Tesouros no quintal (aquisições recentes à fortuna editorial de Lima Barreto)

Um Lima Barreto para além da ficção
Lima Barreto, autor de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”
01/04/2005

O ano de 2004 foi pródigo no que se refere à obra do escritor carioca Lima Barreto. Descontadas as novas tiragens de edições tradicionais de alguns de seus romances e contos mais conhecidos e regularmente reeditados, por conta principalmente de sua ampla inserção nos repertórios escolares há pelo menos duas décadas[1], apareceram no ano passado três novos títulos que, a despeito das grandes diferenças de escopo e natureza que os separam, partilham o meritório aspecto de reunirem repertórios de escritos do autor produzidos fora do registro ficcional, tomado em sentido estrito.

Bem menos conhecidos do público, inclusive por sua virtual indisponibilidade no mercado editorial, as inúmeras crônicas, artigos de opinião, anotações pessoais e correspondência de Lima Barreto constituem matéria cuja leitura, a par do interesse específico que tais textos, por si, possam suscitar, pode ademais oferecer considerável aporte para o exame e a apreciação de sua obra ficcional, ocupando portanto um lugar que está longe de ser secundário no conhecimento do conjunto dos escritos do autor carioca[2].

O primeiro deles, Novas seletas — Lima Barreto, é decerto o mais desambicioso dos três. Apareceu ainda no primeiro semestre, integrando a série de antologias de autores brasileiros que a editora Nova Fronteira vem publicando desde 2002, sob a coordenação geral de Laura Sandroni. Da mesma coleção, já saíram volumes reunindo material de Ana Cristina César, João Cabral de Melo Neto, João Ubaldo Ribeiro, José de Alencar e Machado de Assis. A casa editorial aproveita, como se vê, de um lado, material oriundo da produção já em domínio público de nomes consagrados, e de outro, escritos dos quais detém os direitos de publicação, em formato orientado, em ambos os casos, para a apresentação inicial de cada um dos autores antologiados ao leitor jovem, entendido aí como “leitor escolar”. Segundo o release que acompanhou o lançamento do título dedicado a Lima Barreto, o volume de pouco menos de duzentas páginas “apresenta um apanhado geral de sua obra, mostrando que, apesar de ter vivido apenas 41 anos, produziu muito e em diversos gêneros, como crônicas, folhetins, contos, romances, sátiras, críticas literárias e memórias”. Sem trazer quaisquer “novidades”, essa antologia, preparada por Isabel Travancas, reuniu, ao lado de fragmentos da ficção limabarretiana já copiosamente reeditadas, exemplos de sua produção como cronista, de suas incursões na crítica literária e mesmo um excerto do Cemitério dos vivos, dado equivocadamente na edição como “trecho das memórias de Lima Barreto”. O formato de paradidático, se não legitima, pode ao menos justificar a indefectível lista de atividades a ser realizadas “depois da leitura”, assim como alguns maneirismos gráficos e informações de glossário invadindo constantemente a mancha de texto. Menos compreensível, contudo, é a opção da organizadora em transcrever fragmentos de capítulos da ficção longa de Lima Barreto. Admitida a idéia apenas ilustrativa da antologia, teria sido melhor reproduzir a íntegra dos capítulos selecionados.

De todo modo, lá estão dez crônicas de Lima Barreto. Eis aí a sua modesta, mas não de todo irrelevante, virtude. Colocar ao alcance do leitor de nossos dias, a preço módico, uma amostragem dessa modalidade que o autor tanto praticou, oferecendo alguma condição para o contato preliminar do leitor com a variedade de formas textuais exercitadas por Lima Barreto abrindo espaço para a percepção das peculiares e quase insuspeitadas articulações reconhecíveis em repertório tão diverso[3].

