Tentativa frustrada

A indefinição entre prosa e poesia é a fraqueza fundamental de "O ano de 1993", de José Saramago
Ilustração: Ramon Muniz
01/11/2007

Em 1974, José Saramago ainda estava longe de alcançar a celebridade literária, conquistada na década de 80 e coroada com o Nobel de 1998. Jornalista, Saramago já havia publicado um romance de juventude e alguns livros de poesia e de crônica. No início desse mesmo ano, havia certa frustração política no ar: a Revolução, aguardada há muito por diversos setores da sociedade, fora novamente abortada. Foi quando se deu a primeira redação de O ano de 1993. Logo depois viria, finalmente, a Revolução dos Cravos, e o livro seria lançado no ano seguinte, 1975.

Trata-se de um livro difícil de definir. Fosse um romance ou uma novela, O ano de 1993 seria uma ficção científica, mais precisamente do gênero que descreve distopias (ou seja, antiutopias) futuristas. Há algo do George Orwell de 1984, não apenas no título, como também no clima de penúria e dominação imposto a uma comunidade. Quase não se pode falar de enredo. As cenas se sucedem, descrevendo uma cidade dominada por um exército invasor, que subjuga violentamente seus moradores, e a comunidade tribal dos foragidos da cidade (ou seus descendentes), que se organizam lentamente a fim de reconquistá-la. Seguem-se cenas insólitas, que envolvem animais mecânicos, homens que vivem sob o chão, e feiticeiros com o poder de encolher a todos.

Formalmente, O ano de 1993 é bastante incomum. Trata-se de um tipo de prosa poética, de frase curtas e sem pontos finais, e que a crítica tem associado ao formato do versículo bíblico. Não apenas pelo tamanho das frases, mas pelo tom épico ou profético de muitas delas. Eis uma breve amostra, retirada do capítulo 6:

Nenhum lugar é suficientemente belo na terra para que doutro lugar nos desloquemos a ele

Mas uma razão haverá para que a todas as horas do dia venham andando grupos de pessoas na direção da rua das estátuas

Estão dispensados os roteiros e os mapas uma vez que todos os caminhos vêm dar a esta rua e não a Roma onde ainda hoje não faltam estatuas mas nenhuma que a estas se compare

Não é difícil chegar basta olhar o chão e seguir sempre pelos caminhos mais pisados também reconhecíveis pelas duas alas de excrementos que os ladeiam

De modo que o livro pode ser compreendido, pensando-se na evolução da obra de Saramago, como uma ponte entre sua primeira produção poética e a prosa que adotaria definitivamente, e que atravessaria um momento de grande transformação a partir de Manual de pintura e caligrafia (1977) e, principalmente, Levantado do chão (1980).

O tema fantástico ou futurista não era novidade para José Saramago, como comprovam algumas de suas crônicas e poemas escritos na década de 60, e retornaria mais tarde no volume de contos Objecto quase. O gosto pelas fábulas e alegorias também persistiria, e podemos encontrá-las em diversos de seus romances, diluídas em momentos específicos, ou desenvolvidas plenamente, como O ensaio sobre a cegueira. No caso de O ano de 1993, porém, há um diferencial: certos procedimentos estruturais lembram recursos surrealistas, como bem descreveu o crítico literário Horácio Costa, naquele que é, muito provavelmente, o estudo mais completo sobre a primeira fase da obra de Saramago. Trata-se do livro José Saramago — o período formativo, publicado pela Editora Caminho em 1997 e, salvo engano, ainda inédito no Brasil. Nele, Costa reconhece em O ano de 1993 “a proliferação imagética, somada à mecânica da analogia e da justaposição na produção do texto, todos fatores atinentes à estética surrealista”, e que se desenvolveriam posteriormente em um trabalho com o maravilhoso que será fundamental na obra, digamos, madura do escritor.

O leitor costumaz de Saramago vai reconhecer, ainda que discretos, outros temas e procedimentos que se tornariam importantes em seus romances. O trecho citado acima, por exemplo, traz uma alusão ao famoso ditado segundo o qual “todos os caminhos vão dar em Roma”. Essa reutilização de formas proverbiais pode ser vista em outros momentos de O ano de 1993, como no capítulo em que os habitantes da cidade dominada são marcados com números, a exemplo de prisioneiros de campos de concentração (analogia assumida pelo narrador). Tal numeração, porém, ao invés de nivelar a população na mesma miséria, promove uma rígida hierarquia social: o número 1 é o mais poderoso, seguido pelos outros, até o último, de número 57229, obrigado a comer com os cães e a se masturbar, “porque nenhuma mulher queria dormir com ele”. Acontece que, por um capricho dos dominadores, os números serão invertidos, de modo que a hierarquia de poder também se inverterá totalmente. Os últimos serão os primeiros, como na parábola bíblica. Porém, sem o mesmo efeito redentor: o processo não vai promover justiça, mas um extermínio, “pois as humilhações serão retribuídas cem por um até a morte”.

Outros procedimentos se destacam, como o distanciamento do narrador, que comenta algumas de suas escolhas lexicais e se afasta temporalmente da narrativa, prevendo, por exemplo, como será o distante ano de 2093. E um apreço muito forte pelas artes plásticas, o que se nota logo nos primeiros versos do livro:

As pessoas estão sentadas numa paisagem de Dalí com as sombras muito recortadas por causa de um sol que diremos parado.

Quando o sol se move como acontece fora das pinturas a nitidez e a luz sabe muito menos o seu lugar

Não importa que Dali tivesse sido tão mau pintor se pintou a imagem necessária para os dias de 1993

A sucessão de imagens, antes de proporcionar a ilusão de movimento, promove a sensação e imobilidade, quase total. Não à toa, nas ficções distópicas um dos elementos que acompanham, inexoravelmente, a vigilância totalitária é a ausência de temporalidade. O tempo não passa, porque tudo se repete, e o indivíduo não atua sobre sua história.

Mas tais procedimentos não garantem a qualidade de O ano de 1993, pois são apenas uma sombra do que se tornariam nas obras posteriores de Saramago. Primeiramente, falta ironia a esse pequeno, mas ambicioso livro, a ironia de um narrador que se tornaria um dos grandes trunfos de seus romances. O mesmo narrador que rebaixa a História, seus vultos e as conquistas de seu país às idiossincrasias de personagens falíveis e acasos inevitáveis; que observa com certo requinte de crueldade a inapetência de seus heróis para o amor, e sua ignorância frente a eventos futuros que só ele próprio, o narrador (e, eventualmente, o leitor) conhece; ou que, embora leve bastante a sério o que faz, não demonstra fazê-lo, e desdenha de seus próprios propósitos, subvertendo o mesmo tom épico ou profético que adota. Em O ano de 1993, esse narrador ainda só existe em projeto.

Em segundo lugar, e o mais importante: Saramago nunca foi um grande poeta. Os versos de O ano de 1993 não funcionam além da leitura alegórica imediata. Ainda que dotados de um verniz universalista, de modo que, supostamente, não se limitariam à situação política de Portugal em 1974, não serão lidos além de um sentido distópico mais evidente. Mas o leitor seguramente já leu outros livros de ficção científica mais interessantes e, na poesia moderna, versos que representassem com maior requinte formal a urgência da ação do homem em um contexto que não controla, sob a ação de uma força que o subjuga. Ou seja, na indefinição entre prosa e poesia, está a fraqueza fundamental do livro, pois ele não se resolve em nenhuma das duas formas.

Verdade seja dita, e ao contrário do que certo senso comum mais preguiçoso tem se apressado a divulgar, José Saramago é um grande escritor, autor de alguns grandes romances de língua portuguesa das últimas décadas, como O ano da morte de Ricardo Reis. Mas O ano de 1993 é um projeto mal resolvido, fruto de um autor que ainda não havia encontrado sua verdadeira “voz” literária, para usar um termo de que ele próprio se utilizou. É um livro interessante apenas para os seus leitores mais aficcionados, que pretendam descobrir como determinados temas e procedimentos foram se desenvolvendo em sua obra. Ou ainda para quem tenha a curiosidade de examinar uma tentativa de experimentação formal que, infelizmente, não deu certo.ntra a águia mecânica e vencê-la

O ano de 1993
José Saramago
Companhia das Letras
125 págs.
José Saramago
Nasceu em 1922, na província do Ribatejo, em Portugal. Devido a dificuldades econômicas, foi obrigado a interromper os estudos secundários, tendo a partir de então exercido diversas atividades profissionais: serralheiro mecânico, desenhista, funcionário público, editor, jornalista, entre outras. Romancista, teatrólogo e poeta, em 1998 tornou-se o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Nobel de Literatura. É autor de O ano da morte de Ricardo Reis, A caverna, Ensaio sobre a cegueira, O homem duplicado, As intermitências da morte, entre outros.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

Rascunho