Já que estou escrevendo para um público de bom nível intelectual, cabe a pergunta: quem de vocês nunca se sentiu esmagado diante de um gênio, seja pela presença do autor ou — apenas e simplesmente — após a leitura de um livro, hein? Imagino que com todos os resenhistas — categoria de que faço parte — já tenha acontecido o seguinte: ao ter de analisar uma obra (filme, CD, show, peça de teatro, escultura, instalação, balé ou livro) você — que se acha genial e tem “inclinação” artística — percebe o quanto é medíocre, e, acuado, tenta destruir o ousado inventor, fazendo uma resenha desfavorável. Conhece esta história? Pois é, lembrei disto tudo depois de ler o recém-lançado O Pintor de Retratos (LPM, 181 págs.), de Luiz Antonio de Assis Brasil.
O autor gaúcho narra a trajetória de Sandro Lanari — descendente de uma geração de pobres pintores italianos — que foi talhado pelo pai para seguir a tradição familiar. Para aprimorar a possível aptidão, o jovem seguiu em direção a Paris. Mas — em meados do século 19 — a grande sensação da cidade não era nenhum pintor, e sim um fotógrafo chamado Nadar. Este, que muito mais do que um belo retrato, conseguia captar a alma das pessoas, já havia fotografado, entre outros, Alexandre Dumas, Napoleão III, Victor Hugo e D. Pedro II. No entanto, Sandro ficou realmente deslumbrado ao ver a imagem de Sarah Bernhardt, captada por Nadar, e quis posar diante da lente do mestre. O protagonista não apenas detestou o resultado da revelação como também passou a odiar o ilustre artista. E, por esta razão — e também desiludido consigo, no que diz respeito à sua vocação para a pintura —, seguiu, junto com outros conterrâneos, em busca de um novo destino no Brasil, mais especificamente no Rio Grande do Sul.
Em Porto Alegre, Sandro instala-se em uma pensão e, após fazer um reconhecimento do território, constata que não haveria concorrência — em se tratando de pintores-retratistas, mas a fotografia tinha cada vez mais aceitação entre as pessoas. Aos poucos, conseguiu encomendas e foi adquirindo espessura social. Mas não tirava da cabeça as fotos de Nadar, sobretudo aquela imagem de Sarah Bernhardt, apaixonando-se por uma menina que, para ele, se parecia com a diva do teatro francês. Contratado para retratar a sua família, ganha casa, comida, dinheiro e — de bandeja — a filha do mecenas, que atendia por Violeta. Pouco depois, teve de sair — às pressas — da cidade porque as criadas descobriram (e deram com a língua nos dentes) que ele mantinha intensa e contínua relação íntima, toda madrugada, com a filha do patrão.
Devido a seus contatos com a proprietária de um bordel, encontrou refúgio em Rio Pardo, interior do estado, e — em pouco tempo — transformou-se em um pintor-retratista ambulante, aceitando toda e qualquer encomenda. Agora, pintava defuntos, charqueadores em bancarrota, ex-barões, senhoras obesas e — conforme o autor sagazmente observou — para superar obstáculos, obedecia à lição dos antigos retratistas: “Sendo feio o modelo, é preciso adornar o resto. Quem, no futuro, visse o seu quadro, diria ‘que linda paisagem’, em vez de pensar ‘que bruta cara essa cara, essa velha’”. Um dia, em meio à Revolução Federalista, viu-se obrigado a seguir com um grupo fardado e, com a finalidade de garantir a sobrevivência, assumiu a função de fotógrafo da Quinta Unidade Legalista. Registrou cenas de batalhas, algumas fortes, mas o que deixaria marcas em sua vida seria a imagem de um prisioneiro antes da degola — batizada de Foto do Destino.
Um ano depois, estaria novamente na capital gaúcha. Sem hesitar, abandonou de vez a atividade de pintor-retratista, abraçando a profissão de fotógrafo. Afinal, durante seu estágio — em meio à revolução — aprendeu na prática a arte de “escrever com a luz”. Assim, estabeleceu sociedade com um respeitado, mas medíocre, colega de ofício da cidade. Logo, teria clientes suficientes para sustentar a família. Sandro Lanari casou-se com Violeta (aquela que ele achava parecida com Sarah B.) e dessa união resultaram quatro herdeiras. Freqüentar bordel e consumir álcool tornaram-se hábitos do passado depois que seu nome figurava nas páginas da coluna social de um respeitado jornal da cidade.
Luiz Antonio de Assis Brasil ainda aproveitou o enredo — por sinal, um dos mais interessantes dos últimos tempos, infinitamente superior ao dos medalhões do eixo Rio-São Paulo —, para discutir o que é — ou não — arte, confrontando pintura com fotografia. Em diversos trechos do livro, o autor armou situações para debater o assunto. Depois de finalizar o retrato de um bispo gaúcho, em que teve de fazer retoques, o protagonista foi chamado pela autoridade religiosa, que fez alguns questionamentos: “Até que ponto é lícito intervir na representação do homem, que é feito à imagem e semelhança de Deus?”. Em outro momento, tendo como pano de fundo um enterro, Sandro Lanari e Carducci — um fotógrafo italiano também radicado no Rio Grande do Sul — debatem o tema, até que o colega vai direto ao problema: “Cada vez mais as pessoas querem fotografar-se. O retrato pintado tornou-se caro. E no século do telégrafo e da locomotiva as pessoas têm pressa.”
O tempo passou e, um dia, Sandro recebeu a notícia de que seu pai havia morrido. O protagonista aproveitou a ocasião da viagem para resolver uma questão pendente. Ele fez uma escala, batendo na porta da residência do Nadar. Pedir que o ilustre fotógrafo lhe tirasse uma foto foi apenas um pretexto para ressuscitar o (eterno) debate sobre o que é, ou não, arte. Pela segunda vez, o protagonista não gostou de sua imagem na ótica de Nadar. Este também não viu, ou não quis enxergar, qualidades estéticas na Foto do Destino. E, assim, Sandro seguiu seu destino dentro de um trem, rasgando em picadinhos e jogando pela janela a fotografia que Nadar havia feito. Uns meninos cataram os pedaços e levaram para um professor descobrir o que seria aquilo, aqueles papéis em pedaços. “ — É o retrato de um homem, mas é impossível formá-lo por inteiro. Faltam muitos pedaços, muitos… — Fez um gesto envolvendo toda a paisagem — devem estar por aí…”.
O fato ter feito uma espécie de resumo do enredo não estragará em nada o prazer da leitura de O Pintor de Retratos, que — entre tantas surpresas — ainda revela algumas características do comportamento do gaúcho e, sobretudo, traz a incomparável prosa de Luiz Antonio de Assis Brasil dosada em capítulos curtos. Ao retratar a trajetória de um sujeito suficientemente inteligente para reconhecer as próprias limitações e ousadia para optar por outra atividade, o autor pode (talvez) ter dado (sem saber) uma sugestão: e aí, resenhistas, que tal mudar de atividade? A literatura agradeceria.