No segundo semestre, veio à luz uma nova edição de O cemitério dos vivos, organizada pelo jornalista Diogo de Hollanda e prefaciada pelo veterano crítico Fábio Lucas. Trata-se de anotações pessoais da derradeira internação de Lima Barreto no hospício, ao lado de formulações do escritor para sua refundição ficcional em romance que deixou inacabado. É uma nova edição do material que constituiu o volume 14 da edição Brasiliense e que já ganhara reedições em 1988, 1993 e em 2001 (cf. nota 3). Embora não haja melhor esclarecimento do preparador do volume com relação aos critérios e procedimentos utilizados nessa nova edição, pode-se depreender das notas ao texto, bem como da bibliografia arrolada, que sua preparação incluiu um reexame dos manuscritos de Lima Barreto, pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional. Reproduções fac-similares de amostras desses autógrafos, por sinal, aparecem ao longo do volume, embora com função puramente ilustrativa.

A principal virtude a salientar no trabalho em questão está no fato de seu preparador retornar aos manuscritos do autor, tanto mais quando se trata de obra inacabada, em que se confundem anotações pessoais de Lima Barreto e ensaios de elaboração estética, cuja própria natureza confessional torna ainda mais difícil discernir e ordenar. Infelizmente, tal empenho fica prejudicado pela ausência já mencionada de esclarecimentos sobre as estratégias e princípios adotados na edição. O uso da rubrica “memórias”, na folha de rosto, por exemplo, seguindo a lição da edição Brasiliense, reincide na sugestão de que o material em questão constitua um conjunto de registros pessoais de Lima Barreto, desviando a atenção quanto ao projeto ficcional que aqueles manuscritos, em grande medida, podem representar. O simples fato, contudo, de revisitar as fontes manuscritas remanescentes de Lima Barreto para a preparação de novas edições de seus textos menos conhecidos, é por si, providência louvável e digna de menção. A edição da Brasiliense, realizada há quase meio século por uma dupla de especialistas indiscutivelmente competentes, Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença, sob a coordenação de Francisco de Assis Barbosa — o pesquisador a quem devemos em grande medida o acesso ao que hoje conhecemos como a “obra completa” de Lima Barreto —, em que pese oferecer o texto base menos infidedigno para a editorialmente problemática produção limabarretiana, possui imperfeições que reclamam esforços suplementares de especialistas para fazer avançar o grau de acabamento e fixação textuais dos escritos de Lima Barreto para além do já bem alto patamar ao qual aqueles pesquisadores puderam alçá-lo no passado.

Por fim, já nos últimos dias de 2004, o mais ambicioso dos lançamentos veio a público: refiro-me aos dois massivos tomos que compõem Toda crônica — Lima Barreto, projeto editorial reunindo o conjunto das crônicas publicadas por Lima Barreto na imprensa, em sua grande maioria já reunidas em volume na Brasiliense — e em alguns casos até mesmo antes —, acrescidas de nove textos inéditos em livro. A pesquisa que resultou nesses dois alentados volumes foi produzida pela professora e pesquisadora Beatriz Resende, com a assistência de André Luiz dos Santos, ficando o trabalho de preparação e estabelecimento de texto aos cuidados da pesquisadora Raquel Valença, que acumula grande experiência em empreitadas dessa natureza realizadas no âmbito de suas atividades da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

O trabalho, prometido por Beatriz Resende há quase uma década, vem à luz “no ano do centenário da primeira redação de Clara dos Anjos”, conforme se lê no colofão dos volumes. A pesquisadora, que já dedicara à obra de Lima Barreto um estudo monográfico[4], além de diversos artigos em revistas especializadas, oferece ao leitor uma oportunidade de contato com a extensa produção do Lima Barreto cronista, com cuidados na preparação e organização editoriais que são inegáveis. Menciono alguns que me parecem mais significativos: 1) extensa e abrangente pesquisa de fontes primárias e rastreamento de pistas disponíveis nos escritos do autor sobre suas colaborações na imprensa, o que permitiu identificar nove textos de Lima Barreto ainda inéditos em livro; 2) sistemático trabalho de preparação dos originais, cujos critérios adotados estão apropriadamente informados em nota da responsável, Raquel Valença, na abertura do primeiro volume; 3) clara e bem informada apresentação crítica do cronista Lima Barreto, em texto de Beatriz Resende que, dividido em duas partes, introduz cada tomo da obra; 4) informação sintética, em rodapé, a respeito de vários dos periódicos nos quais as crônicas originalmente apareceram; 5) informação sobre a data completa da publicação original para a ampla maioria dos textos, do que resultou, por sinal, a opção das pesquisadoras por ordenar os textos observando a seqüência de sua aparição primeira na imprensa; 6) preciosos, e em tempos de informática e recursos digitais, verdadeiramente obrigatórios, índices remissivo, onomástico e de assuntos.

Todos os aspectos acima mencionados salientam, portanto, a importância da publicação que, já se vê, leva adiante e com ampla vantagem os aspectos meritórios apontados nos dois outros títulos antes comentados: reeditar material menos conhecido e virtualmente indisponível de Lima Barreto, baseando tal empreendimento em um reexame cuidadoso das fontes primárias disponíveis. Disso resultam as muitas virtudes do trabalho conduzido por Beatriz Resende e Raquel Valença, inclusive a localização do punhado de peças textuais e de um item iconográfico trazidos pela primeira vez à página de livro.

Entretanto, na leitura de empreendimento tão ambicioso e complexo, é quase inevitável entrever — ou projetar? — aspectos menos satisfatórios, ainda que se trate de elementos de menor monta, talvez mesmo simples “implicâncias”, para usar um termo muito caro ao estilo do próprio Lima Barreto. Assim, tomo por mote outra das [auto-]irônicas lições do escritor, em referência a Machado de Assis: “Para toda gente é melhor glorificar em bruto do que admirar com critério. Sigo o partido de toda a gente e paz aos mortos”. [5]

Ocupar-me-ei dos vivos.

Um punhado de implicâncias
Algumas das qualidades apontadas nos seis tópicos acima evocados podem suscitar leitura de outros aspectos a eles relacionados que resultam em juízos menos lisonjeiros. É o caso das informações em nota a respeito dos periódicos para os quais Lima Barreto colaborou. De alguns periódicos não se oferece qualquer informação, nem se faz menção quanto à impossibilidade de identificá-los. Em certos casos, pode-se supor tratar-se de órgão por demais conhecido. É o caso talvez da Gazeta da Tarde ou do Correio da Noite. Mas então poder-se-ia alegar o mesmo quanto à Careta ou à Fon-fon, para as quais há notas informativas precisas. Uma revista como A Estação Teatral mereceria decerto uma nota informativa. No caso de outros, o comentário é demasiado ligeiro, quase críptico, como a nota sobre o vespertino Lanterna, presumivelmente escrita para diferenciá-lo da revista estudantil em que Lima Barreto iniciou-se como cronista (I-302).

Pelo menos em uma ocasião o esforço de síntese informativa na redação das notas induz a equívoco. Na nota sobre O Debate, órgão onde Lima Barreto publica crônica em 19/7/1917, informa-se que “entre seus dirigentes estava Astrojildo Pereira, militante de esquerda, segundo Secretário Geral eleito do Partido Comunista do Brasil” (I-276). Que só será fundado, como todos nós sabemos — os autores da nota inclusive —, em 1922.

Outra “implicância” de ordem editorial: faria bem um índice dos periódicos citados, inclusive os mencionados no corpo das crônicas de Lima Barreto. Mais outra: o quadro cronológico que encerra o segundo tomo da obra é demasiado modesto em vista da estatura do projeto em todos os seus demais aspectos. Para um suposto leitor não especializado, é elíptico, por vezes até arbitrário na seleção dos eventos. Não menciona a relação do autor com o júri da Primavera de Sangue, por exemplo; assim como evoca o primeiro Fla x Flu realizado em 1914, mas não aduz nenhuma referência ao surgimento das Ligas Suburbanas de Futebol ao longo daquela década. Se pensarmos, ademais, que um produto editorial dessa natureza, seja pelo custo, seja pelo perfil geral do empreendimento, direciona-se sobretudo ao público especializado, para o qual a referida cronologia pouco acrescenta.

