A Paulo Henriques Britto
Faz algum tempo que me dei conta do fato de não se levar devidamente em consideração que o português e o espanhol, entre as línguas que conheço, dispõem de dois verbos ali onde outros idiomas possuem apenas um: ser e estar. Esses dois infinitivos equivalem a to be (inglês), être (francês), Sein (alemão), esse (latim), eímai (grego). Assim, por bem ou por mal, nos livramos de toda ontologia, ao menos no nível da linguagem. Nosso “ser”, de algum modo, é imperfeito, o que combina bem com esses tempos pós-metafísicos.
Foi pensando nisso que resolvi, a título de provocação, fazer uma nova tradução para o arquifamoso monólogo do To be or not to be, do Hamlet, de Shakespeare. Tenho plena consciência de que a conversão de to be ao mesmo tempo para ser e estar parecerá estranha (unheimliche) e também de que o ideal é evitar a dupla tradução para um único termo, sobretudo na mesma frase em que aparece no original. Mas o faço para levar a refletir sobre algo que nunca se pensou com justeza, pelo menos até onde sei: o to be or not to be é, antes de qualquer metafísica do “ser”, uma questão de ficar ou partir deste mundo, em outras palavras, estar ou não mais estar aqui, continuar vivo ou suicidar-se. Pois o grande temor do príncipe dinamarquês é de se deparar no undiscouvered country, que é o país da morte, o além, com pesadelos piores do que nossos sonhos maus. Não por acaso, a viagem sem volta é uma metáfora fundamental desse monólogo. Assinalo, de passagem, que a “insolência dos poderosos” é a definição mesma do Brasil, deixando a população impotente e mostrando também por isso quanto a peça é atual.
Nosso estar vem do stare latino, cujo significado original era “estar de pé, em posição vertical, firme”. Assim, chamo atenção também para que outras traduções correntes sejam revistas, como, por exemplo, em vez de verter o Dasein de Heidegger para “Ser-aí”, como se costuma fazer, colocar “Ser-estar-aí”. Observo ainda que não sou especialista de estudos shakespearianos, mas um atento admirador da obra. Em homenagem, portanto, a essa sorte dos idiomas ibéricos, eis o original, seguido de minha estranha tradução em prosa (e que o espectro do Bardo inglês me perdoe por esse pecado e não venha me atormentar durante o sono):
Hamlet, Act III, Scene I
To be, or not to be: that is the question:
Whether ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? To die: to sleep;
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, ’tis a consummation
Devoutly to be wish’d. To die, to sleep;
To sleep: perchance to dream: ay, there’s the rub;
For in that sleep of death what dreams may come
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there’s the respect
That makes calamity of so long life;
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despised love, the law’s delay,
The insolence of office and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscover’d country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action. — Soft you now!
The fair Ophelia! Nymph, in thy orisons
Be all my sins remember’d.
Hamlet, Ato 3, Cena 1
Estar ou não estar, ser ou não ser, eis a questão: haverá mais nobreza de espírito em sofrer os lances e as lanças do infortúnio ou enfrentar um mar de distúrbios e, armando-se, dar-lhes fim? Morrer, dormir, nada mais; no sono, acabar com as dores e os inúmeros tormentos naturais, que a carne herdou, é um final ardentemente desejado. Morrer, dormir; dormir, talvez sonhar: aí está o obstáculo, pois, nesse sono de morte, quem sabe que sonhos podem vir nos dar repouso, quando nos livrarmos do tumulto letal. Essa consideração é que faz da vida tão longa calamidade; pois quem suportaria os golpes e escárnios do tempo, a vilania do opressor, as afrontas dos soberbos, as aflições do amor desprezado, a justiça morosa, a insolência dos poderosos e o desdém que o mérito paciente recebe de gente indigna, podendo acertar, com um simples punhal, todas as contas? Quem aguentaria o fardo de gemer e suar numa vida fatigante, senão pelo temor de algo após a morte — esse país desconhecido, de onde nenhum viajante jamais retorna —, que paralisa a vontade e faz tolerar esses males, em vez de fugir para outros que ignoramos? Assim, a consciência nos torna a todos covardes; e assim, com a palidez desse pensamento, o tom natural da decisão esmaece. Diante disso, atitudes de altos voos e magnitude se extraviam, deixando-se de praticar a ação. — Silêncio agora! A pura Ofélia! — Linda, em suas preces, lembre-se de todos os meus pecados.
NOTA
Utilizei como referência a versão de The Oxford Shakespeare, disponível em http://www.bartleby.com/70/index42.html.