Tragédia anunciada

Em “Uma margem distante”, Caryl Phillips mostra que a busca da felicidade, além de difícil, pode não levar a nenhum lugar
Caryl Phillips: capacidade de tratar de questões complexas de maneira sutil e elegante.
01/05/2006

A Europa vive “tempos interessantes”. Quem possui o hábito de acompanhar o noticiário há de considerar esta afirmação inicial um tanto redundante, vaga e pouco objetiva. Em contrapartida, aqueles menos acostumados com a política internacional também já têm percebido alguma alteração no ambiente e, sobretudo, na forma como o senso comum se refere ao velho mundo. Afinal de contas, e só no ano passado, com a crescente preocupação de terrorismo internacional, entre tantos outros acontecimentos, sobrou até para um cantor de música popular brasileira, o “Seu” Jorge, que foi preso no aeroporto de Londres, sem mencionar a morte do eletricista mineiro Jean Charles de Meneses, que foi baleado pela Scotland Yard sob acusação (como se viu enganosa) de ser terrorista. Coincidência ou não, o romance Uma margem distante, do escritor caribenho Caryl Phillips, traz uma história que flerta com a polêmica da imigração, tema que tem gerado inúmeros debates sobre direitos humanos, justiça social, ética. No romance, Phillips, ao contrário do que se pode esperar, não escreve um libelo político, daqueles que poderiam figurar dentro da perspectiva de “arte engajada”. Antes, Uma margem distante é um romance que disserta sobre as relações humanas tendo como pano de fundo, se o trocadilho for permitido, alguns aspectos das relações internacionais.

Logo no início do romance, no entanto, o que surge é a voz de outra personagem, a srta. Dorothy Jones, que na primeira frase garante: “A Inglaterra mudou”. E o leitor descobre que tal observação se deve, em parte, ao fato de como o lugar em que ela mora é visto na teoria e na prática. Pois os antigos moradores daquela região rechaçam o termo “novo empreendimento” e adotam, deliberadamente, “as novas casas na colina”. Nada vem do nada. Ao longo de todo o livro, o autor mostra como acontece a diferença de opinião de quem sofre e de quem acusa determinadas situações. E assim é com Dorothy. Solitária, ela observa e calcula com precisão a medida da alma dos vizinhos e do ambiente que a cercam. Da aluna de piano insolente ao motorista de casa ao lado, que, por sua vez, tem um jeito esquisito de se comportar em sua sutileza de gestos.

São as luvas que chamam a atenção não só da professora aposentada, mas também a dos leitores. Afinal, numa época em que os jovens, quase todos, se comportam como bárbaros na tomada de Constantinopla, este homem, Solomon, se destaca. Infelizmente, não só para ela. Há quem não o queira ali, na Inglaterra, justamente por ele ser um imigrante e, por que o espanto?, porque é negro. O desprezo, que ele não parece reparar tanto, é logo substituído por ódio e ameaças. E tudo parece caminhar para um fim mais ou menos esperado, redentor e simplista. Quantas não foram as vezes que o cinema e a literatura não corrigiram, à sua maneira, injustiças com as classes menos favorecidas? Mesmo hoje, parece que existe uma tendência em politizar e tornar a arte politicamente correta, incapaz de cometer qualquer mal, pronta a reparar o infortúnio dos miseráveis na África ou dos torturados pela ditadura militar no Brasil, entre tantos outros casos. Em Uma margem distante, no entanto, essa correção não acontece. Em vez disso, Caryl Phillips prefere contar a trajetória de uma tragédia anunciada.

É a partir do segundo capítulo que todos as personagens e suas histórias trágicas, cada qual à sua maneira, são apresentadas. Um Gabriel, imigrante africano, aparece consternado com o seu futuro na prisão e com o colega de cela, o muçulmano Said, que agoniza na cama mais próxima. Aqui, surgem outras estratégias de Phillips para arrematar a história. De um lado, a narração deixa de ser em primeira pessoa e passa para terceira, tornando-se mais uma observação do que um relato pessoal. Por outro lado, o leitor começa a reparar nas novas personagens, que, inicialmente, nada possuem em comum.