E, finalmente, fiquei desentendido quanto à anotação na capa do primeiro tomo da obra: “Volume I 1890-1919” (grifo meu).

Algumas outras “implicâncias” de natureza diversa ainda me parecem pertinentes alinhar. Dizem respeito não às escolhas editoriais, mas sim a certo modo de apropriar-se do material pesquisado e de aspectos de sua interpretação. Trata-se de um campo de escolhas não excludentes, de recortes alternativos e pressupostos de leitura e crítica concorrentes. Com a argumentação própria, cada leitor tem direito ao seu Lima Barreto.

Na primeira parte do ensaio “Sonhos e mágoas de um povo”, que apresenta o primeiro tomo da obra, Beatriz Resende evoca o impacto produzido pela publicação do romance de estréia de Lima Barreto, que resultou na hostilidade de Edmundo Bittencourt, diretor e proprietário do Correio da Manhã, que se reconheceu, e a seu jornal, na representação ficcional que o ficcionista produz nas Recordações do escrivão Isaías Caminha. Com isso, anota a ensaísta, o jovem romancista tornou-se desafeto não só de prestigioso jornalista e empresário, mas de “todos os outros grandes jornais do Rio de Janeiro”. (I-11)

Embora a própria autora relativize essa “exclusão” do autor do círculo da grande imprensa carioca mais adiante, reponta aqui uma representação tradicional constituída nas primeiras etapas da fortuna crítica do autor e reeditada por longo período. Trata-se da idéia da “conspiração do silêncio” — expressão emprestada pela crítica de um contemporâneo de Lima Barreto, Jackson de Figueiredo — que teria se fechado contra o autor, interditando o justo reconhecimento de Lima Barreto ainda em vida e mesmo depois. Como explicar, contudo, que o Triste fim de Policarpo Quaresma tenha saído originalmente em folhetim, no segundo semestre de 1911, na edição da tarde do Jornal do Commercio? Ou que Numa e a ninfa saia originalmente em 1915 nas páginas de A Noite?

As lacunas na regularidade e continuidade da colaboração de Lima Barreto para a imprensa, descontadas as contribuições perdidas, feitas eventualmente para órgãos menores dos quais não restaram exemplares para consulta, talvez possam ser melhor esclarecidas a partir de um exame minucioso de incidentes biográficos e das prioridades de investimento intelectual do escritor. O período entre 1904 e 1911, no qual não se registram crônicas do autor, é aquele que se inicia imediatamente após o ingresso de Lima Barreto no serviço público, ao mesmo tempo que o autor se empenha em variados projetos literários e intelectuais. Datam do período as primeiras redações ou edições de quatro de seus cinco romances, seus investimentos na revista Floreal, as reportagens e a novela que compõem Os subterrâneos do Morro do Castelo, para ficar apenas nos empreendimentos de maior envergadura. O período com pouca atividade em jornal de 1911 até o final de 1914, quando o autor inicia colaboração regular para o Correio da Noite, é também ocupado pelo trabalho no Doutor Bogólloff, assim como recobre etapas de licenças médicas no trabalho e apuros materiais, com a mudança da família para endereço em subúrbio ainda mais distante, no qual Lima Barreto viveria a última etapa de sua existência. Assim, como o próprio texto de Beatriz Resende salienta em outro momento, Lima Barreto não era um ignorado do círculo dos letrados, nem uma voz irrelevante no debate intelectual do tempo. A posição periférica adotada por Lima Barreto na escolha dos órgãos para os quais colaborava, assim como com respeito às rodas literárias que freqüentava, tem muito de opção, de estratégia e de militância conscientes. Não se trata de ignorar o peso dos preconceitos estéticos, sociais e raciais que se elevavam contra o escritor em seu tempo — e seguem, ainda hoje “refervidos”, em ação contra alguns dos novos escritores da atualidade. Convém, contudo, calibrar o peso dessa leitura de viés “reparador” que tende a sugerir condescendência com respeito ao juízo crítico que uma determinada obra suporte.

