Amigo, se o seu interesse por cerveja é zero, se sua curiosidade pela bebida é negativa, pode pular para o segundo parágrafo do primeiro subtítulo, ok?
No momento em que começo a escrever este texto, estou na garagem de casa, com uma panela de 32 litros à minha frente, fervendo minha próxima leva de cerveja — clarinha e bem defumada que, no copo, lembrará bacon ou churrasco. A água está prestes a acabar em São Paulo, então, se ficar sem banho será inevitável, previno para que não fique sem a bebida sagrada de cada dia (mentira, que de segunda eu não bebo).
Fazer cerveja em casa é simples, mas extremamente trabalhoso. Primeiro, preciso moer cerca de cinco quilos de malte. Depois, fazer uma espécie de chá com os grãos (daí vem o açúcar). Coado o chá, passo para outra panela e fervo o líquido enquanto acrescento o lúpulo que vai amargar o negócio. Aí tem que resfriar, passar para um balde, colocar o fermento e deixar que a levedura transforme os açúcares em álcool — o que leva ao menos uma semana. Não acabou ainda. Alguns dias de descanso para que a bebida mature são bem-vindos. Coloco mais um pouco de açúcar e engarrafo. Outros quinze dias para que as leveduras consumam esse novo açúcar e deixem a cerveja carbonatada na garrafa. Então é gelar — não muito, dependendo do estilo — e, finalmente, beber.
Agora você que não levou em conta o que escrevi no primeiro parágrafo e continuou lendo até aqui me pergunta: tá, Rodrigo, e que diabos isso tem a ver com literatura?
São duas as respostas. Primeiro, cervejeiro caseiro é um bicho chato, bitolado e exibido, e não perde uma oportunidade de falar sobre o seu hobby. Segundo, se não fosse por isso, provavelmente não teria dado atenção ao livro que é alvo desta resenha — se é que ainda podemos considerar isto uma resenha.
Jesus era dos nossos
Daqui a pouco eu entro de fato no livro, prometo, mas antes, mais um pouco sobre cerveja. Sabe aquela história de que Jesus transformou água em vinho? Então, provavelmente é balela. Segundo historiadores — que talvez também sejam cervejeiros caseiros, vai saber —, os primeiros registros da passagem diziam que o milagreiro transformara água em uma bebida fermentada. Aí chegou o Império Romano, e a Igreja Católica se apropriou da história do carpinteiro e já tascou que a tal bebida fermentada era vinho. Contudo, pelos costumes e pela agricultura da região, esses historiadores apontam que a chance de que fosse cerveja é muito maior.
Daí que o livro do português Afonso Cruz se chama Jesus Cristo bebia cerveja, e quando o Pereira (saudades de ver o Julián Ana chamando assim o editor deste jornal) me mandou a lista com trocentas opções de livros para resenhar, obviamente que indiquei tal obra. E fiz bem.
Jesus Cristo bebia cerveja traz a história de Rosa, cuja mãe gostava de uísque e “preferia homens feitos de lama e de trabalho, com as unhas sujas de bebedeiras de aguardante caseira, com hálito de metanol”, e cujo pai (baixo e franzino, mas de grande força) “bebia demasiado e depois saía para a rua a gritar com toda a gente, e ninguém se atrevia a pará-lo. Se alguém lhe fazia frente, pegava num copo de vinho com a mão esquerda e lutava usando a direita, sem nunca entornar uma gota” – ou seja, um tipo bastante comum de pau d’água.
Enquanto ele trabalhava, a esposa ficava em casa o chifrando. Foi presenciando uma dessas cenas que Rosa orou a ponto de achar que sua mãe se transformara na Virgem Maria, que viria a beber nas mesmas garrafas que a verdadeira mãe bebera. Quando contou isso ao padre em sua primeira comunhão, teve as saias puxadas e tomou “umas palmadas no rabo”. Dali pra frente a garota faria sucesso entre os homens.
Já sem mãe — que foge com um amante e morre pela ausência — e sem pai — que morre de fato —, Rosa passa a viver somente com Antónia, a avó semisurda que precisa de ajuda para praticamente tudo, inclusive ser transportada até a igreja em um carrinho de mão, já que não gosta da cadeira de rodas. É o desejo da avó conhecer a Terra Santa que move a narrativa. Sem dinheiro para a viagem — que tampouco poderia ser feita por conta das condições físicas da velha —, Rosa conta com a ajuda de homens que caem de amores aos seus pés — um professor, um padre e um pastor de ovelhas — para ludibriar Antónia.
Resolvem transformar uma pequena aldeia do Alentejo em Jerusalém, obrigando “as pessoas a usarem camisa branca e fatos pretos, barbas postiças, chapéus e aqueles caracolinhos que os judeus usam”, diz o professor. Um bar que funciona dentro de um velho avião desativado é maquiado para que aparentasse ainda ser uma aeronave funcional. Uma vez lá dentro, a velha é dopada para fingirem que dormiu antes mesmo de decolarem e assim permaneceu ao longo de toda a viagem.
Abaixo o vinho
Como é possível perceber, os absurdos fazem parte da narrativa de Cruz. O improvável se manifesta tanto em cenas quanto nos bons personagens. Um adolescente é espancado pelo pai após dizer que gostaria de ser padre. “Não quero preguiçosos na família”, previne o agressor, um “livre-pensador capaz de suportar tudo, menos a estupidez”. Já o professor entende que uma lata de tinta pode ser uma das armas mais poderosas do mundo. É com essa tinta que pinta versos de Diógenes de Oenoanda nas paredes da casa da qual Rato é o caseiro – e este “cerra os punhos” ao ver o “vandalismo filosófico, mais concretamente epicurista”.
Outra preocupação recorrente de Cruz é trabalhar com frases de efeito, algo que normalmente traz resultados péssimos. Mas não é o caso, o português é um bom frasista. Algumas que me agradaram: “A alegria gasta-se como as velas acesas, e apaga-se”, “A nossa morte não acontece quando somos enterrados, acontece continuamente: os dentes caem, os joelhos solidificam, a pela engelha-se, os amigos partem. Tudo isso é a morte. O momento final é apenas isso, um momento”, “Um homem de ciência é uma verdade cercada de estupidez por todos os lados. O segredo está cá dentro, não como os místicos de supermercado gostariam; mas está cá dentro”. Dariam bons ímãs cafonas de geladeira.
Mas voltemos à falsa Terra Santa. Da mesa em que se desenrola uma representação da Santa Ceia, o professor repentinamente manda retirar o vinho e começa um discurso:
— Ninguém sabe, caros Jesus Cristo e seus apóstolos, por que razão o homem se sedentarizou […], vou explica-vos[…]: foi a cerveja. Para ter cerveja era preciso cultivar. E assim nasceu a sociedade como conhecemos. Graças à cerveja, temos hospitais e bibliotecas. Não existiriam livros se não fosse a cerveja. Não existiriam escritores nem ciência […]. O Egito tinha inúmeras cervejarias e exportava grandes quantidades para a Palestina. O que se bebia no espaço geográfico em que Cristo habitava era cerveja. O vinho era uma bebida de romanos, dos invasores. Cristo não iria beber a bebida dos ricos, dos opressores […], mas dos pobres, das putas e dos pecadores.
Sabe tudo, professor! Depois passa aqui para tomar uma comigo.