Livro desgraçado, bendito seja. Fosse leitura de puro prazer e estaria apenas sorrindo depois da última página. Mas pra escrever resenha é uma confusão. Porque o texto de Antonio: O primeiro dia da morte de um homem é por um lado descomplicado, daquele jeito difícil de ser descomplicado, sabe? Rápido, com frases bem sacadas, não raramente engraçadas e surpreendentes. Mas como adjetivos pouco explicam — no máximo transmitem impressões vagas sobre o que se sente na leitura —, é necessário tentar esmiuçar por que esse romance de Domingos Oliveira é uma boa leitura. Eis o problema: as escolhas feitas pelo autor para a narrativa são questionáveis. Mais: parece algumas vezes que são erros. Ou o erro é ler querendo colocá-lo em caixinhas…
São também de dar certo nó para análise as questões humanas colocadas na história, ou nas histórias que se costuram em torno de Antônio. Quem é ele? Um professor de antropologia com pouco mais de 60 anos. Viveu um casamento intenso, apaixonado, e se separa da mulher, Blue, que logo se envolve com um homem mais jovem. Entre as reflexões e vivências de Antônio, inclusive um relacionamento a três com duas garotas bem mais novas que ele, vão sendo postas as dúvidas, os medos, as dores, fragilidades, mas também as possibilidades de um homem nos primeiros passos da velhice. O que é envelhecer? Antônio não conta sozinho essa parte da vida, de todos que têm a sorte de atravessar as seis décadas. Blue passa um pouco do lado feminino da experiência. E uma outra figura, Cavalcanti, dono de uma banca de jornais que se torna amigo de Antônio, com oitenta anos, amplia esse horizonte. Livro povoado, viu? Domingos Oliveira foi criando personagens e sem acanhamento deu a mão a cada um deles, a nos fazer passear junto. Mergulha-se em cada um, conhece-se cada um. Uma intimidade danada. Sim, tem bastante sexo nessas linhas e entrelinhas. O sexo como parte fundamental das relações humanas — reprodução à parte; ninguém tem filhos nessa história. Tem até padre gay.
E tem fantasma! Um amigo de Antônio que morreu e aparece em seus pensamentos e sonhos, repetindo sempre algo como: “a vida é maravilhosa, mas não vale a pena”. Meio piada, meio filosofia. Pode ser isso, o livro: o exercício dessa visão de que a vida é também assim, meio piada/meio filosofia. E é por isso que dá nó. As histórias algumas vezes, apesar de divertidas, ou por soarem a fofoca pela forma, distraem do conteúdo profundo que guardam também.
Antônio: O primeiro dia da morte de um homem não parece ter vocação a clássico, não parece ter sido escrito para ser um, e isso talvez vaze num desabafo do narrador-personagem, Antônio, refletindo sobre seu próprio projeto de romance no enredo:
Escrever por escrever, deixando que a imaginação voe livre, já que é a única capacidade humana que goza de liberdade, (…) Como se a razão de ser artista não fosse criar belezas e sim contar para todos sua vida. (…) Não posso acreditar que este comportamento derive apenas da vaidade.
Narrador-personagem. Domingos Oliveira levou a sério esse termo. O texto dirige em alta velocidade, trocando de pista, sem dar pisca-pisca. Ou a gente bate ou o trânsito misteriosamente flui sem os anunciados acidentes, como nas ruas do Rio de Janeiro, onde tudo se passa no livro. Ele vem em primeira pessoa e de repente está em terceira pessoa, mas ainda pelo ponto de vista de Antônio. De repente, a visão já é de outro personagem, em primeira ou terceira pessoa. Arrisco que, se não fosse Domingos Oliveira um homem de 80 anos, dramaturgo reconhecido, cineasta, escritor de outras obras, mas um rapaz de trinta anos cursando uma oficina de escrita, o professor lhe daria uma bronca, os outros alunos ririam de sarcasmo, como se fosse um doido a querer reinventar a narrativa. Ainda bem que não é o caso. A proposta pode causar alguma confusão, sim, mas não atrapalha o que é fundamental na história. Então, por isso, soma às possibilidades mil de se construir um romance, sem amarras, sem preconceitos e outras babaquices que em certos momentos me contaminaram nessa análise.
