Títulos

Escritores devem se preocupar com os títulos de seus livros, como os pais com os nomes de seus filhos
Edgar Allan Poe, autor de O Corvo
01/02/2006

Não há escritor que não se debata com a difícil questão dos títulos de suas obras, sejam elas poemas, crônicas, contos, novelas ou romances. O título faz a primeira ponte com o mundo, é o primeiro gancho de interesse, a primeira luz do farol no nevoeiro. A obra está lá, enrodilhada em si mesma, mas escondida, e é preciso uma etiqueta, um visgo ou um guizo para que ela seja percebida pelo possível leitor. Nesse instante, o autor defronta-se com uma questão ética — ser fiel a si mesmo e à obra, ou a esse fátuo e imponderável leitor.

O leitor é uma abstração. Só existe em potência. Cada uma das partes envolvidas no processo de criação e produção do livro idealiza um leitor. Assim, há o leitor ideal do autor, como também há o leitor ideal do editor, do distribuidor, do livreiro. E lá no final do processo, há o leitor real, raro e esquivo, soterrado sob uma avalanche infinita de títulos. Vigiando a todos, como uma esfinge hierática e fatal, sorri o Mercado, esse deus insaciável, que controla o Portal da Cidade do Livro e que deseja títulos vistosos, agradáveis, comerciais.

Mas, às vezes, a obra — inteira e autônoma — recusa-se a essas vestimentas carnavalescas, não querendo chamar tanta atenção sobre si mesma. Indeciso diante do enigma, o autor só tem duas opções: deixar a matéria gerar o próprio nome ou fazer aderir um nome qualquer à matéria. Que ouvido sutil há de ter o autor para captar o murmúrio da obra: Eu sou o que sou! Ou que espírito pragmático há de ter o autor para etiquetar, sem nenhuma angústia, o que acabou de produzir…

Edgar Alan Poe dizia que um título deve prenunciar tudo o que uma obra contém. Mas Poe, nós sabemos, estava pensando no consumidor, estava ajudando a construir uma ética para as relações comerciais: se vendo um produto, ele deve ser honesto; não é justo vender-se gato por lebre. E foi com esta visada, pragmática e reificada, que ele criticou duramente o título genial de Nathanael Hawthorne, Twice told tales!

Gabriel García Márquez optou por ser absolutamente honesto e fiel ao espírito da própria obra, intitulando uma novela de assassinato e paixão de Crônica de uma morte anunciada. Talvez um dos maiores achados na história dos títulos. E um dos melhores exemplos de que o único caminho para um escritor é a radicalidade, a coerência e a fidelidade à própria obra. Absolutamente fechada em si mesma, ela se encarregará de dar o bote sobre o leitor, conquistando-os aos milhares. Ou adormecendo, mofada, nos estoques das distribuidoras.

Se a palavra efetivamente tem poder, se nomes condicionam destinos, os escritores devem se preocupar seriamente com os títulos de seus livros, como os pais com os nomes de seus filhos. Mas, se a palavra é um mero signo, se ela simplesmente se cola às coisas, na inútil tentativa de dar-lhes uma significação, é melhor que eles não resistam ao canto de sereia do Mercado. A estes, pois, seria bom lembrar que um bom título não salva um mau livro, mas um mau título pode prejudicar um bom livro.

Charles Kiefer

É escritor. Autor de O escorpião da sexta-feira, Valsa para Bruno Stein, Quem faz gemer a terra, entre outros.

Rascunho