Traições e verdades

Com nove contos, o livro narra a vida de dominicanos, em sua maioria imigrantes nos EUA, com características e sentimentos comuns entre eles.
Junot Díaz, autor de “É assim que você a perde”
03/02/2014

É assim que você a perde, de Junot Díaz, foi lançado em um intervalo de quatro anos depois de o autor ter ganhado atenção com A fantástica vida breve de Oscar Wao, com o qual venceu o Pulitzer em 2008. Com nove contos, o livro narra a vida de dominicanos, em sua maioria imigrantes nos EUA, com características e sentimentos comuns entre eles.

A graça do texto de Junot Díaz é brincar com a conexão e desconexão entre histórias e personagens. A obra pode ser lida tanto como um romance de nove capítulos como um livro de nove contos. É quase irresistível não tentar juntar as histórias e montar cronologicamente a vida de um mesmo personagem — ligação é possível, mesmo que com algumas lacunas ou falhas.

De certa maneira, o formato fragmentado, mas não tanto, de narrativa do autor passa uma impressão de que o enredo, os fatos de vida, personalidades e características são comuns a diversas pessoas. A sensação é de que todo o homem dominicano tem sangue quente e é infiel às mulheres; assim como todos os imigrantes são infelizes. De certa forma, mostra que não importa onde vivem ou para onde vão, de certa forma a sua nação parece os seguir impetuosamente.

Uma discussão presente no livro, principalmente relacionada aos personagens dominicanos que moram nos EUA, são suas características quando contrastadas com pessoas de outras origens, tornando algumas coisas mais evidentes até para os próprios personagens. Algo apontado pelo autor em diversos momentos é o sangue quente dos homens, uma das justificativas possíveis para a infidelidade crônica deles.

Essa questão é personificada principalmente pelo Yunior, traidor convicto já presente em livros anteriores do autor. Essa repetição volta a afirmar a fragmentação das histórias na narrativa do autor, e faz com que o leitor consiga conectar histórias e personagens entre os livros, criando um universo muito maior do que o apresentado nas 222 páginas de É assim que você a perde.

O livro já começa com o narrador personagem se defendendo. “Até que não sou mau sujeito. Sei o que parece — estou na defensiva, e é balela —, mas pode crer. Sou um cara igual a todo mundo: fraco, cheio de defeitos, mas, basicamente, do bem.” E essa primeira impressão permanece durante todo o livro: o personagem, Yunior, de certa forma cria uma imagem de todos os homens da República Dominicana que vão aparecer ao longo da obra — parecem estar sempre se desculpando, de certa forma já prevendo que irão de alguma forma machucar as mulheres com quem se relacionam.

O primeiro conto, que dá nome ao livro, já é significativo. O narrador parece ter total consciência da sua falha e o que ela pode levar aos seus relacionamentos, mas mesmo assim insiste em continuar com as traições. A questão fica de certa forma evidente também em sua fala — o texto é repleto de descrições de corpos femininos com tom de julgamento, já que para o personagem essa é uma característica extremamente relevante e marcante das pessoas da sua vida. De início, o personagem parece desconfiar do leitor, duvidar de que ele vá acreditar na história ou ainda tem certeza de que vai ficar contra. Mesmo assim, tenta convencer e montar seu caso e explicar seus motivos.

A imagem de Yunior formada no primeiro conto é recorrente entre os homens dominicanos criados por Díaz. Os homens têm o chamado sangue quente, com tendência à infidelidade e à violência. Repetem um certo padrão em relacionamentos com as mulheres, principalmente ao sabotar casos por manter uma ação que acreditam que elas não vão gostar.

Os relacionamentos são, inclusive, o tema geral do livro. Todos os contos narram relações de algum modo, sendo que a maioria são amorosos/sexuais. São amores fracassados, cansados, magoados, desgastados.

Outro laço importante no livro é o familiar, em que a maioria das famílias são desestruturadas de alguma forma. Nesses casos, percebe-se uma convivência mais seca entre os membros da família, mas um sentimento de proteção grande contra ameaças externas.

Assim como vários livros de contos, existem altos e baixos para o leitor, narrativas mais marcantes e algumas que passam despercebidas. Ainda sim, o estilo de narrativa é constante. O autor parece montar um panorama de quem são os dominicanos, dentro ou fora de seu país. Para criar essa imagem, usa o spanglish, transformado em uma espécie de portunhol com a tradução. Foram mantidas diversas palavras e expressões em espanhol, mostrando que mesmo fora de seu país esses personagens mantêm suas raízes. O uso de outra língua também gera um estranhamento para o leitor, que acaba criando uma empatia maior com os personagens. O texto também é repleto de palavrões e gírias.

Um dos momentos em que os personagens mais parecem estar deslocados é no conto Invierno. Nele, o autor narra a vinda de uma mãe e os dois filhos (um deles parece ser o Yunior) para os EUA, após a chegada do marido. A reunião da família soa estranha, afinal, teriam se tornado quase desconhecidos com a distância e o tempo. Além disso, há uma tentativa do pai de disciplinar os filhos com uma seriedade desconhecida por eles até então. Morando em um apartamento em um grande condomínio e chegando em pleno inverno e neve, a família não consegue se adaptar à nova vida, mais confinada e com menos amigos. Os filhos, que agora não podem sair de casa, sentem falta da rua e da liberdade anterior; a mãe não entende a língua falada na televisão. O pai, que trabalha durante o dia, parece ter toda uma vida que não é compartilhada com a família. O deslocamento não poderia ser maior. Há ainda uma pressão exercida pelo pai para que a família se pareça menos dominicana e mais americana, uma transformação que deseja impor rapidamente.

A construção inicial desses personagens é um tanto clichê, com características que de fato são creditadas aos povos latinos. Isso contrasta com o fato de o autor ter nascido na República Dominicana e ter ido para os EUA quando criança. Essa origem acaba por construir uma credibilidade em torno do que diz, transformado-a em verdade. Ao escrever, mesmo que sendo ficção, parece ser capaz de narrar um pouco da vida das pessoas do país. Ao relatar mais sobre a vida das pessoas, atinge uma dimensão maior em seus dramas e cotidianos, tirando-as do lugar-comum. Díaz consegue criar então um cenário para essas pessoas, uma história que de certa forma as explica e justifica.

O ponto mais forte da obra acaba sendo exatamente sua originalidade de tema, criando uma voz e sentimentos fortes a personagens que seriam de outro modo mundanos e insignificantes. Ao mesmo tempo em que a descrição soa clichê, a maneira com que Díaz trabalha os dramas e as relações faz com que atinjam uma profundidade diferente daquela esperada.

É assim que você a perde

Junot Díaz
Trad.: Flavia Anderson
Record
222 págs.
Junot Díaz
Nasceu em Santo Domingo, na Republica Dominicana, em 1968. Seu primeiro livro foi a coletânea de contos Afogado. O primeiro romance que escreveu, A fantástica vida breve de Oscar Wao, ganhou o Pulitzer 2008. É assim que você a perde entrou na lista dos mais vendidos do New York Times. Hoje vive em Nova York, é editor da Boston Review e leciona produção textual.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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