Contar uma história não é fácil, diz-nos a narradora do conto História mal contada, de Alice e outras mulheres, da portuguesa Teolinda Gersão. As dezoito narrativas que compõem a obra estão divididas em três partes: Velhas maneiras, Maneiras de hoje e Formas em trânsito.
Teolinda apresenta na construção de sua obra diversos romances e contos protagonizados por mulheres. O feminino ocupa um lugar de destaque na sua produção, desde o início das publicações. E, em Alice e outras mulheres, essa presença espalha-se por todos os textos, abordando diferentes personagens e histórias diversas. Há narrativas de amor e saudade, a respeito da maternidade e da solidão, abandono, renascimentos e mortes. Personagens que se fortalecem em descobertas e memórias de um passado que serve como arcabouço de conhecimento e projeção para novas identidades.
As personagens são mulheres de diversas idades e formas de pensar o mundo, que abrangem capacidades também peculiares de entenderem a si mesmas, sua sexualidade, desejos e estados de permanência e ajustes ao cotidiano, e novas situações. Casamentos fracassados, amores obtusos e obscuros, saudades veladas e ausências sentidas se unem às histórias de amigas, irmãs, mães e filhas que formam as Alices de Teolinda Gersão.
Diálogos e metáforas
No prefácio, Nilma Lacerda ressalta a característica singular dos contos de Teolinda: a ressignificação do feminino, tantas vezes ao longo da história da humanidade obscurecido pelo masculino em todas as suas manifestações. Desde a figura de Maria, recontada em nova perspectiva, até a figura de Alice, personagem de Lewis Carroll, consagrada pela história que misturava a busca pela identidade e uma narrativa particular sombria e de abuso.
Alice surge nas narrativas da autora, não apenas de uma maneira explícita, como na última do livro, Alice in Thunderland, em que a própria Alice conta suas desventuras e da história que por muito tempo foi conhecida de uma maneira — ou apenas por um lado. A personagem de Teolinda revisita a história por trás da literatura, aponta para segredos e desvelamentos, dores e sensações que a compõem.
Teolinda também revisita a própria literatura, ao trazer A mulher que prendeu a chuva, nome de um de seus livros de contos, publicado em 2007. A revisitação do conto ressalta, mais uma vez, a importância das narrativas em que o feminino é o ponto fulcral da história. O mágico, o inusitado caso da mulher contado pelas duas arrumadeiras no hotel de luxo é acompanhado com atenção pelo viajante que não consegue afastar-se do que é narrado.
A autora, muitas vezes, mostra-nos esse inusitado de diferentes modos, como no conto Big brother isn’t watching you, no qual amigas adolescentes decidem matar alguém, escolhem uma colega que julgavam um pouco chata e sem graça, a “bronca e parada” Tânia. A inocência e a maldade estão ali representadas de um modo único, o que nos revela que as personalidades podem guardar mais mistérios do que julgamos conhecer.
Existem nos contos as metáforas e alegorias das mulheres-animais, como as mulheres cabras e mulheres peixe, e uma personagem que acaba por aceitar sua natureza selvagem de raposa, no conto Um casaco de raposa vermelha. Todas as mulheres estão nas narrativas de Teolinda: Isauras, Ivones, Marias, Ricardinas, Celestes e Tânias. Há mulheres que prendem a chuva, que se metamorfoseiam em animais; outras desejam a morte, escrutinam a solidão, sofrem com o abandono e a violência física e emocional.
Há a desconstrução de estereótipos e paradigmas, também a convocação de conceitos estabelecidos e que sempre foram de desprezo e subestimação do feminino, lembra-nos Nilma Lacerda. As narrativas convidam para a leitura do avesso das figuras que transitam pelo nosso imaginário há muito tempo e em quem reconhecemos traços que nos sugerem a necessidade de uma nova leitura, mais próxima, mais coerente com o feminino que emerge cotidianamente na literatura e na sociedade.
Alice e outras mulheres apresenta, portanto, uma leitura de tudo que nos incomoda e instiga, alternando provocações e imagens, ideias e sentimentos. Teolinda construiu, desde a sua primeira obra, personagens femininas intrigantes, além de fábulas em que o feminino emerge de uma forma potente e única, revisitando a história do mundo e de tudo o que nos constitui como sujeitos e leitores do contemporâneo.