No romance O homem que vive — Uma jornada sentimental, o escritor Teixeira Coelho nos oferece desde a capa do livro, sua visão da arte bem como uma sutil e antecipada interpretação de sua própria ficção.
Explico-me. A capa está composta sobre uma obra da artista plástica Regina Silveira que, segundo depoimento do próprio autor, foi sugestão dele ao editor. Instigante visão do fragmentário, os estilhaços azuis de Regina são adequados para enfatizar a fragmentação simbólica e sintática que temos no próprio título O homem que vive — o qual tem como subtítulo um objeto direto que completa a frase: “uma jornada sentimental”. Ou seja, o verbo viver (por si incompleto, “transitivo”) necessita do complemento que está no subtítulo — não por acaso um dos temas centrais da obra. Esse aspecto cerebral, mesmo que despercebido aos leitores, tende a se ampliar e, de certa forma, conduz pela mão o leitor e a leitura.
O romance narra uma longa e fragmentária jornada (no tempo e no espaço) do protagonista Buel, um homem apaixonado por arte, através de inúmeros museus, galerias, pinacotecas, exposições, mostras de arte mundo afora — acompanhado de uma mulher, Valéria, a quem chama de “anjo”.
Mesclam-se no relato o passado desse protagonista (a partir de 1973, ano simbólico — segundo o próprio autor — por várias razões políticas e pessoais), com momentos no presente (em capítulos interpostos), quando Buel está de volta ao Brasil. É atrás de “seu anjo” que o protagonista retorna a São Paulo depois de oito anos. Instala-se num hotel perto do Masp e do parque Trianon. (Fica difícil separar aqui o escritor do narrador e do protagonista.)
Está nevando abundantemente em São Paulo — quem diria —, a ponto de os espigões e as árvores se mostrarem todos brancos e as pessoas, alegres, brincarem na rua com “os cabelos cobertos de flocos de neve”.
Na véspera de seu retorno a São Paulo, oito anos depois, na tentativa de reencontrar seu anjo, seu mais próximo e dedicado anjo, o anjo que ele encontrara e rejeitara, começou a nevar na cidade pela primeira vez na vida, na vida dele sem dúvida, na vida da cidade talvez.
O frio e a neve são leitmotifs recorrentes no livro todo, em todos os lugares; e o fato de nevar em São Paulo não é apenas um capricho do escritor, funciona como uma alegoria, uma transposição da atmosfera fria que acompanha Buel pelos vários lugares do mundo onde esse homem respira obras de arte e delas se alimenta. Mas o autor não nos insere num realismo mágico; é até inquietante (e isso atrai o leitor) a naturalidade com que os habitantes lidam com o fato inédito:
O porteiro não se comportava como se estivesse diante de um fato estranho; para ele parecia natural que nevasse na cidade (…).
Os carros se moviam devagar, os motoristas não sabiam como dirigir naquela situação, mas todos pareciam insistir em que deveriam levar uma vida normal, como diziam os médicos (Leve vida normal, eles dizem), e os pneus esmagando os flocos de neve…
Os temas
E daí? — perguntariam os críticos inconformados. De que trata um romance com sutis referências político-culturais, construído à moda do nouveau roman, para falar da busca de uma mulher? Se a intenção é contar uma história, que história é essa? Difícil dizer, apesar da clareza com que o narrador onisciente nos faz penetrar nas reflexões de Buel.
Nem sempre é bom (para o leitor) que um autor se manifeste em entrevistas ou por escrito sobre a própria obra criada. Vi isso ocorrer com escritores tão diversos como Ariano Suassuna, Caio Fernando Abreu, Paulo Leminski e, mais recentemente, com Edney Silvestre, o premiado de 2011.
Teixeira Coelho é homem da cultura, é professor e eminência pública; não pôde, creio eu, furtar-se a se manifestar sobre seu último romance — o que acabou sendo um conforto para leitores confusos. Numa entrevista ao programa Metrópolis da TV Cultura de São Paulo, interpretou, por exemplo, a neve paulistana como “representação de que não vivemos tempos comuns, tudo pode acontecer”. E mais: explicitou como um dos temas principais do romance, “a jornada sentimental em busca da felicidade”. Nem precisava dizer: é clara a referência ao Lawrence Sterne de Tristram Shandy e Uma viagem sentimental através da França e da Itália.
Uma jornada sentimental, para longe dos museus mundo afora, é intencional para buscar a felicidade (“Uma viagem em busca da felicidade. Definitivamente. Intencionalmente.”). Mais do que usar o eterno tema da viagem do herói, de Ulisses (o de Homero) a Ulisses (o de Joyce), o que interessa, em tempos contemporâneos, é discutir a qual felicidade se refere o protagonista.
