A edição do livro — pura embalagem, dirão alguns — já anuncia por si só um legítimo Nelson de Oliveira, esse viajante por territórios ilegítimos. O oitavo dia da semana possui dois planos. Um que abre (A) com letras vazadas em branco sobre a página negra, e fecha (B) de igual forma, repetindo seu vaticínio: “(…) nasci, vivi e morri. Interpondo-se entre o primeiro e o segundo vocábulo não mais do que setenta anos”. Repetição interna, só acessível ao leitor, já que a personagem cala aos demais essa súmula de uma existência nada exemplar. (Qual existência é?) O segundo plano — 95% do livro — é constituído de onze capítulos mais ou menos longos, em que uma família (e o que é uma família senão uma célula cancerosa à qual cada integrante tenta dar seu quinhão de quimioterapia afetiva?) vai se expondo pouco a pouco na prosa segura e, simultaneamente, implacável de Nelson. Um legítimo de Oliveira. A começar pelo projeto gráfico (de Paulo Sandrini), ousado, bonito a partir da força que exala nas suas imagens, e que o texto confirma pela quase brutal ausência de piedade. Nelson veio para sacudir, desde o primeiro livro.
Às vésperas de completar 40 anos, Nelson de Oliveira, para todos os gostos, ou quase todos, vem ano após ano trazendo uma novidade que, paradoxalmente, sacode o gênero de sua preferência — a narrativa longa — e ao mesmo tempo o confirma em suas possibilidades. Daí ser obrigatório falar-se de um legítimo Nelson, isto é, aquele tipo de produto que, por ser diferenciado, pede selo de garantia.
Essa garantia, Nelson a dá mesmo no conto, quando escapa para a narrativa curta, nos quatro casos em que o fez: o da estréia, Os saltitantes seres da lua (Relume-Dumará, 1997), o do premiado Naquela época tínhamos um gato (Companhia das Letras, 1998), o do inclassificável — vão se acostumando com essa palavra — O filho do Crucificado (Ateliê Editorial, 2001), e o recente Sólidos gozosos & solidões geométricas (Record, 2004). Neste, o olhar surge como grande personagem em histórias tão desconcertantes na sua “realidade” quanto no seu registro. A fantasia a serviço da realidade e vice-versa. Com perdas e ganhos, sem ironia frente a esse jogo duplo de desvelamentos e ocultamentos e com efeito conscientemente buscado de um crível chão falso sobre o qual nos sustentamos todos.
Pulando seus dois importantes volumes de ensaios — nomenclatura recusada por Nelson, que chama tais livros de crítica de anseios crípticos e/ou crônicas passionais —, voltemos à narrativa longa, já que a ficção é nossa ótica neste artigo, ainda que a dupla, neste caso de idéias estéticas expressas em texto, seja digna de nota. O século oculto (Escrituras, 2002) e Verdades provisórias (Escrituras, 2003) põem muitas reputações em xeque e tiram do buraco alguns nomes injustamente ignorados. Isso sem falar em temas e formas aos quais só Nelson deu atenção.
Mas quanto a O oitavo dia da semana, é de se reconhecer que o fôlego combina mais com o processo criativo de Nelson. Seu romance anterior, A maldição do macho, é uma demonstração de desassombro exemplar. O desejo masculino, leitmotiv do romance, não trava o autor entre as possíveis emoções a se imaginar espalhadas em meio ao caminho da narrativa. Ele “simplesmente” mostra o que em regra só é mostrado entre molduras e hesitações descritivas que se pretendem preparatórias para um ápice. Para Nelson, esse ápice é uma maldição, uma sentença que parece levar antes ao extermínio, à derrota, nunca ao paraíso sonhado que, se existe, não fica na carne e sim longe dela.
Mas ele não é mencionado.
A crueza do texto não paga pedágio moral de espécie alguma. Não há cinismo nem a intencionalidade do escândalo. Há o reconhecimento imperturbável de que a aventura erótica no macho é antes uma ação sem sentido maior que uma espécie de desespero ou impulso irrefreável. Trata-se, nesse capítulo especial na obra do autor, de uma quebra de seu “realismo além do real reconhecível”. Aqui é só o real, sem a clemência dos desvios afetivos que o coração pede quando examina, exaltado sempre, a veracidade e seu peso sobre o peito de quem lê ou de quem escreve.
Entretanto, até nessa quebra Nelson parece sublinhar seu projeto coerente. Uma nova literatura, alimentada do mais sombrio e do perturbador imerso numa atmosfera embebida de pretensa normalidade. Nelson não se assusta e, melhor, não recua: o pior, minuciosamente recriado, é a oferenda a um leitor que já está se acostumando a livros diferentes um do outro a cada ano.
Neste O oitavo dia da semana — dia mais amaldiçoado, segundo crendice popular, que a sexta-feira 13 —, temos três irmãos de origem nada modesta renunciando a suas raízes aristocráticas e a possibilidades de uma vida tão esplendorosa nos seus sinais exteriores quanto condenadora do que esconde. O cenário que escolherão para a expiação de suas existências será um edifício em ruínas, o Antares; e, nesse lugar, (onde a perturbação do trio soma-se à dos párias ali instalados) recebem a visita de espíritos, de entidades, de forças sem nome, energias capazes do gesto mais surpreendente e mais brutal.
O que está em jogo é a leitura atenta da trajetória de uma estirpe, como muitas entre nós, digna do nome que ostenta, capaz de atrocidades morais, capaz de perder o fio de prumo da própria alma, se a teve algum dia.
Segredos de família são quase um lugar-comum. Mas alguns desses segredos (e fatos, mesmo quando não secretos) são o próprio inferno. Votados a serem visitados no oitavo dia da semana. Na verdade, todos os dias, em vidas marcadas fundamente por eles.
A família é só uma ponta da enorme montanha de gelo, parada à espera do baque e do naufrágio. Há a rua, o bairro, a cidade. E o edifício em ruínas onde a metáfora nada lírica de uma civilização com os dias contados vai se amparar e disputar restos.
Estamos frente a um exílio (in)voluntário, movimento amargo para longe de raízes condenadas. A luz é escassa, discutível. A luz natural, que cede frente um blecaute a espargir de escuridão o entorno. Nessa carência de luz os objetos, os seres, as situações nem por isso perdem a imagem: têm-na transformada. Transformar, é o que a literatura faz em Nelson, um transformador de gêneros. O romance que o diga, juntando, em O oitavo dia…, texto e fotos.
A questão é que o romancista, segundo o método de Nelson, está a serviço da desestruturação das personagens, enquanto aparentemente as “estrutura” aos olhos do leitor. Suas figuras são ímpares: uma, vítima de estupro; outra, incestuosa; outros, vivendo o caos absoluto e sua infernal música inaudível, sem harmonia alguma e, por isso, com a força de um mar que os carrega na mesma direção. Mas também em direções opostas, quando menos se espera.
A convivência de seres tão estranhos uns aos outros (de onde tiramos que somos semelhantes?!) é explorada com mão de mestre por Nelson, mão do diabo. A elite despreparada, a brutalidade marginal, a estéril e nem por isso menos aterradora discussão estética e filosófica — eis a mistura nada heterogênea a compor seu mais recente livro. A religião como ameaça e não apenas como um paliativo essencial. A criação literária surgindo nas discussões do romance como uma ação que nada garante e tudo exige. E para quê?
Isso sem citar o que de início destaquei como mérito editorial, mas que em Nelson é linguagem: a edição mesmo. As fotos internas (de Diego Singh) — closes de fachadas decadentes, bueiros, vidros quebrados, pedras, pregos etc. — completam essa discurso nada rebarbativo, esse “texto” feito além das palavras, denunciando-as.
Terminada a leitura, dá vontade de ir lá fora, respirar um pouco. Andar pelas calçadas, tomar um sol, ver alguma luz, fugir à escuridão dos tempos, anunciadas a cada capítulo, salvar-se, afinal, dessa metafísica claustrofóbica.
Não sei como Nelson sai inteiro de ficções desse naipe. Sai?
Eu não saí.
A ficção de Nelson de Oliveira não é o samba de uma nota só, bem ao contrário: nos pega de surpresa, por mais avisados que estejamos, sobretudo por resenhistas como eu, já preocupados em colocar todos os sinais de aviso na estrada sinuosa que leva o incauto leitor até o coração convulso da matéria literária desse escritor prolífico (que até já criou um quase-heterônimo; mas isso é tema para outro artigo, sobre literatura infanto-juvenil, coisa que um tal Luiz Bras, bem conhecido de Nelson, tem feito com alta competência). Nelson de fato não descansa no sétimo dia após seus seis febris expedientes literários. E ainda descobre um oitavo para mergulhar em segredos inconfessáveis.
Inconfessáveis para os outros, não para ele.