Mãe da rua é o nome de uma brincadeira, talvez a mais feminina do livro homônimo de Ettore Bottini. Mãe da rua é daqueles livros que permitem ao leitor a adaptação dos locais e brincadeiras do autor ao seu tesouro de lembranças. Com o artifício de obra infanto-juvenil, é óbvio que interessará muito mais aos leitores de meia idade como este aprendiz, que ora tenta escrever, atropelado pelas lembranças e saudades, estas sinceras linhas. Escritores que fazem da memória sua matéria-prima, como Ettore Bottini, são como amigos confidentes do leitor. Sentimo-nos amparados e menos bobos, principalmente quando nossos filhos saem em turma para a praia a fim de uma azaração, também sabem nos humilhar operando mp3, mp4, ou então gastam suas horas entre paqueras e consumo no shopping center.
Outro truque é a capacidade por eles desenvolvida de transformar pedido em aviso, como fez minha filha Thamara dia desses: “pai, estou indo a um show na Lapa”. Ok. Já pensou, pasmo leitor, se ela me convida? Quando coincide desse povo morar em cidades litorâneas, até podemos encontrá-los ao ar livre, do contrário, haja shopping! Caso você esbarre em algum garoto, numa cidade grande, carregando chuteira, pode apostar que ele se dirige a uma escolinha. Pelo menos isso, dirá você, benevolente leitor, mas esquece que escolinhas, e as escolas de modo geral, acabam com a criatividade, com a espontaneidade, a iniciativa e a socialização natural. Em Mãe da rua, o ponto alto fica com a preparação do campinho. Caso você, sedentário leitor, tenha deixado sua infância numa cidade do interior, saberá entender o valor que teve “o campinho”.
O “meu campinho” era preparado pelo meu avô com cuidados que Maracanã e Beira Rio jamais merecerão. Das traves à marcação do campinho, tudo era por conta do meu avô. E depois, quando a turma chegava, bastava jogar a bola para o alto e, antes que quicasse três vezes, o contingente já era o bastante para dois times e seus respectivos reservas. O avô lá, sentado, lenço protegendo a careca e dando instruções. Pela manhã, em tempo de férias, caçávamos passarinho, mas nada de matar João-de-barro, que Deus castiga.
Ettore Bottini consegue, com maestria, recriar espaço e tempo. Convenhamos, não é pouco. Enquanto conta a história do lugar, com direito a mapa e a indicação do espaço ocupado pelas turmas, o autor ensina jogos da época, pião, bate-lata, bulica, botão; a maioria sucumbiu aos avanços tecnológicos e à extinção da infância. E apresenta o passo a passo para a confecção de alguns brinquedos como carrinho de rolimã e o hoje politicamente incorreto estilingue, também conhecido como bodoque na Rosário do Sul da minha infância, ronqueira, revólver de feijão, colhões de gato e balão. Sem esquecer das bolinhas de gude, para nós, bolitas, a fronteira estava próxima, ó sarcástico leitor. Aldo, meu irmão, nunca perdia, ele chegou a ter três latas grandes de farinha Láctea cheias de bolitas; eu juntava umas moedas, corria até a venda e voltava com meia dúzia das bolinhas de vidro que logo mudariam de dono. Enfim, Ettore Bottini conseguiu me fazer viajar no tempo, vejo agora a fisionomia dos meus amigos, todos alegres, alguns tímidos, na verdade éramos todos meio abobados, se comparados com o pessoal de hoje. A edição é um luxo, belíssimas fotos e ilustrações, além de um irretocável projeto gráfico assinado pelo próprio autor. Para quem ainda não sabe, um dos nossos mestres no assunto.
Percebo que de uns anos pra cá, tornei-me refém das minhas emoções e decidi levar um papo dos mais sérios com o tempo, e fizemos um acordo: não o desprezo, não o ignoro, não tento apagar suas pegadas e ele me dá outras chances. Tem sido assim. Não foi fácil, e mais não digo porque você, invejoso leitor, se sentiria ofendido. No mais, compreensivo leitor, é proteger com carinho, como nos ensina Ettore Bottini, nosso tesouro de lembranças.
Mãe da rua traz algumas lições e a maior delas é esta: temos lembranças, construímos coisas. Também deixa no ar alguns enigmas, o mais forte: que lembranças terão nossas crianças daqui a vinte anos? Sem dúvida, terão muitas, mas lembrarão de alguma brincadeira?