Experimente aqui. No Capítulo 1, a narrativa está em primeira pessoa: “Meu amigo Eduardo morreu. Não tenho nenhuma surpresa. De manhã a esposa já tinha telefonado dizendo que iam desligar as máquinas”. No Capítulo 3, relata em terceira pessoa a separação: “Antônio caiu vertiginosamente da sua própria altura. Tinha 62 anos e ela 60. E nunca achou que tivessem problemas sérios de distâncias e princípios. Sabia que os dois eram personalidades bem-definidas, com as gavetas arrumadas. Sempre fizeram amor com razoável frequência e desejo, tinham a mesma opinião sobre variados assuntos, respeitando qualquer divergência. Eram felizes”. No Capítulo 9, mistura: “Antônio não precisa mais ser amado, Antônio sou eu. Casei muitas vezes, já fui muito amado. Não preciso mais disso. Porém amar é outra coisa. É preciso. O homem é um vaso cheio de amor em estado gasoso que exerce forte pressão nas paredes. Um homem tem muito mais amor do que terá a capacidade de dar. Gostar de ser amado é um sentimento para garotos, que desconhecem o preço”.
Se livros bons são mais para ser relidos do que lidos apenas uma vez, então essas mudanças de narrativa tendem a se clarear e tornar até mais interessante a obra.
O autor
É exibido. E aparece. Um pouco em cada personagem, nem tão disfarçadamente. Em discursos. Está dito, não está? “Como se a razão de ser artista não fosse criar belezas e sim contar para todos sua vida”. Na cena em que coloca Antônio para conhecer Nádia, há uma manifestação na Lapa, e ele alfineta nelsonrodrigueanamente: “Discussões políticas em grupo são sinônimo certo de burrice em nível industrial”. E logo depois bate em parte do meio profissional que convive/conhece: “Ninguém detesta mais a cultura que o pessoal da Secretaria de Cultura, ou melhor, não detesta a cultura. Você não pode detestar uma coisa que você não sabe o que é”.
Essas reflexões que encaixa aqui e ali produzem efeito agradável, tendem a aproximar o leitor, que concorda, discorda, mas pensa junto.
Por meio de Nádia, ele faz palestras de anatomia humana e de comportamento animal.
Um homem conta, na condição que a natureza o pôs, com três cérebros. O mais velho desses cérebros é basicamente réptil. O segundo foi herdado dos mamíferos inferiores, responsáveis pela emoção e pelo instinto. O terceiro é o neocórtex, que só os homens têm. Bicho não tem. Um tampão que se expandiu nos últimos 500 mil anos com uma velocidade explosiva, sem precedentes na história da evolução. E sendo a pressa inimiga da perfeição, o rápido desenvolvimento do neocórtex não permitiu uma boa formação das ligações neurológicas entre o neocórtex e os outros cérebros mais antigos. O homem não se entende!
Tão legal essa explicação que não procurei o Google pra verificar: tese comprada. Por Antônio, o autor reflete bastante sobre sexo e sociedade contemporânea: “Na sociedade da câmera rápida, é tudo ao mesmo tempo. O jovem merece tudo e ao mesmo tempo é desprezado. Para que prestigiar aquele senhor, o chamado idoso, que insiste em trabalhar tirando a vaga de um jovem inexperiente? Num mundo em que quantidade vale mais que qualidade e velocidade mais que perfeição?”. Até por Cavalcanti ele fala — na verdade, Cavalcanti é seu contemporâneo — sobre a idade: “A velhice é invisível. As pessoas estão acostumadas a olhar na altura dos olhos. Não sabem o que tem abaixo. Os velhos em geral estão sentados”.
O título
“Cabe, portanto, perguntar qual será o dia no qual começa a morte de um homem”. A questão está no fim do primeiro parágrafo do livro, está no título, e reaparece no último capítulo. A questão ressoa depois da leitura e ao mesmo tempo não é fundamental. O romance está ancorado no drama pessoal de Antônio, mas abre muitas outras frentes. Até a realidade dura do poder do tráfico surge na trama de Cavalcanti, o homem de 80 que prefere dormir na sua banca de jornais em Copacabana. O próprio Antônio tem duas hipóteses diferentes sobre o dia em que o amigo (depois fantasma) Eduardo começou a morrer. E sobre si mesmo ele não sabe, mas conversa com Nádia a respeito. “Se você perguntar, a maioria vai responder que é o dia que você nasce (…) Antônio, pra você não há saída. Você vai começar a morrer quando parar de se apaixonar. ”