Tenho saudade das bandas de rock portuguesas

Vivi um tempo em Portugal, e tenho saudade das formalidades — de algumas, melhor dizendo — e das bandas de rock portuguesas (existem, sim).
01/02/2005

Vivi um tempo em Portugal, e tenho saudade das formalidades — de algumas, melhor dizendo — e das bandas de rock portuguesas (existem, sim).

O país da floresta encantada de Sintra e do “da parte de” (nada, na terra de Camões — como dizem os acadêmicos nos discursos de laudas e mais laudas das academias de letras ensonadas — funciona sem ser “da parte de”)… o cartão da parte do raio de quem for circula, apresenta, pede, esclarece, confunde, anda de mão em mão.

O cartão, o velho cartão, faz parte da alma lusa, é o tamanco da lusa mente, apóia todas as ações, e, vindo da “parte” de quem venha, pode anulá-las também. O Cartão é (ou era) o Cartão, em Portugal, porém a nação não é a mesma sem ele, e muita gente já veio me dizer que, na terra do saudoso Raul Solnado, até o cartão não é mais aquele, num Portugal mudado onde cartão & merda é a mesma coisa e aquelas bandas de rock que eu vi e ouvi não existem mais.

Não sei se chegou até o Brasil a fama, por exemplo, de Os Cus Virados — que os jornais lusos mais pudicos grafavam Os C…s Virados. Os rapazes ficaram irados, mandavam cortar os calções na área da bunda e, muitas vezes, cantavam de “face” posterior para o público cantando, isto é, urrando: “os cus!, os cus!, os cus!”

Um amigo neófito que visitava Portugal naquela época, e que eu levei a Cascais ver os Cus pensou que o nome da banda fosse Cuscuz, o que seria muito africano (e inocente) para uma banda da pesada (que era mais do que uma banda “gira”, em termos portugueses de antanho).

Os nomes das bandas de rock portuguesas exprimem, de certo modo, a nação apertada contra o mar: havia a Nazaré dos Putos, que não deve ter influenciado no nome da personagem de Senhora do Destino que, no momento, faz esta nação de cá vibrar de emoções, etc. Nazaré é uma aldeiazinha de pescadores, não muito distante de Lisboa, que parece um cartão postal de falsa aldeiazinha de pescadores onde todo mundo começa a trançar redes e anunciar peixes frescos logo que o primeiro ônibus de turismo chega com aquelas pessoas de óculos e máquinas (hoje digitais) saídas de hotéis no clima de uma das poucas boas descrições já feitas pelo americano Don DeLillo:

“Turismo é a marcha da estupidez. Espera-se que sejamos estúpidos. Todo o mecanismo do país anfitrião é engrenado para viajantes agindo estupidamente. Confusos, circulamos pelos lugares apertando os olhos sobre mapas desdobrados. Não sabemos como falar com as pessoas, como chegar a qualquer parte, qual é o valor do dinheiro, que horas são, onde e o que comer. Ser estúpido é o padrão, o nível e a norma. Podemos viver nesse nível semanas e meses, sem censuras ou conseqüências tenebrosas. Juntamente com milhares de outros, a nós são concedidas imunidades e amplas liberdades. Somos um exército de imbecis, vestidos com poliésteres vistosos, empoleirados em camelos, tirando retratos uns dos outros, abatidos, disentéricos, sedentos. Não há nada em que pensar a não ser no próximo evento amorfo, etc.”

Mas o assunto é o extraordinário batismo das bandas de rock portuguesas: há coisa mais simples (e eficiente) do Roque e o Rock? Claro que o líder da banda se chamava Roque — Roque Carvalhal — e vinha da boa Armando os Rojões, onde o roqueiro Armando Pedro ocupava todo o espaço para soltar os tais dos “rojões”.

O verbo soltar me lembra um dos nomes mais francos daquelas bandas: Não Há Cu Que Não Dê Traques, autora do sucesso Peste & Sida, segundo garante José Teles, jornalista pernambucano também fascinado pelos nomes das bandas de rock portuguesas. A lista de Teles é maior e melhor do que a minha. Ela inclui surpresas como a banda Agricultor Debaixo do Trator, uma banda de Setúbal especialista em letras maoístas, e que fez muito sucesso logo depois do 25 de abril.

A banda 25 Barra 4 era óbvia demais. Nunca gostei dela — nem o Teles, fã de outra banda de filhos de camponeses revoltados: A Máquina do Pequeno-Almoço Dá Pancada. Não tive a sorte de vê-la, acordando tão tarde quanto eu acordava, nos tempos em que… Bom, deixa pra lá.

Teles garante ter existido uma certa Alucina Eugênio, além da aparentemente óbvia (também) LSD. Os meninos da LSD, entretanto, diziam que a L… (os jornais conservadores — mais uma vez — faziam suas elipses censórias mais do que desnecessárias) nada tinha a ver com o mundo das drogas, uma vez que, para eles, eram iniciais de Louvado Seja Deus.

Teles tem notícia de outras ousadias batismais das bandas alfacinhas. Enquanto eu só descobri a misteriosa, a minimalista ObraNisso — banda de “nisseis” do Algarve — ele fala numa tal de Sebo Anal e noutra, Poker Alho (que mais tarde mais ou menos se amansou em Punk-Kecas, veio ainda a se chamar Cárie Mental e, afinal, desapareceu como Os Nomes Metem Nojo). Sua lista hard-peninsular ainda conta com o sombrio caso da banda Criança Carbonizada, uma espécie de versão lusa da Mamonas Assassinas (o melhor nome de banda brasileira), e que também morreu, toda, num horrível desastre aéreo no fundo de Trás-os-Montes, acidente que igualmente comoveu os bons portugueses ainda hoje a se dirigirem, em romaria, ao local do infausto acontecimento.

Criança Carbonizada teria sido um nome premonitório? O jornal A Bola confiou uma pesquisa sobre isso, aos cuidados do jornalista pernambucano Duda Guennes (radicado em Lisboa).

Bandas, bandas. Bandas lusas até a medula. Isso não é o nome de uma delas; é uma pausa para chegar na preferida de José Teles: Friedrich Que Se Lixe, banda meio anti-neo-nazista.

Outro grupo na mesma linha era a Deus-Pai, Pá, Não Morreu — que Teles diz ter desaparecido muito cedo, banda que tinha Portugal inteiro para percorrer, em turnê de três horas e meia. Porque : o país é pequeno (a alma, não).

Por fim, não se pode esquecer a banda de port-pop Não Gostamos do Pai Natal, nem a Zé Manel Suicida (esta mais metaleira, desde o primeiro momento) nem ainda a Virgens Debaixo da Cama, que Teles garante ser uma influência da musiquinha brasuca, lá por aquelas bandas cheias de bandas (ao contrário do que se pensa).

Quanto a mim, eu ainda prefiro aquela banda que foi lançada em show memorável no restaurante Martinho das Arcadas — ali onde a Praça do Commércio abre para o “vôo atlântico das gaivotas”, segundo uma letra da única banda de rock romântico de Portugal, a Sintra o Vento. Refiro-me, é claro, à banda de rock portuguesa de maior sucesso, até hoje: a FernandoP’ssoa Limpava-se Aqui.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho