Trágica beleza da poesia improvável

Absurdamente meticulosa e perfeccionista, Anne Sexton não tinha medo de se expor, não receava o escândalo
Anne Sexton por Fabio Miraglia
01/08/2024

…os livros dos quais precisamos são do tipo que caem sobre nós como um desastre, que nos fazem sofrer como quando morre alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos fazem sentir como se estivéssemos à beira do suicídio, ou perdidos em uma floresta distante de qualquer habitação humana — um livro deve ser uma espécie de machado para quebrar o mar congelado que existe dentro de nós.

Como epígrafe para o seu segundo livro de poemas, All my pretty ones (Todas as pessoas que amo, 1962), Anne Sexton usou o trecho acima transcrito, de uma carta de Franz Kafka a Oskar Pollak. Mesmo que, naquele ano, Sexton ainda estivesse no começo de sua carreira literária, será difícil encontrar uma definição melhor para a maneira como ela encarava a poesia e para todos os poemas que escreveria ao longo da vida.

Exceto por alguns poucos poemas publicados esparsamente em blogs de poesia e antologias, Anne Sexton, uma das mais importantes poetas do século 20 nos Estados Unidos, pouquíssimas vezes esteve ao alcance dos leitores brasileiros. Um quadro que a muito bem-vinda edição de Compaixão contribuiu para mudar.

Anne Sexton nasceu em 1928 (com o nome de Anne Gray Harvey) numa tradicional e rica família protestante da região de Boston, na Nova Inglaterra. Apesar das mais do que confortáveis condições materiais de que usufruía, diante de pais distantes e conflitos com as irmãs, ela chegou à adolescência sem ter sido uma criança feliz. Tornou-se uma jovem alta, esbelta e bonita a ponto de ter trabalhado como modelo, mas jamais deixou para trás dois traços que trouxe da infância: angústia e rebeldia. Não chegou a cursar uma faculdade e fez, como era esperado de moças de sua classe social, um casamento adequado, com Alfred Muller Sexton II. Em 1953, com vinte e sete anos, teve a primeira de suas duas filhas, Linda Grey Sexton, e, logo depois, uma severa depressão pós-parto, a primeira de uma infindável sequência de crises psiquiátricas que, em 1974, com 45 anos, acabariam por levá-la ao suicídio (depois de várias tentativas anteriores). Sexton teve duas filhas, e o pós-parto da segunda delas, Joyce, dois anos depois da primeira, trouxe outra forte depressão. Coincidência ou não, as crises mais pesadas de Sexton — incluindo a derradeira — costumavam ocorrer pouco antes de seus aniversários. Um dos diagnósticos que Sexton recebeu foi de bipolaridade, e é notório que a psiquiatria da época, misturando práticas arcaicas (como o eletrochoque) com medicamentos experimentais, frequentemente provocava, nos pacientes, resultados nada menos que desastrosos.

Versinhos terapêuticos
Por nascimento, formação e casamento, Anne Sexton tinha tudo para ter sido uma dona de casa bem de vida e insípida, mas as musas às vezes agem de maneira estranha. Numa de suas primeiras internações numa instituição psiquiátrica, o médico sugeriu que, para efeitos terapêuticos, ela escrevesse uns versinhos. A intenção era puramente terapêutica, de modo que o médico poderia ter igualmente “prescrito” cerâmica, dança, jardinagem ou qualquer coisa do gênero. Mas o fato é que “prescreveu” poesia. Sexton aceitou a sugestão, e suas primeiras tentativas intrigaram quem leu os poemas. Havia, ali, pelo menos em potencial, muito mais do que terapia.

Animada com os primeiros poemas e incentivada por pessoas próximas, Sexton se inscreveu em um curso de poesia em Boston, em 1957, ministrado pelo respeitado crítico e poeta John Holmes, onde ela rapidamente se destacou e, adicionalmente, conheceu Maxine Kumin, que viria a ser, pela vida toda, sua maior amiga e parceira literária. Pouco depois, já não tão crua, ela se matriculou num outro curso, agora na Universidade de Boston. O professor era ninguém menos do que Robert Lowell, e entre os alunos estava Sylvia Plath, de quem Sexton viria a ser amiga (e também rival). Lowell, além de ser já na época um poeta renomado, era, ao lado de William Snodgrass, um dos principais nomes da então florescente poesia confessional. Hoje um pouco fora de moda — e, particularmente, longe de ser meu gênero poético preferido —, o confessionalismo se opunha à poesia dominante na época, em que o poeta, a partir de um ponto de vista superior e distante, falava de temas externos a ele: a paisagem, o movimento das ruas, a mitologia grega, a história, o amor ideal… Para eles, o poeta deveria mergulhar dentro de si e falar de suas dores internas, sua sexualidade, sua intimidade, seus traumas (no Brasil, a poeta mais claramente influenciada pelo confessionalismo foi Ana Cristina César). Não é preciso ser muito perspicaz para concluir que a chegada de Anne Sexton à poesia, justamente pelo confessionalismo, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a ela, pois nenhuma outra “escola” se adequava melhor à poeta que ela pretendia e poderia ser.

