Teoria dos versos

A produção livresca da poesia seria apenas a sofisticação de um modelo extremamente primitivo de comportamento mental
01/10/2006

Em seu artigo sobre a função social da poesia, T. S. Eliot registra a pertinência de o poeta criar um espírito transformador no leitor, que, a partir de sua freqüência aos textos, repartirá com seus contemporâneos de língua uma experiência de nacionalidade. Não creio que a poesia cumpra função alguma além da produção de estesia no leitor. Tudo o que se lhe atribui, além da estesia, são fatores culturais que estão fora da essência do fazer poético. No mesmo artigo, Eliot argumenta que o poeta mostra seu tempo, que precisa apenas de um pequeno grupo de admiradores e que dialoga com a tradição. Talvez a melhor contribuição de Eliot tenha sido apontar essa grande família literária a que o poeta se incorpora voluntária ou involuntariamente, criando, quem sabe, um gigantesco e único poema universal produzido pela humanidade dos poetas. Creio que Pound, quando fala que o poeta tem dons de ser uma antena da raça, coloca-o não apenas como contemporâneo dos problemas do meio em que vive, mas também como alguém que anuncia os comportamentos vindouros.

Essa idéia do poeta como profeta está ligada à concepção de como Todorov o viu no aspecto primitivo da poesia. Todorov, em seu livro sobre simbologia, alertava que a poesia tinha um passado mítico, e que a linguagem poética pertencia ao mesmo universo pré-histórico do início da linguagem. A linguagem poética, dessa maneira, seria uma volta aos primórdios. Ela estaria vinculada a uma concepção do mundo quando ainda se nomeavam os objetos. A poesia, vista desta forma, renomearia o mundo à sua maneira. Poesia e religião primitivas estariam de mãos dadas nesta concepção do poeta como ser criador da realidade. As metáforas não passariam de uma maneira de dar nomes a objetos sem nome. Eu diria, seguindo tal raciocínio, que, para o poeta, o mundo é um lugar cheio de objetos e sentimentos ainda sem rótulo, e que a sua missão é dar vida e nome às coisas e ao sentir humano.

Qualquer que seja a manifestação da poesia hoje, percebe-se que perde força um cânone cerceador, e que a convivência com a diversidade se apresenta, talvez pela primeira vez na história da poesia, como uma característica forte. Atualmente, a poesia é feita por poetas de diversas idades e sob nenhum grande discurso que se autoproclame como eleito e, assim, renegue todos os demais.

É certo que há algumas tendências a insistir como representantes de um lirismo contemporâneo. Algumas constantes parecem ter invadido de forma mais contundente as propostas da produção do fim do século passado e do início deste: o prosaico passa, desde a modernidade, a visitar com constância a poética dos autores; a mescla de popular e erudito se afirma; a perda de majestade das formas fixas como o soneto; a diminuição da freqüência do uso das rimas; a tentativa de fixar o inconstante, o fluxo da vida, a fugacidade dos momentos; a eleição de temas sociais — sem que com isso se queira afirmar a preponderância do discurso político como houve na década de 60; a migração de poetas para a música popular e o movimento inverso, a edição de livros de letristas da música popular; o revigoramento de um tipo de poesia jocosa, oswaldiana, que retorna com outra vertente e não mais como expressão do social (a rejeição das editoras e o fabrico artesanal dos livros da geração mimeógrafo); a tendência a um encurtamento do verso e a quase negação (ainda feita pelos poetas aparecidos nos anos 50 e 60) dos poemas longos ou poemas-rios; a procura do bizarro, a inclusão do místico e do esotérico, o reaparecimento de vocação para o enaltecimento do simbólico.

Deixei propositalmente para último o simbólico porque ele representa uma constante da poesia. Sem o símbolo, a poesia corre o risco sempre constante de abeirar-se da prosa. Metáfora e símbolo são componentes essenciais do proceder poético, mesmo que os poetas mais despojados insistam que a poesia pode ser feita sem uma elaboração mais requintada. Toda vez que leio algo parecido a uma poética que cheira a despojamento, percebo que o poeta em questão é limitado e justifica sua pouca erudição com um certo ar naïf, que casa bem com manifestações literárias populares como a poesia de cordel (que, por sinal, está carregada de metáfora e símbolo), mas não com uma produção mais elaborada e historicamente mais refinada, porque condensada e, infelizmente, dirigida a poucos leitores.

Queiram ou não, misturando gêneros ou fazendo a apologia de uma literatura que exploda os limites dos campos dramático, lírico e romanesco, não posso negar minha tendência a ver especificidade em cada gênero e a reafirmar seus contornos nítidos. E dizer que misturá-los não deixa que existam por sua própria conta. A mescla não dilui o específico que cada um detém e apresenta. Retornando ao símbolo e à metáfora, é bom lembrar que não se pode, na poesia, escapar dela. Cito A canção do exílio, de Gonçalves Dias, que Aurélio Buarque de Holanda lembrou não conter adjetivos num período da história literária, o romantismo, em que abundava o uso indiscriminado da metáfora, geralmente gasta. Ora, o poema de Gonçalves Dias é altamente representativo de que não se pode fugir da metáfora. A metáfora é uma construção mental onde dois termos se equivalem. Oculta-se um, apresenta-se o outro como representante dos dois.

Como dizíamos no início, a construção do homem primitivo ao nomear a realidade é um procedimento metafórico. Ao chamar o avião de “pássaro de ferro”, o indígena está construindo poética e primitivamente o seu mundo sob a órbita do seu conhecimento da realidade, ao mesmo tempo em que nomeia e recria para si o mundo que vê. A canção do exílio não tem adjetivos, mas foi feita sob a influência do império da qualificação da realidade. Quando o autor diz “que minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá”, elevou-a à categoria de utopia e de lembrança de um passado idílico. Não se precisa de adjetivo para adjetivar, como também não se precisa de símbolos e metáforas expressas para gerar símbolo e metáfora.

Entre a concepção social da lírica proposta por Adorno (que ao final de seu artigo sobre lírica e sociedade termina cometendo uma crítica textual e tradicional) e a visão a-histórica da lírica frente à épica de Staiger (o que Staiger propriamente coloca é que, entre as duas, a épica é cortada pela vertente da história, enquanto que a lírica, subjetiva, introspectiva, é menos sujeita às injunções da história), não se há de negar que o pesadelo da história (James Joyce) está presente na poesia, menos na lírica e mais no épico. Cortázar havia escrito que a grande literatura era feita de arquétipos. Eu diria que a lírica ainda trabalha, mesmo com a injunção do contexto, com temas mais ou menos eternos. A presença dos mitos e arquétipos e dos grandes temas ainda perpassam a lírica, seja em forma despojada, seja trabalhando com formas fixas. É curioso observar que um poema de Anacreonte sobre a fluidez da vida, a velhice e o correr lépido dos dias ainda permaneça tão forte e atual que um leitor desavisado pode considerá-lo contemporâneo nosso. O mesmo não ocorre, talvez pela forte presença do histórico, no poema épico ou mesmo em outras formas literárias como o conto, o romance e o texto dramático.

Na verdade, a poesia me parece ser transistórica, sendo marcada, em cada momento, pelas projeções sociais que ela exprime, mas que são sobrepujadas por temáticas duradouras como o amor, a inveja, a busca do infinito, a superação da morte etc. Menos permeável, contudo, à história do que os outros gêneros, a poesia lírica pode se manter fiel a si mesma e, quando vista num mundo moderno, cibernético, da virtualidade, não se necessita de outros veículos para expressar o poético. Tudo o que foi feito (pelo menos até agora) no sentido de incorporar novas tecnologias para apresentar o poético não passou do que foi dito: as novas tecnologias apenas serviram como suporte, geralmente para a produção de poesia ruim. Porque, ao contrário da máxima que diz que os meios são as mensagens, o veículo primordial da poesia é a palavra. A palavra única, descarnada, nua. Ela é o veículo máximo da poesia.

E se é verdade que ela é fruto de uma religiosidade primitiva, prima-irmã das manifestações mais arcaicas do pensamento mítico-religioso, então a poesia como tal só desaparecerá quando tal sentimento for extirpado do coração e da mente do homem. O que não quer dizer que a poesia seja ingênua ou instintiva. Afinal, é uma forma de arte elaborada, que requer conhecimento e muita leitura a fim de que o poeta se conecte a uma tradição (Eliot, não nego) e possa produzir de maneira original, recriando seus predecessores (a angústia da influência de que fala Harold Bloom) e tendo a segurança de pertencer a uma linhagem, a um discurso a que ele se filia por afinidade estética e parentesco filosófico.

Nesse sentido, excetuando a poesia popular, a lírica só se enriquece com a diversidade, mas uma diversidade que tem continuidade, descentrando por certo o antigo e o ancestral, mas veiculando-se a um grupo universal que, muitas vezes, o poeta desconhece, mas intui. Essa intuição, porém, poderá ser melhor trabalhada caso o poeta tenha consciência das linhas estéticas da poesia e da maneira que ele pode a uma delas incorporar-se, sem perder sua contemporaneidade ou o frescor de sua proposta estética.

A própria diversidade da práxis corresponde à diversidade do conteúdo. A poesia pode ser metafísica, simples, complexa, de verso livre ou de formas fixas, de temática grandiosa ou circunstancial. A poesia também pode ser apenas expressão de sentimentos ou de estados de alma, pode apresentar uma leitura mais elaborada da realidade. Os poemas metafísicos não são o forte da poesia brasileira. Poetas de pensamento são raros: Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, a metafísica angustiada e quase mística de Cruz e Souza. Há outros poetas e, mais ainda, há outros poemas de determinados poetas que, aqui e ali, fizeram uma poesia mais cerebral, ou que exprimiram uma idéia não tirada apenas da sensação de estar no mundo.

O certo, contudo, é que nem o poema-rio, nem o circunstancial, nem o instantâneo que se acerca do haicai, nenhum tem primazia sobre outra expressão poética. A poesia tem seu caráter histórico e os cânones mudam. Mas a essência do poético permanece, a exigência de qualidade e da força expressiva de uma conjugação de espírito e de apresentação formal, jogo de palavras, maneira de apresentar verbalmente o poema, a expressão original de forma e conteúdo, estas características permanentes do fazer poético apontam para um substrato de essencialidade nas transformações formais que se operam através do tempo.

Não só os cânones mudam como também, através do tempo, os poetas passam a ter outra leitura. São duas leituras, minimamente, sobre a poesia de determinado período: a leitura dos contemporâneos e a leitura, agora sob a égide de novo cânone, dos pósteros. Estas duas contemporaneidades, porém, não devem estar livres de uma terceira leitura. É muito difícil, embora todos condenem o cânone, estar livre do seu zeitgest (espírito do tempo). De qualquer forma, o leitor deve procurar o que subjaz de permanente, de essencial, de grande poesia que existe na produção sobre a qual se debruça. Não quero entrar no campo da crítica, prefiro permanecer no espaço amplo da criação. Mas não há como escapar de comentar a mudança de comportamento de poetas como Sousândrade, que só pôde ser compreendido em sua verdadeira envergadura na metade do século 20.

