Tempos em mutação

Em sua ficção, Mircea Eliade nos insere num mundo em que o irracional e o racional se confundem
Mircea Eliade, autor de ‘Uma outra juventude e Dayan”
28/05/2017

Não bastasse sua extensa obra nos campos da história das religiões e da mitologia, o romeno Mircea Eliade (1907-1986) também teve atuação consistente como autor de obras literárias e dramatúrgicas iniciada em 1921, aos 14 anos de idade, e finalizada nos anos finais de sua vida. No entanto, ao público ocidental, essa última parcela de sua produção não parece ser tão familiar. Como exemplo, basta comparar, no mercado editorial brasileiro, a diferença da recepção de seus estudos acadêmicos e de suas composições literárias, em sua maioria romances, que começaram a ser publicados somente em 2011, com o lançamento de Senhorita Christina, traduzido por Fernando Klabin. De novo pelas mãos habilidosas desse tradutor, recebemos, recentemente, dois textos de Eliade de uma só vez: Uma outra juventude e Dayan, que nos apresentam uma nova faceta do seu autor sem, contudo, deixar de lado o viés de estudioso das religiões. O sagrado e o místico também são elementos determinantes para a compreensão de seu universo literário, de modo que nossa leitura racionalizante seja confrontada a todo tempo. Essas duas obras, cada uma a seu modo, nos inserem bruscamente nesse cenário de incertezas.

Longe das tendências romanescas e científicas do século 20, Eliade, como estudioso ou ficcionista, desenvolveu um interesse crescente e talvez obsessivo pela formação religiosa dos povos, de modo que o culto da razão, herdado do Iluminismo e em parte reformulado pela ciência moderna, nunca lhe apeteceu. Manteve-se distante também das estéticas revolucionárias em seu sentido propriamente político, inclusive pelo suposto envolvimento com a chamada Guarda de Ferro, grupo romeno de extrema direita, ultranacionalista, do período entreguerras, razão pela qual depois da Segunda Guerra Mundial, com a consolidação do comunismo em seu país, teve que se exilar. Tal fato, no entanto, não parece estar tão em evidência na recepção crítica de sua obra. Além disso, o autor faz parte da lista de intelectuais do leste europeu que se mudaram para a França e lá se destacaram por sua criação, independentemente do campo a qual se ligasse, como Emil Cioran e Eugen (ou Eugène) Ionesco. Nesse meio, o autor pode ser aproximado de seus pares pela crítica ou até mesmo distanciado de escritores estrangeiros por questões como sua afiliação política.

De acordo com Eugen Simion, autor do posfácio do livro, a ficção de Eliade pode ser dividida em fases — apesar de esse tipo de classificação ser complicado —, sendo que Uma outra juventude, de 1976, e Dayan, de 1979, se encaixariam em sua produção final. Esse período já teria todas as marcas que distinguem Eliade de outros ficcionistas do século 20, de viés mais vanguardista, da qual ele só se aproximou ainda no início da carreira, com obras sem tradução para o português, como Lumina ce se stinge (1934), em diálogo com a poética joyciana. Outras obras anteriores a Senhorita Christina (1935) também se caracterizam pela fascinação do historiador das religiões após uma temporada na Índia, o que o motivou a trazer de lá, inicialmente, temas autobiográficos e, depois, míticos. Dessa forma, poderíamos dizer que a tradução da qual tratamos aqui se refere a um momento de consolidação da escrita ficcional de Eliade, de modo que aspectos aparentemente contraditórios de sua poética parecem conviver e suscitar uma leitura distinta de nossa parte.

Paradoxo
As obras aqui abordadas são exemplares desse paradoxo em que se situa a literatura de Eliade. Em Uma outra juventude, novela (ou romance, a depender da análise), a narrativa se concentra no desenvolvimento do estranho fenômeno de mutação de Dominic Matei, o protagonista, após ser atingido por um raio em sua chegada a Bucareste vindo de Piatra Neamt, onde era professor de latim e italiano num liceu. A todo tempo, o que vemos é uma figura muito ligada à ciência, ao conhecimento humano que revê seus princípios devido às modificações misteriosas que acontecem em seu corpo e em sua mente, fatores que também motivam a oscilação entre crença e descrença por parte dos médicos. O mesmo paralelo está presente, sob outras formas, em Dayan, texto de menor extensão, uma novela propriamente dita. Aí o que vemos é uma mutação: o jovem Constantin Orobete, de apelido Dayan, estudante de matemática na Universidade de Bucareste, tem um encontro com a mitológica figura de Ahasverus, o Judeu Errante, que o transforma, mais uma vez, em corpo e mente, ainda que em menor medida. Apesar das diferenças, o padrão é indiscutível: temos duas personagens ligadas à racionalidade humana que são confrontadas pela força da sacralidade e do sobrenatural. Talvez este seja, inclusive, o motivo para a publicação brasileira ter unido os textos em uma única edição.

Essa relação tão próxima com a filosofia e a religião, característica de outros escritores romenos de sua época, como Lucian Blaga, é certamente um dos enfoques da crítica sobre os romances de Eliade, porém há outros planos para além da inserção da mitologia no enredo. Apesar da classificação dada ao escritor por Eugen Simion, é possível observar, na primeira parte de Uma outra juventude, traços do que poderia ser considerado uma narrativa modernista sob o aspecto da exploração formal. O tempo, tema também evidente por sua associação com a mutação, o sobrenatural, é reconstruído no discurso por meio de recursos que aproximam o texto da estética de sua época, portanto distinta da narração clássica do mito.

A fim de se aprofundar nesses aspectos textuais, é possível destacar trechos da obra citada que causam confusão no leitor através da perspectiva dos acontecimentos que Dominic Matei nos oferece, mesmo que a narração se dê em terceira pessoa. Por exemplo, quando lemos, na página 21, uma espécie de (auto)diálogo da personagem: “‘Não gosto nem um pouco desse sonho’, repetiu inúmeras vezes. ‘Não sei por quê, mas não gosto dele…’”, para que, logo após, o texto seja emendado com a seguinte narração: “Esperou a enfermeira sair e, com emoção e muito cuidado, como vinha fazendo já havia alguns dias, começou a entreabrir as pálpebras”. Trata-se de um exemplo bem simples de uma técnica que desestabiliza a verossimilhança do pacto ficcional ao fazer o leitor se questionar por que a personagem “repetiu” sem que fosse ouvido pela enfermeira, que, a princípio, o considera quase mudo. A dúvida é inevitável: afinal, o que acontece na cabeça de Matei? Embora, pela lógica, nada faça sentido, o texto nos apresenta a metamorfose pela qual a personagem passa em progresso, de modo contínuo, como se dá nossa compreensão dos fatos. Do mesmo modo, o encontro com o Judeu Errante e todas as reflexões para além da ciência que ele promove na vida do jovem estudante em Dayan também nos parecem algo absurdo, mas, através também da transgressão que o sonho impõe à consciência, toda a sabedoria é reformulada a fim de se adequar ao elemento irracional.

Como uma obsessão, portanto, o escritor aponta e reconhece a existência do saber e parece incorporar a ele a mística e a religião que tanto estudou de forma que nós, leitores, não consigamos mais distingui-las do restante do conhecimento humano. Entretanto, cabe ressaltar que isso não significa que as personagens deixem de pensar; muito pelo contrário, pois elas parecem, sim, resolver o mundo ao seu redor devido à adequação que promovem a partir do mito. Em Eliade, o mito gera a ficção que o perpetua e questiona sua classificação racionalizante e exclusiva como mito, integrando-o, assim, à realidade.

Uma outra juventude e Dayan
Mircea Eliade
Trad.: Fernando Klabin
Editora 34
216 págs.
Mircea Eliade
Romeno de Bucareste, nascido em 1907, de família cristã ortodoxa, teve desde cedo interesse pela filosofia e pela religião. Além da Romênia, viveu na Índia, em Portugal, na França e nos Estados Unidos, trabalhando sempre como professor. Faleceu em 1986, após escrever os estudos pelos quais se tornou conhecido e também uma série de romances em sua língua nativa.
Daniel Falkemback

É professor, tradutor e doutorando em Letras na UFPR.

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