Inúmeras vozes
É no estilo de contar a história que o romance de Phillips conquista o leitor. Em outras palavras, o vaivém, ao contrário de parecer chato, se justifica graças às inúmeras vozes que se intercalam para contar histórias diferentes, mas que estão absolutamente interligadas. Tal ligação se dá não somente porque as duas personagens principais, o imigrante Solomon e a professora aposentada Dorothy, são, em determinado momento, vizinhos. A relação entre ambos é a tônica mesmo antes de se conhecerem, como fica provado à medida que descobrimos seus universos particulares. Solomon, por exemplo, busca anular o seu passado com a vida nova na Inglaterra, um lugar onde não precisa lutar numa guerra civil declarada, mas tem de lidar com o preconceito daqueles que não o desejam ali. Já a senhorita Jones não consegue escapar das derrotas recorrentes em sua vida, como casamento fracassado e frustração no emprego. O que ambos têm em comum? A busca constante por melhores condições de vida, tanto no plano social como sentimental, e, em última análise, a busca pela felicidade. Esta, no entanto, parece, de acordo com o que se lê no romance, cada vez mais distante daqueles que a procuram, como se fosse o horizonte à margem do nosso alcance.

Se a felicidade não se compra com uma passagem ao primeiro mundo ou com um casamento perfeito, como encontrá-la? Solomon tenta a amizade e o companheirismo das poucas pessoas que parecem compreendê-lo. Infelizmente, mesmo nessas ocasiões, o que ele consegue é mais decepção, ainda que nada tenha sido feito para magoá-lo. Já Dorothy corre atrás do escape mais à mão: romances tórridos que nada mais são do que passageiros. E aqui, novamente, o desencanto só se mostra mais e mais contundente, a ponto de fazê-la perder o que ela não esperava. Quando tudo parecia perdido e remediado, Dorothy e Solomon se encontram. E parecem ter achado um no outro o que tanto procuravam. Será que é possível reverter o destino e correr atrás do tempo perdido? Mais uma vez, o autor não se deixa tomar pelo óbvio.

A maneira como Caryl Phillips escreve sobre a solidão causa espanto pela violência silenciosa, marca inconfundível da maldade. A sensação de impotência diante de determinadas cenas também inquieta o leitor. Entretanto, ainda que aterrador, o livro se mostra essencial para a literatura de nosso tempo. Alguém poderia dizer que o motivo é simples, uma vez que o romance aborda questões urgentes da globalização. Outros afirmariam que Phillips, por ser caribenho, representa a voz dos excluídos, daqueles que por muitos anos não figuraram no alto-escalão da literatura ocidental. Os argumentos têm lá seu sentido, de fato, mas reduzem a importância de Uma margem distante.

O motivo pelo qual o romance se faz obrigatório é o fato de ser um elogio à prudência; em outras palavras, a capacidade de ser uma obra que trata de questões tão complexas de maneira tão sutil e elegante, não utilizando artifícios espúrios como linguagem chula ou descrições naturalistas de cenas de sexo. O autor prefere sugerir, indicar, conduzir ao simples processo de “colocar o dedo na ferida”, como diz o chavão. Decerto que alguém pode tomar o tema da imigração como uma prova contrária dessa indução estilística. Mas ao contrário de outros livros e filmes, este não esclarecerá como é o processo da política externa européia num mundo pós-11 de Setembro. Os temas atuais, mais do que qualquer coisa, são meras ferramentas para que possamos enxergar o que há de desumano em nossas relações sociais.

Ao final, mudou a Europa ou mudou o mundo? A resposta é difícil, mas a leitura desta obra de Caryl Phillips esclarece que até mesmo na ficção a felicidade não existe na sua plenitude. Incômodo, tristeza, dor, angústia, impotência e indignação resistem ainda que todos os desejos estejam a nosso alcance. Talvez em outras paragens, decididamente em outras margens. Ainda não se sabe. Até no momento em que escrevo este texto.

Uma margem distante
Caryl Phillips
Trad.: Maria José Silveira
Record
348 págs.
Caryl Phillips
Nasceu, em 1958, na ilha caribenha de São Cristóvão. Atualmente, vive entre Londres e Nova York, onde leciona na Universidade de Colúmbia. Já escreveu para televisão, rádio e teatro. É autor de três livros de não-ficção e sete romances. Em 2004, Uma margem distante ganhou o Commonwealth Writers Prize, um dos mais importantes prêmios literários de língua inglesa. Mais informações sobre o autor podem ser obtidas no site www.carylphillips.com.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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