Tonalidades e nuanças

Em "Arquitetura do arco-íris", Cíntia Moscovich transita da mais singela observação às mais cruentas, doloridas e áridas sensações humanas
Cíntia Moscovich, autora de “Arquitetura do arco-íris”
01/12/2004

“Tornei-me adulta num grande esforço de construção e descobri que as lágrimas são o sal da dor”, diz a personagem-narradora do conto Bonita como a lua, de Cíntia Moscovich, texto que fecha o volume Arquitetura do arco-íris. Curioso que esta frase venha justamente na mais leve das histórias do livro, uma quase-crônica que se afasta um pouco da densidade que perpassa de ponta a ponta os escritos.

Esta dor, que vem mais profunda em outros textos, aparece aqui como um requisito: há, sim, possibilidades de crescimento e aprendizado, mas todas elas passam, invariavelmente, pela dor. Pensando um pouco no título do livro, como explicar o projeto arquitetônico de algo tão abstrato, de algo que invariavelmente surge sempre depois da chuva, às vezes tempestade?

Junto com o cheiro de vida que nos encanta, vindo do choque da terra escaldante com o frescor dos grossos pingos, surge no céu uma mancha multicolorida e lúdica, um sinal de reinauguração e esperança que remete à caixa de lápis de cor, novinha, recebida com entusiasmo na infância. Deste desfile de tonalidades e nuanças, nos fala Cíntia Moscovich em seu novo livro.

Numa nota colocada ao final, a autora explica: este livro foi escrito entre maio de 2001 e fevereiro de 2004. A observação corrobora a impressão de minuciosa elaboração pela qual passaram os contos. Tudo é muito coeso, às vezes duro, mas sem arestas, tudo aparado. As poucas rebarbas notadas, deixadas no caminho em aparente descuido, estão ali propositadamente: são o tempero da trama, o toque de alegoria que cintila em cômodos e desatenções, o sal da dor, enfim.

Na orelha do livro, Luis Fernando Verissimo diz algo seriíssimo, apesar de sua usual verve humorística: “Escrever bem muita gente escreve. Ou tem o dom, ou aprende, não há mistério. E apenas escrever bem não é uma arte desprezível. Se ‘apenas’ escrevesse bem, a Cíntia já seria superlativa: há coisas neste livro tão bem escritas que tiram a respiração. Mas ela é do tipo que sabe que escrever bem é só o começo, e é só o meio. O fim de escrever bem é compartilhar uma realidade inédita ou um sentimento importante com o leitor, de tal maneira que o que está escrito e como está escrito se completam, e o puro engenho do texto desaparece, dá para entender?” Precisa dizer mais? Mas como minha intenção aqui é justamente esta, digamos mais.

Dividido em duas partes, como uma opereta em dois atos, há movimentos andantes e vívidos, outros mais lentamente derramados no papel. A poesia está em todo lugar, como que oculta por detrás da mobília: “Sem que eu pedisse — sem que eu merecesse —, colocara, ao lado do bule, quindins lisos e perfeitos. E como me oferecesse sóis de gemas, a fome veio” (O tempo e a memória); “Eu me impressionava com aqueles disparates, mas ainda mais com o rosto desfocado de anjo, toda ela aprisionada numa natureza de sol vermelho, um rosto cintilante pintado aqui e ali por lugares castanhos” (Cartografia); “O outono tornara douradamente preciosas as copas das árvores, e pisávamos nas sombras projetadas nas pedras desta cidade tão meridional” (A queda do arco-íris).

O que mais impressiona na prosa de Cíntia é a capacidade de transitar da mais singela e poética observação para as mais cruentas, doloridas e áridas sensações humanas num saltar de parágrafos. No conto O escândalo das estrelas na noite, a personagem, duas linhas após experimentar um prazer ao qual se desacostumara, reflete: “Sentar junto ao marido e à filha era como ter de engolir a seco um punhado de terra, desconforto de aspereza na garganta”. Por todo o caminho há, com variações de secura, esta aspereza — chegando aos extremos mais impressionantes na segunda parte do livro.