Há aqueles que argumentam que a crítica está tão escaldada com esse tipo de “erro” histórico que dificilmente incidiria novamente numa avaliação distorcida dos seus contemporâneos. O que representa uma ingenuidade, porque não sabemos como os leitores futuros se comportarão e, mais ainda, qual será o cânone futuro, qual será o olhar do futuro para o presente que vivemos. A proximidade com os contemporâneos muitas vezes empana o discernimento crítico, porque os poetas contemporâneos emitem outros significados além de sua obra. A vida do poeta, seu carisma, sua permanência na mídia, sua capacidade de gerar notícia, tudo isso pode confundir a leitura crítica ou fazer com que outro poeta, mais acanhado, menos midiático, de vida reservada ou distante dos grandes centros, tenha o reconhecimento da dimensão exata de sua obra postergada.

Os formalistas russos foram os primeiros a sistematicamente abordar a produção literária como desvio. A sua teoria do estranhamento, advindo do deslocamento da linguagem literária que se diferencia da linguagem coloquial, atravessou o tempo e o continente e foi também estabelecida pelo new criticism norte-americano. Tanto a questão ainda incomoda que Terry Eagleton — em sua Introdução à teoria literária —, Wolfgang Iser e Jauss também se debruçaram sobre o problema. Sobre o fato de que a linguagem literária se afasta do coloquial parece que todos estão de acordo. Também concordam quando se afirma que a linguagem dita coloquial ingressa no poema, deixando de fazer parte de um código que se restringe à comunicação e ao intercâmbio social, para fazer parte do código poético. A teoria do desvio e do estranhamento nos seduz porque não é apenas um apetrecho lingüístico, mas uma produção de sentido, de formação de pensamento poético, distinto do pensamento da linguagem coloquial e distinto mesmo da filosofia ou do pensar do ensaio. A produção de “pensamento” na poesia não requer verdade nem está aí para ser refutada e discutida, já que é um “conhecimento” da realidade muito específico, que diz apenas à maneira particular e “deslocada” de o poeta enxergar o mundo.

Logo, o estranhamento não é apenas verbal, mas conceitual. O desvio se opera não na dificuldade ou no grau de distorção da linguagem, mas ao apresentar um fato lingüístico novo, original, uma maneira inteligente e pertinente de “sentir-pensar” o mundo. O desvio não é também um desvio mental, que poderia ser interpretado como uma forma esquizofrênica de representar a realidade, mas é uma maneira de mostrar a realidade de um ponto de vista distinto daquele que a linguagem comum apresenta cotidianamente. A poesia é um deslocamento, a partir do ponto de vista do poeta que observa o mundo, e também um centramento, já que o poeta reinterpreta a realidade e a apresenta (e nomeia) como um mundo possível e poético.

A idéia de que o poeta lida com elementos primordiais e que, por ser anacrônico, sempre está à beira de desaparecer vem acompanhando a poesia da modernidade, já que a sociedade parece não encontrar lugar para alguém que, através de sua subjetividade, entocado em seu laboratório poético, produz algo que é de difícil intercurso comercial. O poeta não é a antena da raça como queria Pound, mas um artista sensível a seu tempo e à história, alguém que mantém sobre tudo um olhar distinto e menos reificado a fim de contar aos seus contemporâneos e aos pósteros a inquietação ontológica que incomoda não somente a si, mas a sociedade como um todo.

Embora seja pouco consumida em forma de livro, a sociedade produz e consome poesia em outras formas menos nobres e de maneira vulgar através da publicidade, dos ditos populares, da literatura de cordel, da televisão, da música popular e mesmo da linguagem cotidiana que vez por outra cria seu “desvio” e produz poeticidade. Vista dessa forma, a poesia deve estar entranhada no comportamento humano e sua produção livresca é apenas uma sofisticação de um modelo primitivo de comportamento mental. Essa decantação da poesia em livro não quer dizer elitismo, mas quer mostrar que o leitor comum cada vez mais deixa de dominar os códigos da arte contemporânea, a ponto de até hoje ter resistência, por exemplo, à pintura já centenária dos vanguardistas do princípio do século 20.

Ronaldo Costa Fernandes
Rascunho