Benedito Nunes considera o livro O dorso do tigre, lançado originalmente em 1969, sua primeira obra autoral propriamente dita. O título escolhido, como nos revela a sua epígrafe, foi retirado de As palavras e as coisas (1966), de Michel Foucault. Esse filósofo atenta para os jogos de sentido que deram origem à “episteme” moderna. Partindo de vestígios modernos, Foucault tenta, através do trabalho arqueológico do pensador, chegar à origem da construção dos sistemas de saber. Nessa idéia de jogo, o papel fundamental da linguagem é ressaltado, revelando sua importância para o surgimento do conceito de homem, no século 18, já que anteriormente, na visão clássica, “só havia lugar para o sujeito como objeto”.
No capítulo A arqueologia da arqueologia de O dorso do tigre, Nunes, revela as ligações entre o pensamento de Foucault e de Heidegger. Na filosofia heideggeriana, Benedito destaca o fato de que “a lógica está rodeada por um logos primevo, que a linguagem condensa e que os poetas reativam. O papel fundamental da linguagem, seja na filosofia, seja na poesia (e, por extensão, em toda a literatura) é que permite o diálogo essencial entre estas duas disciplinas.
É assim que, na segunda parte de O dorso do tigre, o autor escolherá uma epígrafe de Nietzsche, (o poeta-filósofo, como o chama), para chamar a atenção às “narrativas” subjacentes nos “discursos” dos textos estudados. Clarice Lispector e Guimarães Rosa foram dois autores familiarizados com os estudos filosóficos. Em Clarice, a existência humana se distingue por problemas tais como a angústia, o nada, o fracasso, e sua relação com a linguagem. Por isso, ensina-nos Nunes, “qualquer que seja a posição filosófica da escritora, o certo é que a concepção do mundo de Clarice Lispector tem marcantes afinidades com a filosofia da existência”. Acompanhando os conceitos de “náusea”, o misticismo, o sentido ontológico que a autora empresta aos seus personagens, o que lhe dá ensejo a refletir sobre o absurdo da existência, o crítico acompanha a trajetória das obras de Clarice para examinar os jogos de linguagem, não no sentido pejorativo do termo (jogos de palavras), mas naquele que está na base da filosofia e da própria literatura.
O jogo estético que suspende ou neutraliza, por meio da imaginação, a experiência imediata das coisas, dá acesso a novas possibilidades, a possíveis modos de ser que, jamais coincidindo com um aspecto determinado da realidade ou da existência humana, revelam-nos o mundo em sua complexidade e profundeza.
A observação atenta do jogo da linguagem na obra da autora revela, segundo nos ensina o mestre paraense, que ela caminha na direção oposta à do jogo preferido por Guimarães Rosa. Em Clarice, a linguagem é fracasso, mas é só no fracasso que podemos nos afirmar. Assim como no caso do mito de Sísifo, é nesse destino “de permanente revolta, que dá um sentido humano à (sua) existência absurda”, que se obtém o triunfo da arte. “Por destino tenho que ir buscar, e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem”, escreve Lispector em A paixão segundo G. H. Já em Guimarães Rosa, o jogo da linguagem é “acumulativo”, criando o que Nunes chama de estilo de acréscimo. Longe da angústia existencialista de Clarice, Guimarães pertence a uma tradição platônica, harmonizada com a tradição hermética e alquímica.
Amor
Examinando a idéia de amor presente na obra de Guimarães Rosa, Nunes propõe o “erotismo místico” que leva a uma imanência do divino no humano. Descobrir esse divino dentro de si, esta é a tarefa humana por excelência, que pode melhor ser representada nas viagens, tais como as compreende Rosa: “travessias”. Além de viajante, o homem é também a própria viagem. Mas a viagem é, além disso, “a demanda da Palavra e da Criação Poética”, é a procura pelo “quem das coisas”, como a efetuada pelo Grivo, personagem do “poema” Cara de bronze (em Corpo de baile). Neste conto, há duas viagens, a dos fatos e a da narração.
A viagem da palavra é a que dá sentido à viagem humana. Sem a narrativa, para dar sentido à vida e conteúdo aos signos vislumbrados, a vida (logo, a viagem) não consegue se realizar em plenitude. Nos estudos sobre Guimarães Rosa, o papel da linguagem deve sempre receber atenção redobrada. Retrabalhando-a, ele acrescenta sentido às palavras e as transforma em objeto de reflexão. Saindo de seu caráter mediador, a linguagem passa a ser um fim em si mesma, e, sendo assim, o trabalho de tradução dos textos do autor brasileiro transforma-se num trabalho, antes de mais nada, de leitura e compreensão, ou seja, interpretativo. A tradução de Guimarães Rosa exige, além dos conhecimentos sincrônico e diacrônico da língua portuguesa, uma experiência de vida cultural que permita criar equivalências entre o universo brasileiro segundo a interpretação roseana e o universo dos seus futuros leitores estrangeiros.
Daí a crítica feita por Nunes à tradução de Villard, que “traduziu sem apropriar-se da perspectiva do autor, sem penetrar na sua maneira de ver e de compreender as coisas”. J. Villard reduziu a linguagem de Guimarães Rosa, ao invés de conservar seu caráter de invenção, seu lado “viagem”, ou seja, Vida-aprendizagem. Ao terminar seus exames com a leitura de Tutaméia, Benedito reforça mais uma vez a importância da linguagem, que possui sentido mesmo quando incompreensível. A linguagem é nossa única aproximação ao “texto maior”, à “escrita das coisas”. É nosso resgate.
Os restantes ensaios que compõem O dorso do tigre também possuem, como eixo comum, a linguagem. Fernando Pessoa, o poeta que constrói suas múltiplas identidades a partir da retórica de seus heterônimos, e João Cabral de Melo Neto, o poeta que ressalta o poder de cada palavra, descarnando-as até seu âmago, são os outros escritores estudados.
Complementariamente a este relançamento, por ocasião dos 80 anos de vida do crítico, Vitor Sales Pinheiro selecionou, dentre o material esparso que encontrou nos arquivos de seu mestre, textos suficientes para fazer novos lançamentos, como, por exemplo, A clave do poético, publicado pela Companhia das Letras em 2009, que reúne crítica, teoria e história literária, além de estudos sobre Drummond, Clarice, Machado de Assis, Euclides da Cunha e Padre Vieira.