A definição genérica de crônica remete a uma espécie de maneirismo conceitual que, a rigor, não explica muita coisa. Nos manuais de jornalismo, por exemplo, a resposta, de pronto, costuma ser sempre a mesma: “gênero híbrido entre a literatura e o jornalismo”. Mais não costumam dizer, seja por incapacidade de articular teoricamente o significado desse tipo de texto, seja porque existe certa preguiça em tentar compreender um formato que impressiona pela capacidade de formar leitores, inspirar escritores e tornar conhecidos alguns autores. Caso exemplar é o de Carlos Drummond de Andrade, conforme explicou o crítico Manuel da Costa Pinto, quando esboçou uma aproximação teórica acerca desse gênero. Segundo ele, muitos leitores o conheceram primeiro como cronista para, só depois, absorver o poeta Drummond. Em certa medida, de tão corriqueiro, há quem considere o gênero algo simples de ser executado. Coisa que qualquer dublê de escritor ou jornalista com alguma tendência para o trocadilho e para a piada leve pode efetivamente fazer. Os textos de Humberto Werneck em O espalhador de passarinhos & outras crônicas mostram, para o bem e para o mal, que nem todos podem ser cronistas.
No livro, ora publicado pelas Edições Dubolsinho, o leitor é apresentado a um Werneck cujo texto atinge o alvo certo, sem literatice ou citações proto-intelectuais. Como se descobre logo nas primeiras crônicas, o autor se impõe graças à sedução pela palavra, com um estilo que é agradável sem ser banal. Coisa rara, já que alguns cronistas tendem a levar a ferro e fogo a necessidade de bater cartão em torno de alguns assuntos — como sexo, política, futebol. Mais do que se repetirem em torno dos mesmos temas, sofrem da tentação de chafurdar no senso comum. Humberto Werneck, em contrapartida, ensina, de forma indireta, qual deve ser o ethos do cronista. Assim, propõe um olhar de estranhamento sobre assuntos aparentemente mundanos e sem importância. Trata-se, diria Nelson Rodrigues, do óbvio ululante para qualquer autor do gênero, mas a maneira como Werneck se predispõe a essa análise não deixa dúvida de que ele possui o timing perfeito para esse tipo de observação.
O termo que encerra o parágrafo anterior não é aleatório, do mesmo modo que não é sem querer a costura dos assuntos proposta por Werneck. É possível que, para o escritor, essa capacidade seja decorrente da experiência adquirida em anos de trabalho jornalístico. Dono de um texto precioso, cuja voz não se perdeu pela lógica da objetividade, Werneck é capaz de elaborar, em poucas linhas, textos que fazem o leitor refletir sobre o mundo que o cerca. Não se trata, evidentemente, de filosofice ou qualquer um desses “conteúdos” de auto-ajuda. Em vez disso, o jornalista ri dos absurdos da irrealidade cotidiana que o envolvem, ironizando, aqui e ali, o conformismo e a falta de sensibilidade daqueles que se acostumam com tudo. Um belo exemplo pode ser visto no texto A implosão do casal perfeito, quando observa que “houve tempo em que os casamentos duravam mais do que os móveis da Tok&Stok”. Ou, ainda, em Ah, o copo de requeijão, quando atenta para o fato de que muitos relacionamentos se perdem no momento em que simbolicamente os casais colocam em risco sua existência por falta de atenção aos detalhes: “É o próprio símbolo da avacalhação, que, sub-repticiamente, vai pondo a pique os mais sólidos titanics conjugais”.
Medida exata
Esses comentários, que mais se assemelham a doses homeopáticas de reflexão, concordam com a pensata de Manuel da Costa Pinto, quando este analisa o sentido da crônica. Para o crítico, trata-se de um gênero que se confunde com a problemática questão da identidade nacional. Costa Pinto salienta, ainda, que a crônica é um gênero que dá cor e forma às miudezas da vida cotidiana, pontuando não apenas essa informalidade social que é significativa dos brasileiros, acentuando essa confusão tão corriqueira quanto nociva entre o público e o privado. Prova disso é o caso de Janela indiscreta, crônica em que comenta certa indiscrição por parte de um casal, cuja vida íntima insiste em ser alardeada pelos gemidos e sussurros de suas noites de prazer. Acreditem: Werneck consegue escrever todo um texto sobre o comportamento sexual ouriçado, sintomático de uma geração, sem cair na esparrela da vulgaridade.
Outro elemento de destaque das crônicas selecionadas é o fato de Werneck não fazer das crônicas dispositivos para um eventual acerto de contas com as suas obsessões. Ou seja, embora tenha um olhar crítico com relação ao seu contexto social, fazendo da realidade matéria-prima para construir seus textos, Werneck não encarna em repetições, lugares-comuns ou, o que seria terrível, em um saudosismo para com sua época. Nesse aspecto, em vez de apresentar uma visão desencantada com seu tempo, o escritor permanece na exata medida entre o cético e o irônico, deixando de lado a pose ao apostar em um texto bem trabalhado e preciso. Parodiando, aqui, o poeta, se todos fossem iguais a Werneck, teríamos, talvez, menos cronistas em quantidade, porém mais qualidade nesses textos que, uma vez publicados nos jornais e revistas, funcionam como peças de reflexão sobre o cotidiano.
O espalhador de passarinhos & outras crônicas, certamente, não é o primeiro nem será o último livro a trazer uma coletânea de textos publicados em jornal. Em verdade, esse, muitas vezes, é um aspecto desabonador desse tipo de edição, já que pode indicar certa comodidade por parte do autor e do mercado editorial. A despeito de tudo isso, o livro de Werneck chama a atenção por se destacar dos demais seja pela simplicidade calculada de seus textos, seja pelo domínio de todas as técnicas desse gênero. Trata-se, enfim, de um escritor que exibe seu talento no espaço exíguo e fugaz da crônica.