Tempos de terror e paixão

"Exílio", de Marcela Tagliaferri, renova a literatura contemporânea ao apresentar personagens vivos e reais
Marcela Tagliaferri, autora de “Exílio” Foto: Ana Zinger
01/11/2012

As feridas de nosso passado recente começam a ganhar uma nova leitura na voz da literatura contemporânea. Parece haver também certa saturação da descrição massiva da violência urbana. A junção destes dois fenômenos aponta para uma maior consistência e diversificação na escolha temática de nossos autores. Em outras palavras, apesar da multiplicidade de sotaques que nos leva à ausência de uma escola literária, existe uma tendência a refletir nosso presente como conseqüência de um passado próximo.

Nessa esteira surgem livros que mergulham profundamente na história política e debatem todas as conseqüências dos quase 20 anos de opressão da ditadura militar. Exílio, romance de Marcela Tagliaferri, segue este caminho. Seu enredo fala de um empresário, dono de jornais, alinhado com os princípios do golpe militar de 1964. Ele usa todos os mecanismos que tem em mãos para afastar a filha Silvia dos braços do marido, Vicente, um engenheiro idealista que desagrada ao sogro por ter vindo de uma família humilde do subúrbio.

Impressiona, de saída, a segurança com que Marcela trabalha as várias vozes narrativas. Há um narrador onisciente, mas se entrecruzam, sobretudo, os depoimentos do trio protagonista: Vicente, Silvia e seu pai. E tudo se dá com uma interessante suavidade. As vozes mudam no mesmo parágrafo, na mesma frase. Esta situação leva o leitor a refletir sobre as verdades de cada um. Não que haja aí uma tentativa de se eliminar o maniqueísmo necessário a este tipo de narrativa. Ele fica explícito e deixa bem claro onde está o bem e onde está o mal.

O que não há é uma opção política, uma defesa de um dos discursos ideológicos da época. Embora as referências à luta travada entre esquerda e direita sejam constantes, não se chega a aprofundar tal debate. Marcela parece mais interessada em descrever o conflito e acentuar a crueldade que daí nasceu. Exílio, assim, se faz como um protesto à crueldade, à irracionalidade de homens que justificam suas ações mais mesquinhas através da necessidade de defesa da pátria. No entanto, fica a pergunta: Que pátria é esta que carece da proteção, dos cuidados do cidadão?

A resposta superlativa o instinto da crueldade, posto que é medíocre, banal. O zeloso pai de Silvia se volta contra Vicente por puro preconceito. O moço vem do subúrbio, tem atitudes liberais e sonha em trabalhar com projetos de moradias populares. Isso faz dele um fracassado, na visão do sogro, claro, e, portanto, indigno e incapaz de cuidar de Silvia. Para promover o afastamento dos dois, desperta o ciúme a partir de um outro preconceito. Silvia não era virgem quando casou, conta o sogro, ao contrário do que acredita o marido. E também, nas noites glamourosas de Copacabana do início da década de 1960, teria tido um caso com Vinicius de Moraes.

A partir daí, toda a trama do romance se desenvolve e cresce. É uma maneira muito bem pensada de mostrar as contradições de uma época em que o Brasil se modernizava. Havia uma liberalidade explodindo na pele. O futuro parece que tinha chegado com a construção de Brasília e a conquista do Oeste. E tudo modulado por uma música belíssima, refinada, e uma poesia envolvente. A inteligência estava na moda, mas o terror não tinha recolhido suas armas e também explodiu em abril de 1964.

Provocação e segurança
Esta contradição entre glamour e opressão é que faz de Exílio um livro conseqüente, inteligente. Nestes tempos em que a literatura no geral vem se dedicando à banalidade, espremida entre a violência e a sexualidade, é muito bom ler um romance que pensa e provoca o leitor. Não que estejamos diante de uma obra acabada e perfeita. Tem seus problemas, sim, como a linguagem que às vezes descamba para os jargões, os chavões: “Todos os dois se sentem vítimas do destino, empurrados pelo abandono. Resta saber se conseguirão refazer o caminho e mudar a postura de conflito”, escreve Marcela, quase revisitando os dramalhões mexicanos. No entanto, isso não macula sua obra, que, aliás, ainda está em processo de construção, mas já se mostra bela e segura.

E esta segurança se revela em todos os tópicos da narrativa. Há uma trama muito bem construída, muito bem desenvolvida, muito bem resolvida. O leitor logo identifica quem manipula quem e até mesmo chega a adivinhar os rumos do enredo, mas isso também parece ser uma determinação da autora. Ela vai soltando as linhas com um misto de generosidade e parcimônia, e na medida certa as informações vão chegando e armando todo o circo.

Isso fica bastante claro na construção dos personagens. Cada um tem sua função na trama. O pai é o dominador, que tradicionalmente deseja que tudo aconteça segundo suas crenças. Silvia, a moça ingênua e oprimida que ama e quer se libertar. Vicente, o idealista suburbano que, mesmo com condições de manipular as estruturas do poder, opta pela simplicidade. Rafael, filho de Silvia e Vicente, o jovem revoltado que enxerga tudo de longe e tenta interferir no processo de mudança. Todos, enfim, são filhos e vítimas de uma época de contradições, onde o moderno tenta vencer barreiras medonhas para se impor. Os personagens de Marcela Tagliaferri pagaram um preço alto por estarem no meio deste furacão.

Exílio, enfim, é um livro que renova a literatura contemporânea ao apresentar personagens vivos e reais. E por nos levar à reflexão sobre que danada de modernidade foi construída nesta terra.

Exílio
Marcela Tagliaferri
Motor
128 págs.
Marcela Tagliaferri
É formada em História, com especialização em História da Filosofia Moderna e Contemporânea. Foi premiada com o conto Um vôo, publicado em 2001. Em 2007, foi finalista do concurso Nelson Rodrigues e As Tragédias Cariocas, da editora Nova Fronteira, com o conto O refém. Publicou o romance A filha do livreiro em 2008. Exílio é seu segundo romance.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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