se houvesse bebido água do mitológico rio Lete, que trazia o esquecimento da vida terrena, apenas admite, nas palavras finais do conto: “Para onde vou? Perdi a minha última certeza. Sei apenas que é preciso remar. Devo estar no meio do rio, o medo vem de novo e me sufoca o peito. Ignoro qual a margem certa, não sei mais como voltar nem aonde ir. Estou remando para a noite definitiva ou para o lívido alvorecer?” (p. 16). Como no mito grego, o passageiro não pode saber se está sendo conduzido aos aprazíveis Campos Elíseos ou aos tormentos eternos. Assim também é a vida humana, parece insinuar o contista.

Ao ler este e os demais contos, o leitor é desafiado ao exercício ininterrupto da reflexão, a fim de conciliar aquilo que é sugerido nas linhas e o que se revela nas entrelinhas do texto. Os narradores de Pólvora insinuam, instigam, pontuam questões e geralmente guardam um olhar apaziguado e compreensivo sobre o encontro inexorável do ser humano com a hora crucial da finitude. Questionam, mas não se desesperam.

Pólvora é um contista que não abre mão do enredo bem delineado, nem exercita experimentalismos inócuos. Percebe-se que sua formação vai desde os clássicos, passando pelos grandes contistas modernos, com destaque para o nosso Machado de Assis, até os contemporâneos que renovam a forma do conto sem o descaracterizar. Hélio Pólvora opera a síntese perfeita do modo definido da narrativa clássica com os efeitos narrativos modernos que resultam do manejo do foco narrativo, em que o narrador não apenas conta a história, mas o faz consciente de que a grandeza do gênero curto reside na forma mesma de narrar. Expressivo elemento de composição, as surpresas, súbitas revelações, revigoram o enredo e fazem parte da própria concepção da narrativa. Elas enredam estrategicamente o leitor e dão fôlego ao texto, além de motivarem o próprio autor em seu trabalho de ficcionista. Em recente entrevista a Rascunho, o escritor adverte que: “O processo de criação é um rio subterrâneo do qual nem sempre ouvimos o marulhar. O que um ficcionista escreve, na ilusão de que está criando, ele apenas o arranca de dentro de si, acrescenta, suprime ou mistura, segundo as artes de sua composição”.

Em cada conto de Pólvora, o narrador conduz os passos da trama com intimidade, senhor dos fatos, dos enredos e dos desfechos, na dosagem exata, com andamento bem ajustado. Seus contos são exemplos de técnica, de adequação, de ritmo, de marcação temporal e de jogo dialógico. Neles as informações se adensam num movimento contínuo, concentrando sentidos para instaurar efeitos de leitura e de compreensão, como fluxo revelador que impressiona e provoca a reflexão. O autor, nos bastidores do texto, parece comprazer-se ao conduzir o processo narrativo, dispondo os gestos e as palavras das personagens, de modo a passar despercebido, mas sempre operante na tessitura ficcional. Quando o narrador opera em primeira pessoa, geralmente apresenta sua história como experiência de aprendizagem e tomada de consciência diante de si, dos outros e do mundo. Já o narrador em terceira pessoa conduz as personagens e suas tramas, envolvidas nas rodas da experiência de estar no mundo, em meio às vicissitudes, às projeções do desejo e às frustrações dos limites e das impossibilidades. No conjunto dos contos, predomina uma fina ironia a insinuar sempre que é este, em si mesmo, o significado da vida humana, em suas diversas nuanças e possibilidades: uma simples e enigmática travessia.

Aleilton Fonseca

É escritor, ensaísta, ficcionista e poeta, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA). Pertence à Academia de Letras da Bahia, à Academia de Letras de Itabuna, à União Brasileiro de Escritores-SP e ao PEN Clube do Brasil. Tem cerca de 20 livros (poesia, contos, ensaios, romance) publicados no Brasil e alguns no exterior.

Rascunho