Se o confessionalismo teve outros nomes importantes, como o próprio Lowell, Sylvia Plath e John Berryman (e mesmo que todos eles, em algum momento, renegassem sua fidelidade àquela “escola”), ninguém levou a coisa tão longe quanto Anne Sexton. Ela não tinha medo de se expor, não receava o escândalo. Nenhuma poeta, além dela, escrevia sobre o útero, sobre a menstruação, sobre as entranhas das relações familiares. Ela não ficaria “apenas” nisso, mas é inegável que a marca de Sexton foi a aparentemente infinita coragem de se expor. E não se iluda quem pense que a poeta simplesmente vomitava, em fluxo de emoções, o que lhe vinha à mente. Conforme escreveu a também poeta e uma das melhores amigas de Sexton, Maxine Kumin, no prefácio aos The complete poems, ela era absurdamente meticulosa e perfeccionista, chegando a produzir mais de duas dezenas de versões de um poema até que ficasse satisfeita com o resultado (não poucas vezes desistindo de vez, e destruindo o poema se achasse que o resultado não estava bom o suficiente).

Quanto à capacidade de não fugir de temas que poderiam gerar escândalo, vejamos, como exemplo, trechos do poema Menstruação aos quarenta, na tradução de Bruna Beber:

(…)
Eu queria tanto ter um filho…
Você! O que nunca veio à luz,
o nunca semeado e vingado,
de quem eu temia os genitais
o assombro e a respiração do filhote.
(…)
Minha morte saindo pelos pulsos,
Duas etiquetas,
O sangue como ramalhetes
Para florescer
(…)

Se é verdade que, até por conta do potencial polêmico de muitos de seus poemas, nunca houve unanimidade de crítica em relação à obra lírica de Sexton, de uma forma geral o peso dos elogios sempre foi maior do que o dos ataques, tanto assim que a poeta colecionaria prêmios, incluindo o Pulitzer de 1967. Com a amiga Maxine Kumin, criou também alguns livros infantis. Vivendo o tempo todo em oscilação entre fases emocionalmente melhores e piores, Sexton tentava levar uma vida familiar normal, mas era difícil. A única atividade que ela conseguia levar com constância e que, segundo amigos como Kumin, a mantinha viva, era a escrita.

Lirismo mais leve
Nem tudo, porém, eram poemas destinados a causar polêmica. Por vezes, um lirismo mais leve se manifestava. Em A fortaleza, por exemplo, “escrito durante um cochilo com Linda”, Sexton começa (em tradução de Bruna Beber):

Debaixo da manta rosa acolchoada
aperto e sinto como seu sangue pulsa.
Lá fora vejo que os bosques
por pouco vão dormir,
são restos do verão
feito enchente que a estante de livros convulsa,
restam feito promessas que não chego a cumprir.
(…)

Numa triste coincidência, as duas principais poetas confessionais se suicidaram. A primeira foi Sylvia Plath, em Londres, em 1963, depois de vedar portas e janelas do apartamento e abrir as bocas de gás do fogão. Onze anos depois, em outubro de 1974, Anne Sexton, após pedir a Maxine Kumin que revisasse seu último livro, tomou uma vodca, se trancou na garagem, entrou no carro, deu a partida e morreu envenenada pelos gases do escapamento. Essa combinação de suicídios das poetas e amigas entre si Plath e Sexton não poderia deixar de chamar a atenção. Muitas poetas se manifestaram, pedindo um basta a tanta tragédia. Falando em homenagem a Sexton, Adrienne Rich disse:

Já tivemos o bastante quanto a suicídios de mulheres poetas, o bastante de autodestruição como a única forma de violência permitida às mulheres.

E Denise Levertov, no obituário que escreveu sobre Sexton, afirmou que “nós que estamos vivas precisamos deixar claras, como ela não conseguiu, as diferenças entre criatividade e autodestruição” (não custa lembrar, por outro lado, que depressão e suicídio de poetas não era uma exclusividade feminina. Apenas para ficar entre os confessionais, Robert Lowell viveu crises pesadas, com as consequentes internações psiquiátricas, e John Berryman se suicidou em 1972 ao se jogar de uma ponte no rio Mississippi).

Como tudo o mais em sua vida que não fosse a escrita, o exercício da maternidade não foi das coisas mais tranquilas para Anne Sexton, o que não quer dizer que ela não tenha conseguido estabelecer uma relação próxima com as filhas, especialmente a mais velha, Linda Grey. Esta, também escritora, viria a ser a executora literária da obra da mãe e, em 2020, organizou e publicou pela Penguin, uma seleção de poemas de Anne Sexton, com o título Mercies — Selected poems, para a qual também escreveu um belo e comovente prefácio (há algumas outras seleções de poemas de Sexton em inglês). É esta edição que a Relicário traz agora para o público brasileiro.

Ainda que qualquer seleção não escape de critérios subjetivos, resultantes das preferências do organizador, as escolhas de Compaixão são muito felizes, cobrindo toda a trajetória da poeta, desde o livro de estreia até as publicações póstumas. E, para a edição brasileira, foi escolhida uma tradutora segura e competente, Bruna Beber.

Desafios da tradução
Diz um velho ditado que o poema viaja mal e, como todo velho ditado, traz uma pitada de verdade, pois a tradução de poemas é um negócio pra lá de complicado. Trata-se do gênero literário em que a forma e o conteúdo são mais visceralmente imbricados, em que pouco importa o que se conta, mas como se faz isso. E esse como precisa lidar com sutilezas da cultura e da época de origem, com ritmo, respiração, musicalidade, duplos sentidos, metáforas, rimas… Assim, diante de um poema estrangeiro, a tradução, num sentido estrito é, a rigor, impossível. Paradoxalmente, diante de tal “impossibilidade”, são quase infinitas as possibilidades quando se faz a transposição de poemas para outras línguas. E, ainda que “viaje mal”, o poema precisa viajar. O encarregado do “transporte”, o tradutor, sabe perfeitamente quão ingrata é sua tarefa, e se vira como pode. Na prática haverá as traduções mais literais, que buscam uma maior fidelidade em relação ao original, e as mais autorais, em que o tradutor interpreta a intenção do poeta na língua de origem e recria o poema na língua de destino. O mais conhecido exemplo brasileiro de tradutores autorais são os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, que se dão tamanha liberdade que, em muitos de seus trabalhos, podem ser considerados, sem exagero, coautores dos poemas traduzidos. Nenhuma abordagem na tradução é, em si, certa ou errada; é o resultado, apreciado pelo leitor, que dirá, caso a caso, o quanto a solução adotada pelo tradutor funcionou. É por isso que as edições de poemas traduzidos devem ser bilíngues. Mesmo sem dominar a língua de origem, é importante que o leitor possa cotejar, verso a verso, estrofe a estrofe, as soluções apresentadas pelo tradutor.

Voltando a Compaixão, Bruna Beber realizou uma tradução que, ainda que não tão radical como as dos irmãos Campos, pode ser situada dentro de um espectro mais para o autoral do que o literal. Vejamos os versos de abertura do poema Just once / Só uma vez, que usei como exemplo num recente curso de tradução de poemas:

Just once I knew what life was for
In Boston, quite suddenly, I understood;

Só uma vez entendi a serventia da vida
De supetão, em Boston, compreendi;

No curso, nenhum dos alunos e alunas (sem conhecer previamente a tradução do livro) optou pelas palavras “serventia” e “supetão”, preferindo, por exemplo, “para que serve” e “de repente”. Trata-se de um caso em que, ainda que as escolhas da tradutora sejam irretocáveis, elas pendem mais para o autoral, na qual é deixada claramente a marca pessoal dela. De todo modo, como as traduções de poemas são sempre e necessariamente passíveis de reflexões críticas por parte do leitor, é essencial que as edições sejam sempre bilíngues, e que original e tradução apareçam juntas, face a face, em páginas pares e ímpares, para serem facilmente comparadas.

Se a edição da Relicário tem um pecado, é justamente esse. Ainda que bilíngue, em vez de original e tradução aparecerem juntas, como deve ser, o livro traz os poemas traduzidos em sequência, e as versões originais listadas no fim do volume, como se fossem notas bibliográficas. As páginas onde estão as versões originais aparecem referidas no índice, bem longe das traduções. Dessa forma, para ver o original, você precisará ler a tradução, voltar ao índice e então buscar, no fim do volume, a página referida, ou, para não se perder, usar pelo menos três marcadores de páginas. Assim, ainda que seja possível fazer os cotejamentos, este será um processo bem pouco prático. Mas este é um detalhe que em nada diminui a importância de termos em mãos uma seleção tão abrangente e bem traduzida da poesia de Anne Sexton. Inegavelmente um dos nomes mais importantes da poesia norte-americana do século 20, Sexton, ao contrário, por exemplo, de sua amiga e rival Sylvia Plath, e mesmo tendo uma obra mais extensa e de maneira alguma inferior, é menos conhecida e tem sido muito menos lida, no Brasil, do que esta última. Tomara que a chegada de Compaixão possa começar a mudar esse quadro.

Compaixão
Anne Sexton
Trad.: Bruna Beber
Relicário
374 págs.
Anne Sexton
Nasceu em 1928, em Newton, Massachusetts (EUA). Dona de uma obra poética notável, incluindo To bedlam and part way back (1960) — seu primeiro livro, que refletiu suas experiências em uma instituição psiquiátrica —, All my pretty ones (1962), Live or die (1966), que concedeu à autora o prêmio Pulitzer de Poesia, e Love poems (1969). Morreu em 1974.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho