Repare: todos os humanos ao seu redor, e mesmo os de fora de sua órbita, estão, o tempo todo, ou quase o tempo todo, a falar. A respeito de alguém. Ou de algo. Preste atenção: os humanos falam, sim, do próximo, do distante e do mais do que próximo. E, em grande parte do tempo, reclamam. O outro fez ou deixou de fazer isto ou aquilo. Atente: há poucos satisfeitos. Seja no andar debaixo ou no de cima. Seja na saúde ou na doença. Seja na labuta ou em férias. Seja branco ou negro. Seja idoso ou jovem. Seja lá o que for e onde estiver. Isto é humano, demasiadamente. E parece não haver solução para o fato.
Tudo o que foi dito no parágrafo anterior, e muito, muito mais, foi problematizado literariamente por Rubens Figueiredo em seu mais recente livro, Contos de Pedro. O autor produziu nove contos. E, em todas essas peças de ficção, apresenta enredos em que os personagens centrais se chamam Pedro. São sujeitos, ou objetos?, diante de impasses. Nenhum deles se encontra em situação confortável. Independentemente, a exemplo do que foi articulado no primeiro parágrafo, de posição social. A quantidade de dinheiro armazenada em suas contas bancárias não ameniza o mal-estar. Ao contrário. Cada um carrega a sua insubstituível cruz. Na ficção de Rubens Figueiredo, ser humano é ser Pedro. E ser Pedro é ser gauche.
Pedro é pedra, e na literatura de Rubens Figueiredo os personagens Pedros, pedras, rolam, seguem. Há o Pedro que migrou de uma pequena cidade interiorana em direção a uma metrópole onde só levou pedradas, e fez o caminho de volta, para vir a receber ainda mais pedras. Há o Pedro que sobrevivia com restos, morava em escombros e, para permanecer vivo, tinha ainda que desviar de balas. Há o Pedro que desejava ser reconhecido intelectualmente, publicou seu livro, enriqueceu, mas não se conformava com a existência de uma personagem que, para ele, se traduzia em sombra — a ser eliminada. Há o Pedro músico que, a exemplo do Pedro milionário e escritor, também sofria diante da presença de uma outra personagem. Há o Pedro que buscava o calor das mulheres de aluguel. E há outros Pedros. Todos a se mover em meio ao desconforto, insatisfeitos, carentes, e, ao final de cada um dos enredos, o que se descortina, para todos os Pedros, não é nenhuma Pasárgada. Eles podem se modificar, desaparecer ou mesmo continuar, mas o porvir sugere algo, no mínimo, doloroso.
Densas nuances
Os Pedros de Rubens Figueiredo não manifestam, necessariamente, o mal-estar por meio da verbalização. A proposta literária do autor, neste livro, trabalha com a ação e a reflexão dos personagens. São criadas e sugeridas nuances densas a respeito de cada um dos Pedros. Os contos se revelam, comparados com a média que se pratica no Brasil literário contemporâneo, longos. Isto se traduz, entre outras coisas, em narrativas profundas a respeito de impasses, contradições e demais características dos personagens.
A última palavra, o mais extenso dos Contos de Pedro — são mais de 40 páginas — é, também, aquele em que Rubens Figueiredo explorou com mais intensidade as facetas do seu personagem central. É uma peça de ficção que dialoga com o universo literário e os seus bastidores. O Pedro em questão é um sujeito que descobre a leitura e flerta com a possibilidade de vir a ser um autor. A narrativa, em terceira pessoa — como a maior parte dos textos deste livro —, a partir do distanciamento do narrador, apresenta o personagem em ação, a refletir, e, sobretudo, explora as diversas inquietações do imaginário deste Pedro. Ele quer ser escritor. Deseja ser reconhecido intelectualmente. Mas, acima de tudo, acredita que dinheiro é prioridade. Absoluta. Então, faz escolhas. Este Pedro tem convicção de que o dinheiro, realmente, é uma moeda para todos os tipos de troca.
A certeza de que nada ou muito pouco teria acontecido com o seu livro, se não fosse o seu empenho pessoal e direto, não diminuía o sentimento de mérito de Pedro. Muito menos o levava à conclusão simplória de que a aceitação de seus contos era só o fruto de uma cadeia de manobras. Bem ao contrário, aquela certeza envaidecia Pedro ainda mais. Unia-o mais ainda ao seu livro. Mais do que simplesmente gostar de ser temido, ele via nisso um valor pessoal. Por experiência, sabia que não existia nada que se comparasse ao gosto de um poder exercido com eficácia. Não havia nem podia haver nada como a força que vinha da rendição dos outros.
Mesmo assim Pedro não se contentava, ainda acha tudo insuficiente. [pág. 126]
O Pedro de A última palavra, a exemplo de todos os outros Pedros figueiredianos, por mais que se movimente em busca de uma possível solução para os seus impasses, segue — humanamente — insatisfeito. Um dicionário de nomes traduz que Pedro “se destaca pela vida disciplinada e pela determinação com que luta pelos seus objetivos”. E, na ficção de Rubens Figueiredo, os Pedros fazem valer o significado de seus nomes. No entanto, a frustração é inevitável. O poderoso, financeiramente falando, Pedro de A última palavra se revela sem nenhum poder diante dos acontecimentos. O inesperado e o imponderável o nocauteiam. Todo o esforço, ao final, pode até sugerir uma sensação de vitória, mas não passa de algo provisório. É ilusão. Volátil. Soa, até, como uma derrota.
A arquitetura textual
O discurso narrativo presente nos Contos de Pedro prevê um leitor, no mínimo, cúmplice, capaz de navegar nas ondas que se querem compreensíveis e também em águas turvas. Nas nove peças ficcionais deste livro há clareza, e mesmo linearidade, mas também há momentos em que o narrador, por exemplo, não oferece todas as faces dos Pedros — nem todos os seus rastros — e, assim, como já prescreveu um teórico, o leitor precisa ser ativo e, até mesmo, co-autor. O fato de uma narrativa ser extensa, como a que já foi mencionada, não significa, obrigatoriamente, que o autor venha, por exemplo, a esgotar suas possibilidades ou que desvende todas as facetas de um personagem. Em um conto extenso, como é o caso de A última palavra, o narrador articula diversas nuances do Pedro protagonista, mas algo, senão muito, fica suspenso — oculto.
A arquitetura do texto literário de Rubens Figueiredo não se rende ao falso rebuscamento que alguns rococós contemporâneos supõem necessário, nem aos facilitarismos de uma proposta majoritariamente realista pregada e propagada por outros. A possível clareza do texto figueirediano traz, nas entrelinhas, camadas a serem decifradas. Entre uma palavra e outra, às vezes, há um abismo — ou mais de um. Entre um parágrafo e outro, um universo. Entre uma página e outra, sugestões, enfim: possibilidades.
Dialogar com a prosa de Rubens Figueiredo exige, entre outras coisas, o inverso da pressa. Exige tempo. E também compreensão. A mesma compreensão que o Pedro que transitava entre escombros teve após olhar o que estava ao seu redor:
Pedro aprendeu muito bem o que significava ter sorte. Ter sorte era o tiro entrar na casa do vizinho; era a bala acertar quem estava ao lado; ter sorte era passar numa determinada rua um minuto depois de alguém ter levado um tiro, no exato local da calçada onde ele também ia pisar. Ter pena, ter raiva, ter sorte — no fim, a sorte era tudo o que restava. E ter sorte era não ter nada.