Mais uma vez voltamos à arte de Regina Silveira. As definições do protagonista itinerante — sempre amparadas por um narrador em onisciência seletiva — são fragmentárias, múltiplas e sobrepostas como os estilhaços da capa. Ora a felicidade “é cortante como uma ferida na sola do pé feita pelo frio — como se uma lâmina de barbear”; ora a felicidade é “sentir-se intensamente vivo, apossar-se de cada minúsculo espaço do próprio corpo e da própria alma”; ora “o frio é cortante. Como a felicidade”. E, sobretudo, pensa o protagonista:
Nunca existe um instante único de felicidade, por mais miserável que seja uma vida. São vários, são muitos e é impossível não pensar que cada um deles o está sendo no instante mesmo em que ocorre. (…) Por que não se guardam esses momentos na memória?
A felicidade, então, parece ser um conjunto de fragmentos da felicidade. Buscar a felicidade, agora, é vir a São Paulo atrás da primeira Valéria, a de 1975. De fato, ele consegue reavê-la ou ao menos revê-la, e tê-la em seus braços, após saber que ela se casara e seguira a vida. Assim termina sua jornada pessoal bem como o romance:
Buel tomou Valéria pela mão e subiram para seu quarto, o elevador ainda funcionava. Não havia qualquer razão para que não funcionasse, como o resto do hotel. Buel insistiu consigo mesmo para que se desse conta naquele instante mesmo de que aquele sem dúvida era um momento especialmente feliz de sua vida. Que ele sentisse isso naquele instante e não apenas depois.
Personagem que não avança
Ocorre que os temas da busca (da felicidade) e do deslocamento do herói deflagraram a construção de um personagem solitário, reflexivo, egocentrado e pouco afeito a ações práticas. Um “globetrotter” diz Antonio Gonçalves Filho, em resenha sobre a obra, no Estadão. Mas, ouso acrescentar: um globetrotter sem músculos, sem nervos, um personagem não construído para a necessária “odisséia do dia-a-dia” em nosso mundo contemporâneo.
Olhar a arte com os olhos (outro tema da obra), visitar museus, viajar em busca da mulher nunca esquecida, procurar a tal felicidade paradoxal não constrói o personagem, apenas um autômato reflexivo. É como viver a vida através da vida dos outros. O protagonista — com todo o respeito por seu autor — não se destaca da obra, é uma projeção especular que não cria itinerário próprio e vigor.
Se há convenções e submissões à realidade contra as quais tem de lutar, Buel parece não chegar à clara consciência de si mesmo, daí a falta de forças. Não é um “herói problemático”, que conhecíamos desde os estudos de George Lukács sobre a construção dos romances. Tenho a impressão de que o protagonista de Teixeira Coelho é o homem confuso do século 20 perdido no século 21 — quando até pode “nevar” na paulicéia desvairada.
As mulheres: sem rosto e silenciosas
Talvez por isso (e isso é interessante), as mulheres com quem Buel faz amor, visita galerias e leva a restaurantes não têm nome. São todas “valérias”, sem rosto próprio, apenas aparecem em diálogos circunstanciais. Um misto de intelectuais e garotas de programa, essas mulheres ajudam a construir as marcas da solidão de um homem para quem o amor pode ser apenas o de “uma Valéria local”, ou uma “quase Valéria”, ou mesmo uma Valéria “de Washington”.
O fato é que todas são silêncio e ausência de valor na narrativa; existem circunstancialmente, belas ou cultas: são roteiros de passagem. Emerge desse universo apenas a Valéria-anjo, a cujo “valor” o protagonista submete à vida pessoal: “Valéria estava com ele. Claro. Valéria sempre estava com ele nesses invernos. Valéria valeria a mulher dele, a mulher para ele? Vale, dizem os espanhóis (grifos meus).
Se Teixeira Coelho, porventura, quis contar uma história para um leitor comum, pouco familiarizado com o roteiro dos museus e das obras de arte mundo afora, pouco sobra ao fecharmos as páginas do livro. Quem é, afinal, Buel? Se o autor quis, como afirma Antonio Gonçalves Filho, “investir no trânsito entre ficção e ensaio”, aí a obra ficou híbrida demais. E cheia de itálicos, condutores didatizantes da voz autoral: “No terraço do hotel, depois, Buel sente o peito como se doesse; (…) não consegue deixar a vida seguir seu curso normal (…) e sente o peito confrangido…”.
Buel não acredita em ficar juntos para sempre mas não se importaria muito se assim fosse.
Mas a dor no peito torna-se ainda mais acentuada e já não é mais uma dor no peito, “é a dor como pano de fundo do peito”.
A verdade é que se eu, habitual leitora de Teixeira Coelho, tive de recorrer ao próprio autor ou a grandes resenhistas para explicar este romance, é porque algo está errado. Ou o romance é para poucos, ou nele se põe em discussão de maneira muito sutil a questão da convenção romanesca no século 21, ou — o que é para mim um desastre — não entendi quase nada.