Terra sem heróis

Em Um grão de trigo, Ngũgĩ Wa Thiong’o relata período de crise antes da independência do Quênia
Ngũgĩ Wa Thiong’o, autor de “Um grão de trigo”
26/09/2015

Clássico da literatura africana, Um grão de trigo foi publicado em 1967, apenas quatro anos depois da conquista da independência do Quênia. O terceiro romance de Ngũgĩ Wa Thiong’o expõe conflitos ocorridos dias antes da independência, em dezembro de 1963.

Por trás dos problemas, está a luta pela identidade nacional no processo de transformação do Quênia. Traição, submissão aos colonizadores e a tentativa de manter as tradições locais a partir da união do povo integram o enredo.

A história se passa na aldeia Thabai. De um lado do conflito, estavam os colonizadores ingleses. De outro, o Exército Terra e Liberdade, movimento anticolonialista também conhecido como Mau Mau — nome usado pelos colonizadores para tentar desqualificar os militantes. Ao longo do livro, no entanto, Thiong’o prova que essa luta não é tão dualista e que a comunidade precisa enfrentar também a própria instabilidade para se manter viva.

O protagonista é Mugo, tratado como grande herói pelos habitantes de Thabai. Depois de ter sido preso pelos ingleses, ele virou um personagem famoso nas histórias de resistência contadas na aldeia. Mugo é conhecido pela bravura e por jamais ter abandonado os companheiros de luta. Mas essa fama não parece confortável para ele. Não conhecemos a fundo sua personalidade e intenções. Mugo vive sob uma nuvem de desconfiança, e o mistério sobre seu comportamento é esclarecido apenas nos capítulos finais.

Outro herói é Kihika, um mártir local morto pelo exército inglês. O desejo de vingar sua morte é uma das principais preocupações da população, e dita todo o enredo do livro, pois alguém da própria aldeia entregou Kihika aos inimigos. Ainda sem conhecer a identidade do traidor, os moradores de Thabai prepararam uma vingança para o dia das comemorações da independência, quando esperavam ouvir uma confissão.

A metáfora do grão de trigo faz referência a uma passagem bíblica citada logo no início da obra — “O que semeias não readquire vida a não ser que morra”. Em vários momentos do livro há a citação de outros trechos, grifados na Bíblia do próprio Kihika. Essas passagens, aliadas aos discursos dos anciãos da aldeia, dão a tônica da religiosidade e cultura oral presentes na narrativa.

O homem branco quase não tem rosto para os habitantes de Thabai. É uma figura estranha. Fala-se dele como algo desconhecido e ameaçador. Poucas vezes aparecem personagens brancos. Quando surgem, mostram-se orgulhosos e convencidos da expansão do império britânico, e enxergam os africanos como pessoas que precisam ser controladas. Isso se mostra, por exemplo, em uma série de anotações sobre as guerras no diário do oficial Thompson.

É preciso usar um porrete. Nenhum governo pode tolerar a anarquia, nenhuma civilização pode ser construída com essa violência e selvageria. O Mau Mau é um mal: um movimento que, se não for barrado, significará a destruição de todos os valores com base nos quais nossa civilização tem prosperado.

O retorno
Nas diversas variações de tempo e espaço que a narrativa tem, Mugo fica um pouco de lado para dar voz às histórias de outros homens detidos pelo exército. Um dos principais dramas dos quenianos encaminhados à detenção é o desconhecimento total da vida em Thabai. Como estão sobrevivendo seus amigos, seus pais, irmãos e mulheres? Gikonyo protagoniza esse dilema quando retorna à aldeia e descobre que foi traído pela mulher, Mumbi, e pelo amigo Karanja enquanto esteve na detenção. A decepção é ainda mais forte porque, ao sair da aldeia, Gikonyo tem convicção de que tudo permanecerá do mesmo jeito até a sua volta, quando estaria livre para construir uma nova história.

O dia da libertação não tardaria. Gikonyo voltaria e retomaria o fio da meada de sua vida, mas dessa vez numa terra de glória e abundância. Era isso que ele queria dizer à sua mãe e a Mumbi quando os soldados o conduziram ao caminhão que esperava. Os homens brancos podiam fazer o que bem entendessem; chegaria o dia, e na verdade estava prestes a chegar, quando ele voltaria para Thabai e, junto com os combatentes da floresta, ao raiar da liberdade, balançaria a terra com uma nova canção.

No retorno de Gikonyo, a relação com a esposa fica abalada e perigosa. Tanto ele quanto os pais de Mumbi, após a separação do casal, revelam ter uma avaliação um tanto injusta das atitudes e do papel da mulher no relacionamento. Nesse ponto, em que o autor dá peso para a história do casamento em crise e para a vida de Mumbi, o livro ganha um tom mais dramático.

Submissão
Alguns quenianos foram recrutados para se unir aos ingleses durante a guerra. A vida desses personagens tem relatos tão penosos quanto dos moradores da aldeia, pois eles desenvolveram uma estranha relação de fidelidade com aqueles que estavam destruindo seu povo e seus costumes.

Ao final do livro, o personagem Muhoya faz uma triste analogia com esse sentimento de dependência e de defesa do próprio agressor. Vivendo uma rotina infernal dentro de casa, em que ele e a mãe são espancados pelo pai, Muhouya resolve se vingar. Mas, ao entrar em uma briga com o pai, a mãe aparece para defender o marido. Esse exemplo familiar de submissão o leva, mais tarde, a entender também parte de seu povo.

Ele é seu pai e meu marido”, gritava ela, enquanto dava uma pancada em seu ombro. Muhoya saiu correndo de casa. Pela primeira vez chorou. Não conseguia compreender. Ficou contente quando foi recrutado pelos ingleses para lutar na guerra deles. Mas nunca esqueceu essa experiência. Nunca. Só mais tarde, quando viu tantos quenianos capazes de defender orgulhosamente sua escravidão, foi que ele pôde compreender a reação da mãe.

Karanja, personagem que passou de melhor amigo de Gikonyo a seu maior traidor, é um exemplo de morador corrompido pelos colonizadores. Assumiu para si a brutalidade dos brancos, em troca de algo que não se sabe bem o que é, enquanto trabalhou para eles.

Ninguém é herói sozinho
A desconfiança sobre a verdadeira participação de Mugo na luta pela independência gerou uma insegurança na comunidade de Thabai. Será que se dedicar ao culto de um ou outro herói não enfraquecia o poder coletivo? Não foi o povo queniano, com sua luta diária em conjunto, quem de fato venceu o colonizador?

O livro tem seus pontos altos ao dar voz à comunidade. A narrativa flui melhor quando troca a descrição do narrador em terceira pessoa por longos depoimentos dos personagens sobre seus dramas. Dessa maneira, podemos conhecer melhor os moradores da aldeia — em geral, introvertidos e tensos.

Além de importante registro da história do povo do Quênia, Um grão de trigo também representa a luta pela afirmação da literatura africana, que se distancia da literatura ocidental para formar suas próprias características e manter vivas suas tradições. Thiong’o faz parte de uma geração de escritores que viveu o colonialismo, o processo de independência, e que viu na literatura uma forma de fortalecer a identidade do país.

Um grão de trigo

Ngũgĩ Wa Thiong’o
Trad.: Roberto Grey
Objetiva
302 págs.
Ngũgĩ Wa Thiong’o
Nasceu em Limuru, Quênia, em 1938. É romancista, ensaísta e dramaturgo. Em 1977, por causa das críticas sociais em sua obra, foi preso pelo regime ditatorial. Vive nos Estados Unidos, onde atua como professor na Universidade da Califórnia e integra a American Academy of Arts and Letters. Foi um dos convidados da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) neste ano.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho