Em Casa tomada, conto de abertura de Bestiário, primeiro livro do argentino Julio Cortázar (1914–1984), a moradia é um organismo vivo na história — uma espécie de personagem imóvel. No relato, dois irmãos já idosos são encurralados por desconhecidos que invadem o lugar cômodo por cômodo. Na coletânea As coisas que perdemos no fogo, a portenha Mariana Enriquez faz de O menino sujo”, primeiro texto do volume, uma homenagem ao autor de O jogo da amarelinha. Assim como Cortázar, a escritora transforma uma residência em um sujeito ativo na história, como se a casa fosse um referencial dentro da construção narrativa — ainda que a história passeie pela cidade, vencendo o leitor por nocaute.
Os 12 contos que compõem o livro carregam um quê de surrealismo, como uma alegoria para uma Argentina fraturada política e economicamente. Todas as fantasmagorias de As coisas que perdemos no fogo escondem, sob essa camada assombrosa, uma realidade consternadora. Fã confessa da literatura gótica, a escritora consegue contextualizar o tom macabro e desconfortável dos textos com a violência e o medo que percorrem as ruas das grandes cidades. Sob a água negra é um retrato da truculência policial pós-ditadura militar argentina. Entretanto, Mariana consegue estabelecer um fio condutor muito característico de seu universo peculiar.
O conto A casa de Adela, que deve muito a Henry James e Edgar Allan Poe, explora os terrores que cultivamos na infância e que nos acompanham para sempre e, não raras vezes, são capazes de nos tirar dos trilhos. Outra interpretação possível: uma metáfora para os desaparecidos durante o regime militar.
Por outro lado, Enriquez usa a literatura para colocar o dedo em feridas que não parecem cicatrizar tão cedo. Além da política, o livro se debruça sobre o papel da mulher na sociedade. “Quando compus [a ordem dos contos], comecei a notar que os poucos homens que haviam [nos textos] eram sobretudo muito antipáticos”, comentou em entrevista à revista Los Inrockuptibles. Nesse sentido, as mulheres de Os anos intoxicados, por exemplo, usam os parceiros à medida que os desprezam. Há um acordo tácito para mantê-los seguramente afastados — e, claro, sempre há quem quebre a corrente firmada. Já as irmãs de A hospedeira precisam lidar com um conflito entre si e que, ao que tudo indica, não parece acabar. As relações familiares turbulentas também fazem parte do catálogo de guerras íntimas que permeiam os contos da obra. Muitas vezes o horror não está no anormal ou no fisicamente grotesco, mas no interior de cada um e no cotidiano que aprisiona na rotina.
Mariana Enriquez usa a literatura para colocar o dedo em feridas que não parecem cicatrizar tão cedo. Além da política, o livro se debruça sobre o papel da mulher na sociedade.
Pesadelos
Chamar a produção literária de Enriquez de terror é criar um rótulo para algo que não precisa receber etiquetas e classificações. Por mais que se observem estruturas e tessituras características, existe também uma aura de subversão e contraponto: a começar por trazer o obscuro para as ensolaradas ruas sul-americanas ou criar uma relação dark com figuras do folclore argentino como Guachito Antonio Gil — uma espécie de Cristo dos pampas — e o Baixinho Orelhudo, considerado o primeiro assassino em série argentino.
Há sempre um pesadelo rondado os personagens de habitam as histórias de As coisas que perdemos no fogo. Para isso, Mariana Enriquez — autora outros oito livros em seu país — precisa ser impiedosa com suas criações. Fim de curso é um retrato cru e bizarro de uma adolescente que pratica automutilação, arrancando as próprias unhas com os dentes. Obviamente, existem doses de sobrenatural no conto, mas que não deixa criar uma resposta fácil aos questionamentos do leitor.
Quando perguntada, pelo El País espanhol, se se sentia mal ao escrever relatos tão bizarros, Mariana foi enfática: “de forma alguma”. “Imagino que um pai, ao ver que a filha está produzindo esse tipo de monstruosidades, dirá: ‘essa menina está passando por algo muito ruim’. Mas eu não me sinto mal de forma alguma”, disse. O timbre de sua escrita concebe algo muito peculiar: um universo que parece caber somente em seu folclore particular, mas que, em contrapartida, está visível a todos.
Em Verde vermelho alaranjado, a escritora percorre o submundo da deep web, usando a internet como fomentador do animalesco. Esse conto é um ponto de contato entre o que H. P. Lovecraft construiu e aquilo que qualquer adolescente pode encontrar ao vasculhar as entranhas do ciberespaço.
Herança
Apesar da virulência que carregam os seus contos, Mariana Enriquez cresceu como uma menina tímida em Lanús, subúrbio de Buenos Aires. Parte do seu interesse pelos relatos fantásticos nasceu da convivência com a avó, criada na província de Corrientes e que costumava lhe contar histórias recheadas de tons sobrenaturais, ocultos e obscuros. Da infância retraída à adolescência punk foi questão de tempo.
A herança da oralidade familiar percorre toda a obra de Mariana, mas o primeiro fruto foi Bajar es lo peor, novela publicada em 1994 e ainda inédita no Brasil. Somente uma década mais tarde voltaria a publicar. O romance Cómo desaparecer completamente — uma clara referência à canção How to desapear completly, do Radiohead — é também um espelho da fobia que desenvolveu à medida que sua estreia a colocava sob holofotes.
Segundo contou à Los Inrockuptibles, não há diferença entre ler e escrever. “São parte do mesmo processo”, confidenciou. Isso explica o entrincheiramento do seu fazer literário — o que contraria o que o escritor português Gonçalo M. Tavares disse em entrevista ao Rascunho na edição 190.
A seu modo, Mariana Enriquez dá voz à geração perdida dos anos 80, elevando ao patamar de arte os traumas de gente que, como ela, cresceu sob as sombras dos quepes e roupas camufladas. Nesse prisma, o conto que fecha e dá nome ao volume — narra a vida de mulheres que ateiam fogo em si mesmas — é um réquiem para um sonho ruim, um sentimento que percorre as veias de histórias que não se deveria contar e acabam caindo na pena da autora.