Tempos sombrios

Em “À espera dos bárbaros”, J. M. Coetzee parte de elementos aparentemente regionais para tratar das desgraças que nos rodeiam
J. M. Coetzee: olhar regional espraia-se por todos os cantos do mundo.
01/04/2006

John Maxwell Coetzee e sua obra ficaram conhecidos no Brasil em 1999, ano em que o escritor sul-africano, que hoje vive na Austrália, ganhou o seu segundo Booker Prize pelo romance Desonra. De lá para cá, a obra desse escritor, sem dúvida um dos maiores em atividade, só ganhou adeptos e admiradores no país, principalmente a partir de 2003, quando o Nobel consagrou de vez a sua literatura. Com isso, seus romances começaram a ser traduzidos, e não apenas os mais recentes. Prova disso é À espera dos bárbaros, que acaba de chegar às livrarias. Bem verdade que este romance já havia sido publicado por aqui, porém a visibilidade era mínima, posto que, hoje, não há quem o encontre nem mesmo em sebos. O que conta, contudo, é o fato de o romance de Coetzee ser uma demonstração de que o gênio do escritor prescinde e precede os prêmios que vieram ao longo de sua trajetória.

A trama do livro se passa na África do Sul, durante o período do Apartheid, no início dos anos 80. Coetzee não dá essa informação; no entanto, os leitores são levados a essa interpretação a partir dos elementos oferecidos. E nesse ponto surge o primeiro grande destaque da obra: as descrições. Se o leitor imagina algo relacionado às perspectivas de ambiente ou de espaço, acertou em partes. Há, além disso, um detalhamento no tocante ao tema, essa luta, inicialmente surda, mas que logo ganhará som e fúria, à medida que os acontecimentos tomarem corpo. De início, vemos um magistrado (sem nome) que lida com os aspectos burocráticos de um vilarejo, mas cujo principal ofício é cuidar para que as sentenças sejam julgadas da melhor maneira possível, sem necessariamente o envolvimento dos juízes no caso. Nenhuma dessas ocupações, no entanto, fazem a cabeça do magistrado — o narrador da história. Aparentemente, sua preocupação é puramente material; e não só: seu apetite sexual parece mais conservado do que nunca, e veja que ele se trata de um senhor já no outono de sua existência. As palavras do personagem aqui são preciosas:

Eu não queria me envolver nisto. Sou um magistrado da roça, um funcionário responsável a serviço do Império, servindo meus dias nesta fronteira preguiçosa, esperando para me aposentar (…) Vejo o sol nascer e se pôr, como e durmo, e estou contente. Quando morrer, espero receber três linhas em letra miúda na gazeta imperial.

Esse panorama de resignação muda a partir do momento em que ele percebe o cenário tenebroso que o cerca. Aqui, seria melhor dizer “abrir os olhos”. Porque o que de fato acontece é uma espécie de revelação de condições de maus-tratos e tortura a que os suspeitos, considerados bárbaros, eram vítimas desde o instante da prisão. Que o leitor não espere um livro sobre causas humanitárias, daqueles que merecem ser premiados pela ONU por seu engajamento socialmente responsável, para utilizar uma nomenclatura da moda. O que se lê é um romance bem articulado e, também por isso, sem maiores considerações sobre a condição humana ou sobre a Convenção de Genebra. Por esse motivo, a personagem de Coetzee não fica indignada porque assim clama o seu campo de dilema profissional, mas porque o que ele vê lhe causa estupor. E há também um outro fator, de ordem mais sentimental.

Quando descobre acerca dos maus-tratos, o magistrado também conhece uma garota, muito ferida, que passou pela sessão de tortura. E por ela, ele desenvolve um afeto que não se encerra. Um misto de atração sexual com cuidado paterno, algo que beira o doentio, muito embora não deixe de ser um cuidado especial. Enquanto isso, o magistrado, como um autômato, obedece aos impulsos de sua vontade erótica, visitando outras mulheres, numa relação que ele sabe ser moralmente errada, porém não pode fazer muita coisa para evitar. Ou melhor, ele assim não quer. Nesse ponto, tudo voltou ao normal na vida do magistrado, uma vez que se adequou à rotina de saber dos maus-tratos, de fazer o que está ao seu alcance e de se envolver de maneira lasciva, mas sem chegar às vias de fato, com uma garota que é tida como bárbara. A desgraça, no entanto, estaria por vir. Como num golpe silencioso, mas nem tão inexplicável assim, o magistrado é levado preso por ir de encontro aos interesses do Império. É aqui que ele passa a sentir, na pele, o que é esperar pelos bárbaros.

Inversão da lógica
A partir de então, privações e humilhações tornam-se tão comuns como os seus desejos sexuais; o magistrado começa a perder sua humanidade e seus sentimentos se endurecem à medida que percebe o grau de injustiça a que é submetido. Em contrapartida, ele é fraco demais para renunciar e tenta resolver seus problemas ora tentando escapar, ora tentando mostrar às pessoas a gravidade de algumas situações às quais eram submetidas. É uma dessas ocasiões, aliás, que proporciona ao leitor uma das passagens mais significativas de todo o romance. Depois de ter vestido uma roupa de mulher, o magistrado é amarrado e içado, para, então, ficar pendurado no ar, sob olhar absorto das pessoas daquela província. Tudo isso por sua posição; na verdade, oposição ao que ocorre com os chamados bárbaros.

O que J. M. Coetzee apresenta aos leitores nada mais é do que uma inversão da lógica dos papéis de dominador e de dominado; de civilização e barbárie; de princípios e fins. Em primeiro lugar, porque o personagem central, como magistrado, jamais deveria ter se esquivado das responsabilidades que lhe cabiam. Jamais poderia, nesse aspecto, ter fechado os olhos para se entreter com suas coleções e obsessões pessoais. Além disso, e aqui está o ponto mais evidente dessa inversão, o próprio Império para o qual ele trabalhava obedecia a um código próprio de leis, de meios e de fins. Interrogatório, nesse aspecto, acobertava a idéia de tortura, o que em qualquer outro lugar já seria condenado como um ato bárbaro. A qual civilização, portanto, esse Império faz parte? E será que é moralmente correto utilizar artifícios espúrios para a manutenção da paz e da ordem? Obviamente, tais questões são mais abrangentes, e nem devem ser necessariamente respondidas por uma obra de ficção, mas é justamente por isso que merecem destaque: o autor se propõe a interrogar algo que estava ao mesmo tempo subjacente e à margem do universo literário.

A partícula mais elementar desta obra de Coetzee é a respeito dos bárbaros. Tanto o magistrado quanto os leitores supõem sua presença de uma maneira forte e opressiva, talvez até como se fosse uma caricatura, a de um grupo pronto para atacar o vilarejo organizado do Império. Não é efetivamente o que acontece. A barbárie, nesse aspecto, está muito mais presente nas atividades do grupo que teoricamente deveria apenas defender e preservar. E um dos mais atingidos em todo esse processo é aquele que, também em tese, deveria julgar — o magistrado.

Nas muitas leituras que o livro proporciona, alguns podem enxergar o autor como um visionário dos processos políticos que ora regem a Ordem Internacional. E até mesmo um paralelo é possível se observarmos o que ocorre em lugares como Guantánamo, só para ficar num exemplo bastante corriqueiro e atual. Essa leitura, embora possível, deixa de lado uma crítica muito mais patente, sobretudo se se observar o contexto histórico e regional ao qual Coetzee pertence. Afinal de contas, no início da década de 1980, um Império subjugando uma província não era somente uma alegoria cabível em romance, mas, sim, algo presente na África do Sul. Nesse aspecto, mais do que visionário, o escritor consegue ser, com muito êxito, atingir o ápice literário; em outras palavras, em um romance tratando de elementos aparentemente particulares e regionais, Coetzee faz uma obra com uma abrangência e relevância muito maiores, tornando possível, inclusive, um paralelo com nossos tempos sombrios.

À espera dos bárbaros
J. M. Coetzee
Trad.: José Rubens Siqueira
Companhia das Letras
204 págs.
J. M. Coetzee
Nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul, em 1940. Morou na Inglaterra, lecionou nos Estados Unidos e voltou à cidade natal em 1984, onde viveu até se mudar para a Austrália, em 2002. Recebeu duas vezes o Booker Prize, por Vida e época de Michael K (1983) e Desonra (1999). Em 2003, ganhou o Nobel. É autor ainda de A vida dos animais, O mestre de Petersburgo, Elizabeth Costello, Juventude, entre outros.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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