Ao contrário de alguns autores seus contemporâneos, a análise das situações dolorosas em Cíntia Moscovich chega às profundezas, mergulha nas mais abissais, escurecidas e hediondas regiões da alma humana e de lá retorna com uma eficácia notável. Para a dor não há filtros, não há lentes que atenuem ou mascarem as fímbrias do dissabor. A autora não poupa o leitor do baque surdo que é o golpe da solitude, o arremate do abandono: “Cada pessoa é uma harmonia de solidão. Uma música interior e inaudível. O amor, porque admite a solidão, pode viver, e vive, numa harmônica irrealidade”. Pensando nesta forma de olhar, neste despudor diante do sofrimento, há também contemporâneos em uníssono (já que se adentrou ao terreno dos etâneos): Marilene Felinto, Rubens Figueiredo e Marçal Aquino.

Aqui e ali há alusões à música e às cores, mesmo que por vezes de forma negativa: o branco-e-preto e a ausência de melodia fazem sombra a “arreganhos de amarelo” e sonatas de Beethoven ou peças bem torneadas de Mozart. As metáforas sinestésicas trazem, também à mente do leitor, uma das mais enigmáticas autoras da literatura brasileira: Clarice Lispector. Cíntia Moscovich homenageia Clarice com algumas releituras de seus contos mais marcantes: Uma galinha e Legião Estrangeira estão recontados em O telhado e o violinista; Laços de família e A imitação da Rosa recriam-se em Os laços e os nós, os brancos e os azuis. Porém é este detalhe, aqui, mais um luxo. Não se trata de mera aproximação, é capricho puro da autora, quase uma brincadeira de esconder com quem conhece Clarice Lispector e relembra deste ou daquele texto ao atravessar o arco-íris de Cíntia.

Há, ainda, uma diferença fundamental: na obra de Lispector, a incapacidade de conciliação entre a vida embebida no éter da alienação e o mundo das idéias, das artes, faz de muitos textos objetos de infinitas discussões na academia e entre seus leitores, que raramente levaram ou levarão a muita coisa: para a autora, o impasse está instalado, e ponto final. Ou reticências, ou mesmo dois pontos, como Clarice costumava concluir — inconclusivamente — muitos de seus escritos.

Para Cíntia Moscovich, há na vida um equilíbrio dinâmico que permite a resolução do impasse, dos conflitos. Dos dez textos do livro, cinco terminam com um final ‘trágico’, outros cinco com luzes no fim do túnel. Não há a ilusão do final feliz insubstituível, mas nos vaivens dos acontecimentos e acometimentos, e apesar da devastação, há não o pote de ouro e os duendes, mas as cores esparramadas no céu, numa coleção de matizes bastante animadores. Percebe-se, então, a origem da diversidade: são opostos os projetos ficcionais e a filosofia que, através de sua arte, cada uma das autoras constrói. No caso de Cíntia, talvez o motivo venha da delicadeza de quem teve como avós duas Rosas.

O novo livro de Cíntia Moscovich, portanto, repleto de pausas de fração de semifusa, que podem conter tão grande tristeza, termina como um pôr-do-sol em Porto Alegre, exibindo a infinidade de possíveis cores e brilhos que a natureza sabe fazer. Termina assim mostrando um pouco do invisível exoesqueleto que dá leveza e luminosidade à arquitetura do arco-íris, atravessa bemóis e sustenidos e deságua majestosamente em sol maior.

LEIA ENTREVISTA COM CÍNTIA MOSCOVICH 

Arquitetura do arco-íris
Cíntia Moscovich
Record
171 págs.
Moacyr Godoy Moreira

É escritor. Autor de Lâmina do tempo e República das bicicletas.

Rascunho