Tesouro de lembranças

Em "Mãe da rua", Ettore Bottini resgata uma infância de brincadeiras quase extintas, como o carrinho de rolimã e a bolinha de gude
01/11/2007

Mãe da rua é o nome de uma brincadeira, talvez a mais feminina do livro homônimo de Ettore Bottini. Mãe da rua é daqueles livros que permitem ao leitor a adaptação dos locais e brincadeiras do autor ao seu tesouro de lembranças. Com o artifício de obra infanto-juvenil, é óbvio que interessará muito mais aos leitores de meia idade como este aprendiz, que ora tenta escrever, atropelado pelas lembranças e saudades, estas sinceras linhas. Escritores que fazem da memória sua matéria-prima, como Ettore Bottini, são como amigos confidentes do leitor. Sentimo-nos amparados e menos bobos, principalmente quando nossos filhos saem em turma para a praia a fim de uma azaração, também sabem nos humilhar operando mp3, mp4, ou então gastam suas horas entre paqueras e consumo no shopping center.

Outro truque é a capacidade por eles desenvolvida de transformar pedido em aviso, como fez minha filha Thamara dia desses: “pai, estou indo a um show na Lapa”. Ok. Já pensou, pasmo leitor, se ela me convida? Quando coincide desse povo morar em cidades litorâneas, até podemos encontrá-los ao ar livre, do contrário, haja shopping! Caso você esbarre em algum garoto, numa cidade grande, carregando chuteira, pode apostar que ele se dirige a uma escolinha. Pelo menos isso, dirá você, benevolente leitor, mas esquece que escolinhas, e as escolas de modo geral, acabam com a criatividade, com a espontaneidade, a iniciativa e a socialização natural. Em Mãe da rua, o ponto alto fica com a preparação do campinho. Caso você, sedentário leitor, tenha deixado sua infância numa cidade do interior, saberá entender o valor que teve “o campinho”.

O “meu campinho” era preparado pelo meu avô com cuidados que Maracanã e Beira Rio jamais merecerão. Das traves à marcação do campinho, tudo era por conta do meu avô. E depois, quando a turma chegava, bastava jogar a bola para o alto e, antes que quicasse três vezes, o contingente já era o bastante para dois times e seus respectivos reservas. O avô lá, sentado, lenço protegendo a careca e dando instruções. Pela manhã, em tempo de férias, caçávamos passarinho, mas nada de matar João-de-barro, que Deus castiga.

Ettore Bottini consegue, com maestria, recriar espaço e tempo. Convenhamos, não é pouco. Enquanto conta a história do lugar, com direito a mapa e a indicação do espaço ocupado pelas turmas, o autor ensina jogos da época, pião, bate-lata, bulica, botão; a maioria sucumbiu aos avanços tecnológicos e à extinção da infância. E apresenta o passo a passo para a confecção de alguns brinquedos como carrinho de rolimã e o hoje politicamente incorreto estilingue, também conhecido como bodoque na Rosário do Sul da minha infância, ronqueira, revólver de feijão, colhões de gato e balão. Sem esquecer das bolinhas de gude, para nós, bolitas, a fronteira estava próxima, ó sarcástico leitor. Aldo, meu irmão, nunca perdia, ele chegou a ter três latas grandes de farinha Láctea cheias de bolitas; eu juntava umas moedas, corria até a venda e voltava com meia dúzia das bolinhas de vidro que logo mudariam de dono. Enfim, Ettore Bottini conseguiu me fazer viajar no tempo, vejo agora a fisionomia dos meus amigos, todos alegres, alguns tímidos, na verdade éramos todos meio abobados, se comparados com o pessoal de hoje. A edição é um luxo, belíssimas fotos e ilustrações, além de um irretocável projeto gráfico assinado pelo próprio autor. Para quem ainda não sabe, um dos nossos mestres no assunto.

Percebo que de uns anos pra cá, tornei-me refém das minhas emoções e decidi levar um papo dos mais sérios com o tempo, e fizemos um acordo: não o desprezo, não o ignoro, não tento apagar suas pegadas e ele me dá outras chances. Tem sido assim. Não foi fácil, e mais não digo porque você, invejoso leitor, se sentiria ofendido. No mais, compreensivo leitor, é proteger com carinho, como nos ensina Ettore Bottini, nosso tesouro de lembranças.

Mãe da rua traz algumas lições e a maior delas é esta: temos lembranças, construímos coisas. Também deixa no ar alguns enigmas, o mais forte: que lembranças terão nossas crianças daqui a vinte anos? Sem dúvida, terão muitas, mas lembrarão de alguma brincadeira?

Mãe da rua
Ettore Bottini
CosacNaify
88 págs.
Ettore Bottini
Nasceu em Blumenau (SC), em 1948, mas foi registrado no Rio de Janeiro, em 1949. Cursou arquitetura na USP, em 1970. Atua como artista gráfico há trinta anos, atividade que lhe rendeu um prêmio Jabuti. Mãe da rua é seu primeiro livro.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho