Terreno instável

Em "O macaco ornamental", de Luís Henrique Pellanda, há sempre algo que transcende o real, numa atmosfera de sonho e pesadelo
Luís Henrique Pellanda, autor de “O macaco ornamental”
01/02/2010

Se me pedissem um adjetivo para caracterizar os contos de Luís Henrique Pellanda, eu diria sem medo de errar: escorregadios. Nunca nos sentimos em terra firme em qualquer um dos catorze contos que compõem seu livro de estréia, O macaco ornamental. O leitor pode ficar certo de que não basta apenas uma leitura para entender o que se passa em cada uma de suas histórias. É preciso ler, reler e reler, porque uma palavra que perdemos pode ser a chave para sua compreensão. Se isso acontece é porque Pellanda trabalha com o que há de mais escorregadio no homem: os sentimentos.

A epígrafe tirada de Thomas Mann é bem sintomática: “Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”. A pergunta coloca uma dúvida que será respondida quase sempre negativamente. Um bom livro de contos, mesmo desenvolvendo temas diferentes, deve passar ao final de sua leitura um universo que seja a sua marca. Pellanda nos passa isso muito bem, ao criar um mundo de sentimentos que vão de um extremo a outro em segundos, como a dizer que as relações humanas nunca são terreno seguro. Jamais estamos certos do que sentimos e muito menos do que os outros sentem em relação a nós. O mínimo gesto, a menor palavra, tudo pode nos desestabilizar e fazer aflorar o que nem pressentíamos.

Os contos de O macaco ornamental tanto podem ter 54 páginas quanto apenas uma. O desfecho pode ser protelado, como no conto de abertura, Caldônia Beach, o mais longo deles, ou de uma tacada só, como em Ingratidão, o mais curto, com apenas um parágrafo. Neste, em apenas sete linhas, o golpe vem certeiro, sem nenhum aviso, como deve acontecer num bom conto.

Caldônia Beach revela um autor mais preocupado em desenvolver uma boa história, sem nenhuma pressa. Com fôlego de novelista, Pellanda deixa que a história se desenrole com toda a naturalidade que o tema exige, o da busca da mulher que um dia deslumbrou o narrador. Tudo começa na manhã em que Sileu sabe da morte de seu antigo professor de pintura. Ele vai, então, remexer a pasta de seus antigos trabalhos e encontra o desenho da primeiro modelo nua que viu, ele ainda na pré-adolescência, com dez anos apenas. Agora ele tem cerca de 35 anos, viúvo, dois filhos, e carrega em si a amargura típica dos derrotados. Aquele encontro com os esboços de seus desenhos o faz viajar no tempo, para suas primeiras aulas de pintura, quando um dos exercícios era desenhar com modelo vivo.

Mal-estar repentino
Julio Cortázar, que dispensa apresentações, diz que o conto, assim como o poema, “nasce de um repentino estranhamento, de um deslocar-se que altera o regime ‘normal’ da consciência”. Caldônia nasce desse regime, de um mal-estar repentino do narrador diante da vida que não deu certo. É nessa hora que surge a vontade de rever Caldônia (é esse o nome da modelo) para ver se reata o fio perdido de sua vida. Ao folhear sua pasta de desenhos, ele diz: “A pasta é um mausoléu de projetos abandonados, monumento póstumo a uma carreira medíocre”. Seria possível agora reencontrar as mesmas emoções que aquela jovem despertou nele 25 anos atrás? Volto a Cortázar, quando compara o conto à fotografia, aquele “fragmento de realidade” que o contista recorta por sabê-lo significativo. Pellanda faz em Caldônia Beach um recorte de onde brotam só frustrações, numa viagem que nos faz lembrar um outro conto de busca, Viagem aos seios de Duília, do esquecido Aníbal Machado.

Nessa busca desesperada por Caldônia, Pellanda traz para a sua ficção recursos bem atuais. Como encontrar uma mulher que se perdeu no tempo? A internet existe para isso. Usando de todos os meios, descobre onde ela trabalha. Ela é hoje recepcionista de uma clínica de reprodução humana. Sileu não hesita em marcar uma consulta com um urologista, mesmo sem precisão, e termina encontrando Caldônia, mas o encontro tão esperado vira apenas mais uma frustração em sua vida. Ele não consegue se comunicar com ela, dizer do momento feliz de sua infância quando a viu nua. A ele, então, só resta fazer um relato de sua decepção ao qual anexa o velho desenho que fez dela:

Aqui está ela, para você, a nossa praia, rabiscada por um menino em 1983. Venha comigo para lá, para Caldônia Beach, para que nademos juntos nas suas águas limpas de mentira, entre cardumes de tubarões vermelhos, vampiros livres da ação do tempo e da morte, movidos pelo sangue de todas as crianças que já passaram pelo mundo.

O mesmo artista sem talento aparece em Duas cartas. O missivista escreve uma carta para Marion e outra para Décio, um triângulo amoroso que não fica muito claro. Pellanda gosta de deixar zonas obscuras para que o leitor as escave. Só depois de ler a segunda carta e voltar à primeira, é que tudo se ilumina. A primeira carta é de despedida, endereçada à mulher. O casal já havia chegado àquele ponto de incomunicabilidade que só pode terminar mesmo em separação. Não há mais volta. Ele diz: “Já eram oito e meia quando entrei no nosso quarto, bem quieto. Você nem percebeu. Fui dar uma última olhada na bela adormecida, nas últimas curvas do teu corpo. Mas você estava coberta, o efeito não foi o mesmo. Mais uma decepção para a nossa lista”. Eles foram apenas um casal bonito. E o discurso dele vai crescendo, pouco a pouco, até alcançar a exasperação e dizer: “Depois deste café gostoso, eu me mato”.

A carta para Décio também é de despedida. O mal-estar nas relações amorosas continua aqui. Não fica muito clara qual a relação entre o narrador e Décio, mas tudo indica que era também de amor. Parece que não há mesmo lugar para esse sentimento no mundo criado por Pellanda. No final do conto, diz o narrador: “Mas encerro, enfim, a tua carta de alforria. O teu melhor presente de aniversário. Parabéns, meu amigo. Me sacrifico no teu dia votivo”.

Uma das estratégias de Luís Henrique Pellanda é deixar sempre nuvens por trás da história que conta. Isso instiga a imaginação do leitor e a vontade de aclarar algo que nem mesmo as personagens vêem com clareza. É o que ocorre em Ladrão de cavalos. Intuímos que ali houve um adultério, mas disso não temos certeza. A narradora também não. Trata-se de um dos melhores contos do livro. Uma irmã quase septuagenária narra para o irmão o que aconteceu na infância, um fato para ele desconhecido mas que tem tudo a ver com a expulsão dele e da mãe de casa. Tudo se passa na época da Segunda Guerra quando os cavalos do pai foram requisitados. O irmão, agora padre, nasce depois desse acontecimento. Tudo indica que a mãe deles traiu o pai com um soldado, pois o pai só gerava mulheres, e agora veio um menino, ainda mais de cabelos louros, bem diferente das cinco irmãs.

Vontade de contar
Há nas personagens de O macaco ornamental uma vontade muito grande de contar, como se contar fosse a forma mais apropriada para se livrarem daquilo que as sufoca. A literatura aqui se revela como a única forma de chegar ao outro, de, pela palavra, jogar luz sobre o que ficou obscuro em algum momento da vida. Os contos parecem cartas que se enviam depois de algum fato que incomoda. Assim é Nós, os limpos, em que uma mulher já na idade madura troca a vida religiosa (supõe-se) pela vida mundana, substituindo Deus por um ser de carne e osso: “Vida nova, Senhor. Ela chegou e se estabeleceu. Por isso sou toda alegria e contentamento; por isso agradeço a graça concedida. (…) Em respeito a nosso passado, até prometo não gritar aleluias na Tua presença”. Neste conto, o amor existe mas à custa de muito sacrifício.

A ânsia de contar também aparece em O buquê, um grande conto de amor proibido. Trata-se de uma espécie de monólogo dirigido por Quitéria a Ondina. Aqui também não é dito claramente que as duas foram amantes um dia. Sabemos apenas do ciúme exagerado de Quitéria por Ondina. A história começa pela volta de Quitéria do cemitério: “Acabo de chegar do teu enterro, Ondina. Não foi uma cerimônia bonita. E nem podia ser. Sabe que você me saiu uma defunta feia?”. Mesmo depois da amiga morta, Quitéria não a perdoa por ter amado Ludano. Não sabemos se Ondina correspondeu à paixão de Quitéria. Por supostas artes de bruxaria, Ondina não casa com ele e passa vinte anos doente, em cima de uma cama até morrer. Mas nem mesmo a morte é capaz de aplacar os sentimentos de Quitéria, que conclui, assim, o seu monólogo: “Agora vou me livrar de você pra sempre, Ondina. Jogar fora essa tua mecha loira, se é que você me permite. Dá azar guardar os cabelos de uma morta, sabia? Pensei em ir até o tanque das tilápias, afogar nele a tua relíquia, a tua lembrança, a nossa história. Faz tanto tempo que não vou lá. Mas quer saber? Me deu preguiça. Vou pra cama. Teus cabelos vão se dissolver na fossa aqui de casa”. A frase final choca pelo inesperado e pela transformação do amor em ódio.

Como se vê, há uma linha que une os contos desse Macaco ornamental, a instabilidade dos sentimentos, que passa das personagens ao leitor. Se elas não estão seguras do que sentem, muito menos nós quando lemos seus relatos. No conto que dá titulo ao livro, em apenas duas páginas, Pellanda conta uma história de ternura e ao mesmo tempo de desesperança. O pai olha o filho dormindo e sua reflexão final, inesperada, nos lança num mundo sem nenhuma perspectiva. O homem (isso me faz lembrar Drummond) tem a consciência de que é “bicho da Terra tão pequeno”. Não passamos todos nós de um utensílio entre outros utensílios. Em poucas palavras, o mundo em que vivemos é pintado em toda sua frieza e o filho desperta no pai uma imagem inusitada, como se não houvesse mais redenção para nenhum de nós.