Aspecto análogo parece repontar na interpretação sugerida por Beatriz Resende para a não-publicação na Brasiliense da crônica A minha Alemanha (II-19). A autora especula que os organizadores das Obras Completas de Lima Barreto em 1956 muito provavelmente tiveram acesso ao texto quando da sua preparação, e teriam preferido omiti-lo por ele encerrar uma postura antinacionalista:

“Parece-nos que, na apaixonada intenção de ver o autor finalmente reconhecido como literato, na vontade de recuperar sua imagem denegrida por vários de seus contemporâneos, os organizadores podem ter preferido não trazer a público afirmação tão radical como “não sou nacionalista, especialmente nos anos JK, momento de volta a um nacionalismo feito do entusiasmo e confiança no futuro que cercou a construção de Brasília.” (I-13).

Permito-me algumas objeções: primeiramente, a hipótese de a crônica não ter sido localizada na época não parece tão implausível. As coleções disponíveis da A.B.C. são reconhecidamente incompletas e erráticas. Na mesma publicação, por sinal, a própria Beatriz Resende localizou outra crônica de Lima Barreto também inédita em livro (II-399). De resto, há inúmeras manifestações de crítica ao nacionalismo na produção do autor, sendo a mais notável de todas aquela que se formula no Policarpo Quaresma. Talvez não fosse sequer apropriado descrever os inícios do governo JK como “momento de volta a um nacionalismo feito do entusiasmo e confiança no futuro” (grifo meu), a não ser que ignoremos o significado histórico do segundo governo de Vargas, na primeira metade daquela década, período durante o qual, de resto, os organizadores das Obras Completas efetivamente desenvolveram seu projeto.

A propósito de omissões, por sinal, acuso uma única ausência inexplicada de crônica, que terá escapado à minuciosa e pertinaz pesquisa realizada por Beatriz Resende: o texto Amplius, que Lima Barreto aproveitou como prefácio para a primeira edição de seu Histórias e sonhos, mas que, segundo ele próprio registra, aparecera “em um jornal de grande circulação da cidade do Rio de Janeiro […] em setembro de 1916”.[6]

O estudo muito bem informado e esclarecedor de Beatriz Resende seleciona alguns dos temas abordados na vasta produção do cronista, buscando sempre sublinhar a simpatia do autor pelos desvalidos, sua contundência com relação aos donos do poder, na política e nas artes, assim como sua sintonia com relação às transformações em curso na metrópole. Em tal empenho, muito bem arrazoado, creio ler uma tentativa de atenuar certas tensões e arestas que posições de Lima Barreto, por ele próprio chamadas de “implicâncias”, podem suscitar no leitor contemporâneo, especialmente naquele que cultive um perfil “progressista” ou “politicamente correto”. Nos comentários sobre a má-vontade de Lima Barreto com relação ao futebol, ao carnaval, ao feminismo (I-20 e 21), a autora salienta que ‘naquele momento [o futebol era] esporte de elite, que excluía os negros de seus times ou [os] disfarçava … com pó-de-arroz” (I-20), e aduz que este, assim como o carnaval, eram considerados “ópio do povo” (I-21). Acrescenta logo a seguir que, no fim da vida, o autor chega a descrever com ternura “blocos de sujos e pequenas agremiações carnavalescas” (I-21).

