As cem melhores crônicas brasileiras, selecionadas e organizadas por Joaquim Ferreira dos Santos, reúnem em um só livro preciosidades de um gênero que por muito tempo foi considerado menor, do ponto de vista literário. Como todo gênero textual, a crônica tem suas linhas de permanência no tempo e no espaço de produção e, por outro lado, sua história, com as transformações que esse tempo opera nas suas estruturas e finalidades.
A coletânea de textos, originalmente em sua maioria, apresentados ao grande público pelo suporte jornalístico, reeditados em livro ganha outras perspectivas. Contudo mantém intacta a linha geral que define o gênero: abordagem do cotidiano urbano na leitura rápida de um texto de prazer. Este guarda pela sua condição de entretenimento, a superficialidade e espontaneidade de um objeto descartável, paradoxalmente, condicionado às leis do mercado e as exigências de um público consumidor ávido por surpresas e novidades.
A organização das crônicas, segundo Joaquim Ferreira, obedeceu a uma ordem cronológica, em blocos que, além de facilitadores do manuseio do livro, permitem que o leitor saboreie “também, com mais nitidez, o que cada geração vai fazendo para modificar o jeito de escrever…”. Ou seja, como cada autor se apropria e recria a linguagem de seu tempo. Essa perspectiva histórica de organização dos textos abre, por sua vez, um leque para diversas possibilidades de leitura. Entre elas, destaca-se a percepção mais apurada da relação contexto histórico e desenvolvimento tecnológico e científico em suas influências e manifestações nas escolhas estéticas predominantes de cada momento de nossa história cultural. Além de tudo isso, não deixa de ser também um tributo às origens etimológicas da palavra chronica (narração de histórias que obedecem à ordem que acontecem no tempo — Chronos).
Como o próprio título do livro indica, são textos produzidos no Brasil, dizem respeito à crônica moderna, publicada a partir de 1850, comprometida com o crescimento das grandes cidades, avanços tecnológicos e outras complexidades daí procedentes. O primeiro bloco: O cronista entra em cena e flana pela cidade, com produções de 1850 a 1920, reúne nomes como Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, José de Alencar e Olavo Bilac. No segundo bloco: Com a bênção dos modernistas das bermudas, de 1920 a 1950, figuram, entre outros, Oswald e Mário de Andrade. Os seis blocos seguintes se estruturam pelas décadas subseqüentes (60, 70, 80 e 90) até o último bloco: Os anos 2000 — próxima estação, internet. As 100 crônicas foram escritas por 67 autores brasileiros de diferentes estilos e abordagens temáticas.
O eixo de leitura sugerido pelo organizador é, sem dúvida, muito rico no que tange a análise crítica dos textos e dos contextos históricos de sua produção, mas não é exclusivo. O fato de esses textos estarem em um livro permite que o leitor decida sobre novas combinações, seqüências e agrupamentos que mais lhe agradar, o que, conseqüentemente, multiplica os pontos de vista e amplia o leque de significações. A grande contribuição da estruturação em livro é a possibilidade da releitura e recriação da narratividade entre os fragmentos e os textos, que passam a estabelecer uma relação dialógica não só com o leitor, mas também entre si.
Renato Cordeiro Gomes, em seu artigo A crônica moderna e o registro de representações sociais do Rio de Janeiro, enfatiza que “a nova estruturação nessa outra materialidade articula outra dimensão temporal e estabelece um novo regime discursivo, não mais considerando apenas cada crônica, esse gênero volátil em sua autonomia (descartável como o jornal), mas materializada nas seqüências narrativas que com os fragmentos compõem um todo”. O que este todo nos oferece é a possibilidade de uma leitura contemporânea tanto do ponto de vista histórico quanto temático e estilístico. Não podemos esquecer que se trata de um gênero que, mantendo suas características originais de registro factual do cotidiano, adquiriu novos atributos como a fixação tanto de um tempo histórico coletivo quanto de uma subjetividade mais particular, a autoral.
Na forma de diálogo
Machado de Assis, em O nascimento da crônica, na incerteza da sua origem, arrisca dizer que “há toda possibilidade de crer que foi coletânea das primeiras vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentavam-se à porta, para debicar os sucessos do dia”. Por não poder definir origem, remota certamente, mas imprecisa, desde o encontro das primeiras vizinhas num balanço do dia num final de tarde ou o registro das impressões do navegante sobre um novo mundo ao seu rei, a crônica se inscreve enquanto documento de um tempo na forma de diálogo. Essa interlocução ganha fôlego na medida em que se ampliam seus canais de divulgação, principalmente, com a grande imprensa. Entre história, jornalismo, entretenimento e literatura, ela se situa e se movimenta, deixando para trás velhas dicotomias como temas canônicos e assuntos mundanos, verdade histórica e imaginação literária, “alta” literatura e cultura de massas. Um dado de inegável importância contribui para diminuir os abismos criados entre essas distâncias teóricas: a prática da escrita cotidiana através da elaboração da linguagem por grandes mestres e amantes da palavra e a formação de um público leitor, ligado a esses escritores-jornalistas pelas mesmas dores, esperanças e paixões. O caráter híbrido se revela como facilitador desse diálogo.
No prefácio desta coletânea, Joaquim Ferreira dos Santos, citando Antonio Candido, observa que era o início de uma raça de “cães vadios, livres farejadores do cotidiano, batizados com outro nome vale-tudo: crônica”. Por outro lado, um bando crescente de gente ávida por notícias, poesia e esperança, num mundo em movimento vertiginoso, carecia, para sobreviver, dos serviços inestimáveis dessa raça fiel e inquieta. No popular: “junta-se a fome com a vontade de comer”. Dessa forma, eruditos como Alencar e Machado, sem se limitarem ao círculo fechados da sociedade intelectualizada, passam a se misturar e serem conhecidos na leitura rápida de quem toca para o trabalho num bonde ou numa última caminhada pelas ruas esburacadas da cidade. Lima Barreto, em Queixa de defunto, mistura humor à sua crítica social, por exemplo. Assim, o cronista encaminha ao prefeito a carta de um defunto, vitimado pelos solavancos sofridos no caminho até o cemitério, proibido que fora de entrar no céu, por estar todo machucado, como se fosse um baderneiro qualquer. João do Rio fotografa a cidade e documenta com sua câmera de repórter os diversos tipos sociais que vai encontrando, transitando deste uma amizade com O mendigo original, até às altas rodas da frivolidade urbana da moda e dos salões. Aqui também se pode acompanhar como, por exemplo, Rubem Braga revela-se e é reconhecido como expoente da literatura brasileira a partir de sua opção predominante e quase exclusiva pelo gênero.
Várias crônicas aqui reunidas poderiam figurar em outras coletâneas, como de contos, de poesia (em prosa) ou até de ficção científica. Ver, por exemplo, O dia de um homem em 1920 que, apesar de um caráter predominantemente ficcional, inicia-se com um trecho em formato de notícia: “…Diante desses sucessivos inventos e da nevrose de pressa hodierna, é fácil imaginar o que será o dia de um homem superior dentro de dez anos, com este vertiginoso progresso que tudo arrasta…” Trata-se de um homem que tendo todas as facilidades da modernidade envelhece e morre precocemente sem ter tempo para sonhar. O tom de crônica reside na introdução em forma jornalística e a fixação de tempo, um dia na vida do homem superior, ou moderno. A modernidade, tendo a cidade como importante protagonista, perpassa todo livro em discussão, problematiza tanto as questões sociais de contexto histórico quanto à condição humana de escritor e leitor viventes nesse universo concreto ou imaginado.