Poderíamos falar de muitos outros contos, como Chaleira, Ursa, São Menécio, mas o espaço não comporta. São todos muito bem realizados, cheios de uma violência que pulsa surdamente e que termina explodindo. Mas não se pense que isso vem envolto numa linguagem crua, realista, porque a abordagem do real nunca é aqui fotográfica, não tem nenhum compromisso com o naturalismo. Nos contos de Pellanda sempre há algo que transcende o real, se sobrepõe a ele, criando uma atmosfera de sonho quando não de pesadelo.

Para encerrar, me sirvo das palavras do crítico José Castello, que na orelha do livro diz: “Obstinado na procura de sua voz, e sem medo do fracasso, Luís Henrique Pellanda nos entrega este livro incomum. Suas histórias podem provocar qualquer sentimento, menos a indiferença”. Que o leitor vá ao encontro dessa voz. Não se arrependerá, mesmo pisando terrenos tão instáveis.

Cinco perguntas para Luís Henrique Pellanda

Alegria de escrever

• O que aguarda o leitor neste seu livro de estréia?
Difícil precisar. Os leitores se consideram, talvez com razão, os verdadeiros donos daquilo que lêem. E cada um terá sempre o seu entendimento — às vezes amalucado — de cada texto. Isso é bom, e escapa ao nosso controle. Assim, neste começo de trajetória, quase no escuro, é mais fácil me basear no que ouço por aí. Muitos leitores me disseram que O macaco ornamental lhes pareceu “um livro vivo”. É uma definição abrangente sobre algo desejável: esperar de um livro uma relação viva, que reaja mal a qualquer sombra de passividade. Espero, portanto, haver criado um bando de contos vivos, capazes de interagir, pacificamente ou não, com as particularidades de cada leitor.

• O que a sua literatura, em geral, pretende?
Sou e sempre fui um contador de histórias; sou e sempre fui um ouvinte e um leitor de histórias. Por isso, pretendo contá-las e recontá-las para provocar, através das várias camadas de interpretação que empilho ao construí-las, alguma identificação em quem as lê. E por mais paradoxal que seja, quero que essa identificação nasça justamente da estranheza que meus contos despertam. Gerar perguntas e significados também é uma pretensão excelente. Resumindo, minha literatura pretende ser boa.

• Quais foram os maiores desafios, alegrias e tristezas durante a construção de O macaco ornamental?
Um desafio respeitável, o pai de todos eles, é produzir — e já me repito — boa literatura. E qual é a boa? Talvez a que aceite e exija a participação do leitor, a que evite o hermetismo, ignore a tentação preguiçosa das obviedades e repila a mentira travestida de sabedoria. No caso do meu livro, desafiador foi forjar uma voz pessoal, que representasse o autor e, simultaneamente, pudesse ser emprestada aos meus vários narradores, tão diferentes uns dos outros. Quanto às alegrias envolvidas no processo, é fácil responder: escrever me alegra. Não vejo sofrimento algum nisso. Tristeza é outra coisa.

• Quais os seus próximos projetos ficcionais?
Outro livro de contos, já parcialmente estruturado. Até o fim do ano, espero terminá-lo. Por ora, me dedico também às crônicas que publico semanalmente no site Vida Breve (www.vidabreve.com), uma série de textos em que retrato a mim mesmo e recrio minhas memórias a partir de encontros meus com animais de diversas espécies. Trata-se de uma idéia em princípio estranha, mas atraente. Talvez eu extraia daí um livro romanceado de lembranças e ficções conjugadas.

• Qual a sua opinião sobre a literatura brasileira contemporânea?
Como todas as grandes literaturas nacionais, a brasileira contemporânea é feita de bons e maus autores, de diversas gradações, os bons representando uma minoria. Isso não é negativo. É natural. O que a caracteriza, acho, é uma imensa diversidade de olhares, intenções e abordagens — traço que, ainda bem, demole toda e qualquer idéia de conjunto. Melhor assim. Que responda cada autor por seu trabalho e cada leitor por suas leituras.

O macaco ornamental
Luís Henrique Pellanda
Bertrand Brasil
192 págs.
Luís Henrique Pellanda
Nasceu em Curitiba, em 1973. É escritor, jornalista, dramaturgo, roteirista e músico. Atualmente, é co-editor do site Vida Breve (www.vidabreve.com), onde publica crônicas às quintas-feiras. No Rascunho, assina a coluna de entrevistas Leituras cruzadas.
Antonio Carlos Viana

É escritor. Autor de, entre outros, Cine privé.

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