Mas que dizer das inúmeras crônicas em que Lima Barreto sublinha o caráter irracional e nefasto do carnaval de rua que se ia modernizando, precisamente sob o influxo irresistível das comunidades populares oriundas do Recôncavo Baiano e do Recife, recentemente integradas à cidade? E mais: como compreender a má-vontade de Lima Barreto com relação ao futebol que já se disseminava triunfantemente pelos subúrbios, a ponto de o próprio escritor ter sido convidado, já em 1916, para integrar o quadro social do Modesto Futebol Clube, agremiação com sede nas suas vizinhanças suburbanas?[7] O mesmo Lima Barreto que defendia o divórcio cedera à maioria em júri que absolveu um uxoricida?

Penso que não convenha tentar pacificar uma percepção que possamos construir de Lima Barreto como intelectual perfeitamente coerente em relação a um programa de idéias ou de sociedade que jamais terão sido os dele, menos ainda os de sua época, de cujos valores ele, como qualquer outro, não tinha como se esquivar por completo. Prefiro reconhecer em Lima Barreto marcas de certo chauvinismo, rancores pessoais ou intolerâncias ideológicas que, de resto, pelo contraste, dão maior relevo às suas realizações estéticas. O homem que confessou sentir como quase insuportável a convivência diária com a gente dos subúrbios[8], foi capaz de produzir personagens e enredos em que as representações ficcionais dessa gente alcança a estatura de um Policarpo Quaresma ou de um Ricardo Coração dos Outros, assim como a de tantas personagens como a Alzira, do conto Uma vagabunda, de Histórias e sonhos; o sujeito ranzinza com relação às mulheres criou uma Olga; o sujeito magoado e suscetível com relação ao corpo e intimidade sexual criou uma Edgarda; o sujeito musicalmente conservador e talvez o pior ouvido musical de sua geração encontrou lugar relevante e expressivo para as formas de canção popular em Clara dos Anjos e no Triste fim de Policarpo Quaresma; o rapaz premido pelos apuros financeiros e pelo preconceito elaborou uma obra da envergadura das Recordações do escrivão Isaías Caminha. Parafraseio aqui uma expressão, se me recordo de Antonio Candido, a propósito de outro tema: em Lima Barreto, o ficcionista redime o ideólogo.

Assim, suas crônicas, inclusive naquilo que também carregam de anacronismos, más-vontades, teimosias, implicâncias, sublinham o poder da escrita de invenção e o talento com o qual Lima Barreto a exercitou.

De resto, apenas evoco dois escritos de Lima Barreto reunidos nesta magnífica obra que podem servir a uma direta interlocução com sua produção ficcional. Veja-se Maio (I-77), peça notável que suscita uma leitura em direta relação com o romance Triste fim de Policarpo Quaresma. Seja pela circunstância de sua publicação, no período que medeia entre a finalização da redação do romance e sua aparição em folhetim, seja pelo aproveitamento direto na crônica de imagem que se encontra na segunda parte do romance, sua leitura permite ver como se vai de um registro a outro, do romanesco ao jornalístico, na escrita de Lima Barreto. O mesmo vale para Bailes e divertimentos suburbanos (II-499), em relação ao romance Clara dos Anjos.

Por fim, um comentário sobre a foto inédita que Beatriz Resende trouxe para a iconografia pública do autor. A pesquisadora refere-se a ela como reveladora “do doloroso estado em que se encontrava aquele homem tão precocemente envelhecido”. (I-17)

Confesso que, ao ver a imagem pela primeira vez, reproduzida na imprensa diária em formato ampliado, por ocasião do lançamento de Toda Crônica, não formei de imediato uma opinião sobre ela. De pronto, me indaguei sobre a relevância ou interesse crítico que a imagem poderia ter, já me inclinando um tanto na direção de julgar que a divulgação de tal imagem pouco acrescentaria à nossa compreensão de Lima Barreto e de sua obra. De resto, essa obsessão pela imagem, pelo registro visual, tão corrente quanto fútil, era já experimentada e duramente criticada, ainda em seus primórdios no Brasil, pelo próprio escritor[9]. Mas já em seguida, percebi que minha antipatia pela foto parecia provir de outra fonte, menos racionalizada. Aquela foto do mulato de expressão pachorrenta que ali se fixava, sem maiores olheiras ou sinais de debilidade alcoólica — no que respeitosamente discordo da colega —, parecia olhar para mim, desde o passado, como que a indagar dos míseros progressos que logramos fazer na construção de uma sociedade mais fraterna e menos brutal. E ao mesmo tempo, com a cabeça inclinada e o olhar entre sonolento e provocador, como que insinuava uma resposta sussurrada entre dentes, “bem sabia que eles eram capazes de tudo…”, aduzindo a seguir, entre generoso e esperançoso, a memória do fecho de Triste fim de Policarpo Quaresma: “Esperemos mais”.

Dois instantâneos
Como anotei acima, cada leitor tem direito ao seu Lima Barreto. Se a imagem com a qual Beatriz Resende fixa uma representação do autor, alinhavando seu ensaio, é a do jovem escritor obstinado em seus projetos ainda incertos, apoiado na formulação sombria de que “minha vida será sempre cheia de desgosto e ele far-me-á grande” (II-11), aquela com a qual mais me afino é a do escritor já veterano e ainda assim animoso, a confiar no papel da literatura na diminuição dos “motivos de desinteligência entre os homens que me cercam”[10].

Entre o jovem determinado, que busca afirmar-se individualmente, pelo sofrimento, contra as adversidades que a sociedade levantava contra ele; e o homem maduro que, a despeito das adversidades muito bem conhecidas e experimentadas, investe na direção dos outros, num movimento de comunicação com os que o cercam, minhas simpatias ficam com o último:

“Eu tento também executar esse ideal [estético] em uma língua inteligível a todos, para que todos possam chegar facilmente à compreensão daquilo a que cheguei através de tantas angústias. […] Todos nós que andamos em missão entre hindus, separados em castas hostis, entre malaios ferozes e pérfidos, entre japoneses que se guerreiam feudalmente, só devemos ter a divisa do Santo [São Francisco Xavier]: ‘Amplius! Amplius!’ Sim; sempre mais longe!”[11]

Notas

[1] Em levantamento informal, e de modo algum exaustivo, apenas do Triste fim de Policarpo Quaresma localizei em 2004 três edições diferentes: uma pela editora GERMAPE – disponível a módicos 7 reais! –, uma pela Scipione e outra pela Ateliê, esta com apresentação e notas de Ivan Teixeira; das Recordações do Escrivão Isaías Caminha, acaba de sair tiragem pela Edelbra. Talvez o mais significativo – e melancólico – indicador da ampla “escolarização” da ficção limabarretiana seja dado pelo conjunto de edições “condensadas” (!!!) desses dois romances antes mencionados e ainda de um terceiro, Clara dos Anjos, dadas a público ao longo do ano passado pela editora Rideel. Com exceção da Ateliê, é visível o interesse pela obra de Lima Barreto em selos dedicados, senão especializados, no público da escola. Não será demais lembrar que, já em domínio público, a obra de Lima Barreto também está parcialmente disponível, em formato digital, em vários dos portais eletrônicos da Internet. Contudo, mesmo aí se repete o padrão do mercado editorial: lá estão todos os romances e a ficção breve do autor, mas apenas uma pequena fração das crônicas, e nada das demais espécies textuais que compõem sua obra.

[2] Em artigo escrito e originalmente publicado na imprensa em 1976, tendo em consideração alguns estudos acadêmicos então em curso ou que se acabavam de realizar sobre a obra de Lima Barreto – em especial as teses universitárias de Osman Lins (1974), de Antonio Arnoni Prado (1975) e de Carlos Erivany Fantinatti (1977) – Antonio Candido alertava para o potencial rendimento de uma leitura da escrita “não-ficcional” de Lima Barreto como estratégia de compreensão de suas elaborações ficcionais em fórmula engenhosa: “Veja-se o Diário íntimo [de Lima Barreto], que pode dar a impressão de ser pouco importante, ou de ser importante apenas como documento. Nele encontramos projetos de ficção, anotações breves, confissões e certos episódios da sua vida que são às vezes de grande interesse […]. Tendo muita densidade de experiência e de escrita, eles servem para mostrar até que ponto na sua obra o autobiográfico pode funcionar como inventado.” In: Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo, Ática, 1986, p. 42.

[3] Após as duas edições das Obras Completas do autor, publicadas em 1956 e 1961 pela editora Brasiliense, sob a coordenação geral de Francisco de Assis Barbosa, em colaboração com Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença, apenas os romances e parte da ficção curta do autor, foram regularmente reeditados – de forma mais e mais intensa a partir da segunda metade da década de 1970, como já foi mencionado –, ficando os demais escritos de Lima Barreto fora de circulação por muitos anos. São exceções as edições do conjunto Diário do hospício – Cemitério dos Vivos (Rio de Janeiro, Departamento Municipal de Cultura, 1988 e 1993), na série Biblioteca Carioca, dirigida na época por Rosa Maria Gens. No caso das notas pessoais e de umas poucas cartas, registre-se apenas a publicação do volume Um longo sonho de futuro (Rio de Janeiro, Graphia, 1993). Em 1995, a editora Ática fez uma tiragem de algumas crônicas de Lima Barreto, com apresentação e possivelmente seleção de João Antonio, para distribuição entre os assinantes do jornal Folha de S.Paulo, fora portanto do circuito comercial. Já nas 1500 páginas da valiosa – e custosa! – Prosa Seleta (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2001), preparada por Eliane Vasconcellos, reapareceram algumas crônicas e escritos pessoais do autor, embora o grosso do volume fosse dedicado à ficção e a uma discreta, mas oportuna, reunião de resenhas e estudos sobre o autor publicados originalmente na imprensa, muitos deles de difícil localização. O conjunto da correspondência ativa e passiva do autor, que rendeu dois volumes inteiros dos dezessete que compuseram suas Obras Completas na edição Brasiliense, jamais voltou por inteiro ao prelo.

[4] Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. Rio de Janeiro, UFRJ; Campinas-SP, Unicamp, 1993.

[5] “Uma fita acadêmica”. Crônica em que Lima Barreto se alonga em comentários sobre a obra de Machado de Assis. Toda crônica – Lima Barreto, p. 581. Nas demais referências da obra, indicarei apenas a página entre parênteses, a seguir da própria citação, no corpo do texto.

[6] Histórias e sonhos. São Paulo, Brasiliense, 1956 (Obras Completas de Lima Barreto, VI), p.29.

[7] Em 21 de setembro de 1918, Alfredo Gonçalves de Oliveira, então primeiro secretário do Modesto Futebol Club, agremiação com sede na Rua Goyaz, próxima da estação Quintino Bocaiúva do ramal principal da Central do Brasil, dirige, em papel timbrado do Club, a seguinte carta ao autor:

“Tenho a subida honra de communicar-vos que por proposta de nosso consocio Raphael Gonçalves da Cunha, fostes admittido como socio deste Club em sessão de Directoria realisada no corrente mez.

Agradecendo a vossa preferência subscrevo-me […]”

(Coleção Lima Barreto Biblioteca Nacional, Manuscritos: I-6, 300,600).

Lima Barreto sócio de clube de futebol! Eis aí um exemplo do quanto ainda se pode extrair de um exame aturado dos originais e documentos remanescentes do autor.

[8] “Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo…” . Diário íntimo. São Paulo, Brasiliense, 1956 (Obras Completas de Lima Barreto, XIV), p. 76.

[9] Veja-se, por exemplo, a série de crônicas “Amor, cinema e telefone” (II-106), “A Questão dos telefones” (II-344) e “O telefone e o seu inventor” (II-549).

[10] Histórias e sonhos. São Paulo, Brasiliense, 1956 (Obras Completas de Lima Barreto, VI), p.34.

[11] Idem, p.35.

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