A abordagem panorâmica de escritores traz boas surpresas. O leitor provavelmente irá se deparar com nomes resgatados da memória, ou desconhecidos, e mesmo os mais familiares poderão revelar novas facetas. É também a chance de se apurar o gosto de ler e as preferências temáticas. Estas, mesmo que menos relevantes, num conjunto como esse, ganham um delicioso tom, pelo menos, de curiosidade. Quem, por mais indiferente que seja pela paixão nacional futebolística, não se diverte e não se envolve com Complexo de vira-latas, de Nelson Rodrigues, ou com O time de Neném Prancha, de João Saldanha?
Do banal ao sublime
O diferencial da notícia nua e crua para a crônica enquanto gênero revela-se no aspecto lingüístico, propriamente dito. Ou seja, na maneira com que a palavra se articula para revelar do banal ao sublime, do fotográfico ao desfocado lírico ou filosófico. Por vezes, a voz predominante narrativa a discorrer fatos sobre fatos ganha ares de voz lírica de um sujeito carregado de letras e emoções inesperadas para um leitor sem tempo para delongas, com pressa de viver. “Repouso a cabeça no teu peito, ao som do mar descem as nuvens do céu para me cobrir. Nem mais um sofrimento! Um sono fecha-me as pálpebras, como se borboletas, que dormisse.” Este fragmento de Página das páginas revela o poeta Marques Rabelo, por exemplo. Raquel de Queiroz, em prosa poética, discute a condição feminina de ser dependente de cuidar do “outro”, em Talvez o último desejo: “E assim, em vez da bela solidão e da música, a triste alma tem mesmo é que se debater nos cuidados, vigiar e amar, e acompanhar medrosa e impotente a loucura geral, o suicídio geral”. Faz, ainda, uma alusão à relação escritor-leitor, numa submissão voluntária e numa dependência tão intensas quanto às familiares: “…e adular o público, e os amigos e mentir sempre que for preciso, e jamais e dedicar a seus desejos secretos”.
A iniciativa de organização de crônicas em livros é antiga no Brasil. Mas pode-se afirmar que o mercado editorial vem intensificando essas publicações com surpreendente sucesso de público. Alguns cronistas foram resgatados do injusto esquecimento através delas, assim como outros ganharam reconhecimento e consolidaram sua popularidade iniciada no veículo jornalístico. Luiz Carlos Simon, no artigo O cotidiano encadernado: a crônica no livro faz um verdadeiro inventário dessas edições, analisando e pontuando sua importância. Em Rascunho, a crônica tem merecido atenção especial e permanente de nossos críticos. José Castello, entre outros, discute sua importância em artigo teórico específicos sobre o assunto.
As cem melhores crônicas brasileiras é um conjunto composto e estruturado a partir de uma seleção criteriosa e delicada cuja origem vem de outras seleções organizadas em sua maioria a partir de outros livros e não propriamente de jornais. Ou seja, deve-se observar que ao final do livro, o espaço reservado às “referências bibliográficas”, longe de ser mero registro, é um importante guia de leitura, pois ao localizar a origem imediata de cada texto, situa cada crônica no tempo de cada autor, no seu universo temático preferencial, dando bases de maior compreensão de sua trajetória, ampliando, entre outras coisas, o seu canal de interlocução com o público-leitor. Nas referências que dizem respeito ao último bloco, podemos encontrar referências on-line, que indicam a internet como outro suporte de origem de algumas crônicas. Ou seja, mais uma questão que se coloca para ser pensada sobre a sobrevivência de um gênero e sua capacidade de adaptação. Como lidar com o transitório (e virtual) que lhe é constitutivo e sobreviver em uma rede de inter-relações entre o passado e o presente em curso, entre o tempo histórico e corrosivo e o desejo de um tempo mítico e perene da condição humana em que todos estamos mergulhados? Fato é que todas essas iniciativas e produções, retomando Renato Cordeiro, funcionam como “a tentativa de superar o efêmero e de buscar outra duração, que salve do tempo a escritura, aquela mesma que se submete à tirania dos dias”.