Tragédias cotidianas

"Céu ausente" é composto por personagens degradadas, homens e mulheres que perderam, há muito, qualquer esperança
Gustavo Rios, autor de “Céu ausente”
01/09/2023

Horacio Quiroga abre seu Decálogo do perfeito contista com uma determinação que até hoje — o texto é de 1927 —, quase cem anos depois de escrito, causa incômodo em seus comentadores: “crê num mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchekhov — como na própria divindade”. Diante da provocação, as reações, normalmente, são de desagrado. “O tempo parece ter-se encarregado de demonstrar que duas das divindades citadas, Maupassant e Kipling, tinham os pés de barros”, assegura Charles Kiefer, enquanto Miguel Sanches Neto, também cético, busca uma postura mais dionisíaca: “Não existem escolas de um só mestre. Beba de todas as fontes; cada uma delas tem um elemento mineral necessário para solidificar seu estilo”.

É um exercício interessante buscar os mestres de cada contista, no entanto. Ao ler Céu ausente, de Gustavo Rios, salta aos olhos a poética de Dalton Trevisan. Estamos diante de um ambiente de degradação habitado por personagens degradadas, homens e mulheres que perderam, há muito, qualquer esperança. No entanto, este universo onde circula desde sempre o Vampiro está renovado, mais que revisado, por uma estética moderna. As dores são as mesmas, mas o olhar e as provocações são novos.

Novo também é o ambiente. Nos acostumamos com os cemitérios de elefantes de Dalton, onde bêbedos e prostitutas decaídas convivem com empregadinhos do comércio e servidores públicos de escalão nenhum. Gustavo Rios traz esta decadência para uma classe média urbana que não chegou a gozar nada além do descanso semanal, e que, de certa forma, fez a literatura de autores como Lúcio Cardoso e Hermilo Borba Filho.

Ainda hoje lembro o medo, a voz de nosso pai ao despertar: éramos três a machucar a terra antes do Sol. Como não desejar outra vida? Logo eu que sempre fui o avesso, a agonia que brotava na insônia, o casulo. Repetíamos o dia anterior no seguinte.

O livro abre com este desespero frente à impossibilidade de resistência, pois a vida será sempre a repetição eterna do dia anterior. E isso se repete, sem monotonia, nos trezes contos do volume. Para evitar, milagrosamente, uma prosa maçante o autor se apoia numa vertente poética e na imprevisibilidade das cenas seguintes.

“Acho que jogo no time da narrativa curta e aguçada que busca uma voz poética própria. E consegue, depois de trabalhar bastante.” A declaração determina seus caminhos, o retrabalho incansável. Reescrever, reescrever e reescrever. Assim chega a uma estética, senão própria e inovadora, profundamente encantadora e envolvente. Seu universo é degradado, enfim, mas a elegância com que o desfia faz do livro uma reunião de boas histórias bem contatas.

Poesia crua
Para tanto usa uma linguagem, já se disse, poética, mas de uma poesia moldada pela crueza. “Palavras foram feitas para dizer”, ensinava o mestre Graciliano Ramos, e é por aí que caminha Gustavo Rios. Não teme os termos, por mais cruéis que eles sejam:

Dulcineia crescia. A pele dourava sob a vertigem dos dias, o corpo um esteio de lascívia e medo. Todos os caras do bairro sabiam, devoravam-na com os olhos, faróis sujos e incandescentes miravam a garota, também latejavam (sem afeto, entretanto).

Aqui percebesse uma das características mais caras e difíceis da narrativa curta: a quebra, a necessidade de surpreender o leitor com uma reviravolta narrativa, uma desconstrução súbita da própria fluência do texto:

(…) gostavam daquela praia. Ambos num dialeto próprio, insondável. Às vezes deitavam sobre a areia mesmo, havia amor para tanto: não importava. Tânia via os coqueiros se dobrando ao rés do chão. E as barracas cobertas de sol nas manhãs que surgiam. (…) Isso durou até ele ser preso. (…) Ela foi em seguida.

É o soco necessário para despertar o leitor e dizer que ele não está frente a uma literatura linear, plana, vazia.

Este mesmo espanto se vê na capacidade do autor em descrever cenários de maneira rápida, direta, recheando-os com um lirismo que contrasta com o universo ao redor. Estas surpresas engrandecem o livro. E de certa forma reacendem a esperança de renovação da própria narrativa contemporânea, tão presa a causas e denúncias, tão marcada por distopias cansativas. Cada vez mais o leitor sente necessidade de trazer a literatura para seu leito natural. E Gustavo Rios faz isso com arte e brilho.

A chamada escola do Romance de 30, com Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado, ponteou a literatura com universos aparentemente antiliterários. Num segundo momento Marques Rabelo e Erico Verissimo deram cenários urbanos a estas angústias. E assim completou-se o espaço ficcional do homem comum, brasileiro, urbano ou agrário, unificado em suas dores e misérias. Gustavo Rios transita nesta tradição. Mesmo aliando-se ao humor, como faz no conto A noivinha do Cabula, publicado na antologia As baianas, o barro primário com que trabalha é a tragédia. Dando, no entanto, a ela o componente necessário de lirismo e até sonhos.

Enfim, a literatura é a causa primordial de Gustavo Rios. Há denúncias? Sim. Aponta injustiças, também, mas não lamenta a condição inferior de quase todos seus personagens. Descreve a vida, e ponto. Sem beletrismos parnasianos fez literatura. Tudo é literatura em suas narrativas. E certamente aí está sua mais perfeita qualidade como escritor.

Céu Ausente
Gustavo Rios
Cepe
124 págs.
Gustavo Rios
É autor dos livros de contos Allen mora no térreo e O amor é uma coisa feia, além do livro de poesia Rapsódia bruta — Poemas e outras brutalidades. Ele é baiano e mora em Salvador.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho