“Venham — vocês leitores conhecer/reconhecer Torres e levar um dos mais belos romances sobre o tempo que passa e nos acaricia e morde, afaga e faz doer.” Com essas palavras, Inácio de Loyola Brandão, em O Estado de S. Paulo, edição de 17 de novembro de 2006, formula, talvez, uma das mais contundentes definições do romance Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres.
Considerado o último de uma trilogia, é um texto complexo, ligado aos dois romances que o antecederam através de um enredo que estabelece fios de ação, personagens, espaços e problemáticas comuns. Neste aspecto, a relação dos três romances — Essa terra (1976), O cão e o lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006) — é de continuidade e íntima relação da trama que discute idas e vindas de personagens sobre uma história de vida que, apesar de particular, traz o selo de questões bastante amplas de uma coletividade. Voltado para as dificuldades vividas por grande parcela do povo brasileiro em diferentes momentos da nossa história política e social, permite à crítica identificar marcas realistas de referencialidades espaciais e geográficas, assim como eixos autobiográficos e autorais. Apesar de ser inegável a importância dessas marcas nos textos, no contexto geral da produção a questão central de discussão é mais ampla.
Torres se liga à tradição dos grandes nomes da literatura brasileira por sua filiação de romancista preso às suas origens e compromissos com o tempo histórico que testemunha, ao mesmo tempo em que se posiciona observando as mudanças estéticas e as novas experimentações no plano da linguagem, enquanto leitor crítico e atento dos seus contemporâneos. É, provavelmente, o diálogo que estabelece com aspectos tão distintos das esferas literárias que mantém sua produção em alta cotação de público e crítica. Ou seja, não deixando de abordar velhas questões, trata de aprofundá-las dentro de novas perspectivas, atualizando-as e ressemantizando-as.
Essa terra conta a história de uma família do interior da Bahia que recebe o primogênito Nelo, depois de 20 anos de ausência, com todas as honras de um bem- sucedido cidadão vindo de São Paulo. Apesar do aparente sucesso, Nelo surpreende a todos com um suicídio, incapaz de suportar o fracasso de seus projetos e da expectativa frustrada que isso poderia causar aos seus. A narrativa desenvolvida sob o ponto de vista do irmão mais novo, Antão, Totonhim, problematiza a falta de sentido dessa tragédia familiar que atinge, com violência, todo o lugarejo e põe em discussão concepções, valores e crenças da comunidade. É na pequena cidade de Junco que tudo se inicia.
Em O cão e o lobo, Totonhim retorna à cidade natal para o aniversário de 80 anos do pai, 20 anos depois de ter partido também para São Paulo e de ter internado a mãe em um hospício. A pequena cidade já incorpora novas tecnologias e se amplia nos aspectos físico e econômico, mas do ponto de vista afetivo e cultural mantém velhas crenças e memórias. A lembrança de Nelo e a ameaça de suicídio de quem volta ainda sobrevivem e pairam no ar.
Na viagem de retorno, o protagonista revê sua gente, encontra-se e faz amor com a primeira namorada, Inesita, reencontra a mãe velhinha e lúcida, livre da crise de loucura que a levou ao hospício, depois da morte do primogênito Nelo, e um pai sóbrio e disposto a evitar seu desencanto e suicídio. Seus caminhos foram diferentes dos do irmão. A tragédia não se repete. Mas retorna de mãos vazias. Como o outro, a pequena cidade não lhe pertence, não lhe acolhe, é como se ele não coubesse mais nela, não lhe oferecesse referência de pertencimento.
Memória e hipóteses
Em Pelo fundo da agulha, dez anos depois, ainda sob o signo da viagem, Totonhim refaz o percurso de sua trajetória de vida e revisita as cidades por aonde passou dentro de um plano imaginário entre sono e vigília, fragmentos de memória e hipóteses do que foi ou poderia ter sido a sua história. Dentre essas cidade, São Paulo tem um lugar privilegiado, mas não exclusivo. Paris, Babilônia, Nova York, etc. são contrapontos que estabelecem diálogo desse mundo globalizado com a provinciana origem que não oferece qualquer garantia de territorialidade.
O narrador do romance, como seu criador Antônio Torres, é um leitor e estudioso da literatura urbana contemporânea. Calvino, com suas Cidades invisíveis, Baudelaire, Walter Benjamin e Renato Cordeiro Gomes, em Todas as cidades, a cidade, não deixam de ser citados e discutidos nas conferências pronunciadas pelo autor.
Desde a epígrafe de Carson McCullers até as últimas linhas do romance, a cidade merece um tratamento privilegiado e mais do que uma referência de espaço físico é uma alegoria que acompanha o protagonista como auxiliar indispensável para a leitura da sua própria vida. Neste sentido, dialogando entre si, as cidades concretas e as invisíveis, do desejo, da memória, dos sonhos dos personagens, funcionam como poderosas lentes.
Nos textos anteriores, São Paulo já se apresentava como um contraponto a Junco, o que não se limitava a uma simplista oposição cidade/campo. Aqui, São Paulo equaciona a grande metrópole com seus núcleos de imigrantes e seus conflitos e estabelece relação com o mundo globalizado através de outras cidades geograficamente nominadas ou simbolicamente imaginadas. No primeiro parágrafo do romance, logo após a epígrafe, o narrador já sinalizava: “Era outra a cidade, e outro o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios”.
Em termos da construção narrativa, a lógica linear se esgarça, apesar de se fazer perceptível por um frágil fio discursivo no qual predomina a ação situada num tempo cronológico e num espaço físico pautado no plano de uma realidade objetiva.
A complexidade do texto ganha fôlego a partir de um narrador onisciente, que acompanha o protagonista em sua noite de vigília pelos meandros de suas impressões, sugestões, medos, memórias e delírios. Nessa viagem afetiva, o narrador se apresenta, ora como um cúmplice tão íntimo que some numa narrativa que parece se fazer por si só, na qual a introspecção do protagonista ganha a força de uma voz própria.
Outras vezes, esse mesmo narrador se impõe, estabelecendo uma interlocução não apenas com o leitor, mas, principalmente, com o personagem, que passa a ser questionado e construído em termos de hipotéticas possibilidades de ação.
Vamos combinar que esta história da morte brutal da sua mulher é má literatura ou, no mínimo, uma solução fácil, senhor…
Ao eliminar a sua ex-mulher brutalmente, o distinto aí pretendeu retirá-la da sua vida, de uma vez para sempre, não foi?
Pontos importantes de apoio, como as referências às músicas, aos filmes e a outros textos, tanto clássicos e literários quanto ditos populares, percorrem todo este livro, e a maior parte da obra do autor. Funcionam como um fio de linha, preso pelo fundo de uma agulha, que vai costurando os fragmentos de memória e ação, ora atribuídos aos personagens, ora assumidos pelo próprio narrador como elementos constitutivos do tecido. Algumas referências a letras de música são importantes elos de contextualização, ou seja, ajudam a situar os acontecimentos particulares num tempo histórico e social, portanto, coletivo.
Mais que citações avulsas, são recortes costurados ao texto, nele integrados, garantindo expressividade poética e ampliação de significados semânticos e contextuais. Como exemplo, podemos observar o lamento pela perda do grande amigo Bira e sua relação de amizade e amor pela cidade. “Nunca mais um chope no Jeca, na esquina da Avenida Ipiranga com a São João, imortalizada por Caetano Veloso… Sampa!”. Nada mais eficiente para criar a ambientação de uma festa popular de São Miguel Paulista do que “a voz do mesmo Luiz Gonzaga, o rei do baião, ouvida em todas as praças do sertão. Sentiu-se em Junco”.
O narrador ainda se destaca pela precisão com que se utiliza de outros textos na construção da trama, dos personagens, do tempo e do espaço narrativos. As questões temáticas levantadas ganham relevância quando acompanhadas por uma referência bibliográfica importante. Caso exemplar é a citação de trechos poéticos de Vladimir Maiakovski, quando o protagonista sugere seus medos do suicídio. “Hoje tocarei a flauta da minha própria coluna vertebral.”
O suicídio é uma questão que volta e meia entra em pauta, desde o primeiro livro da trilogia. As mortes do irmão Nelo e do primo Pedrinho, por enforcamento, do amigo de infância Gil e a do sogro, por tiro, são retomadas sob diversas formas nas memórias do protagonista. A referência a O mito de Sísifo, de Albert Camus, amplia o enfoque. Mais que um fato em si, um pecado mortal e condenado pela religião e cultura dos personagens, o atentado contra a própria vida é uma situação limite de perda de perspectiva do sujeito despatriado, sem referencial identitário, sem sonhos próprios. “… num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro” (Camus). Independentemente da ação suicida se realizar ou não, o que ela suscita no protagonista é o mesmo sentimento que levou seus amigos, irmão e sogro à morte, esse sentimento de estrangeiro de si mesmo.
Totonhim agora está aposentado de um cargo importante no Banco do Brasil e toda a sua vida se desenrola em apenas uma noite. “Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso… Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos…”
Seus passos, seus medos, seus sonhos, suas perdas, seus desencantos, sua solidão, seus vazios têm uma noite de vigília para serem revistos, sem esperança de algum sentido definitivo.
Situa-se como viajante sem rumo, cujo último porto só espera seus relatos de bordo, sua fragmentada narrativa. Sua matéria fundamental é o tempo: “É humanamente impossível fugir do tempo que está dentro dele, com todo um insatisfatório acúmulo de vivências — desejos e esperanças,… perdas e ganhos, prazer e dor, solidão e mágoa”. Passado e futuro, dois tempos que se cruzam na ponte incerta do presente narrativo, sonhos perdidos que apontam também para a atemporalidade dos desejos inatingíveis na angústia cotidiana.
Agora se sentia como um marinheiro que perdera o barco do tempo —olha lá onde já vai; acabou de sumir na linha do horizonte! —, deixando-o plantado à beira de um cais imaginário, sem saber que rumo tomar.
Paradoxalmente, o tempo como matéria dialoga com a “região sem tempo dos sonhos”, imaginário de um marinheiro que perdeu o barco a sumir na linha do horizonte, que constrói sua narrativa se apegando a referenciais concretos do tempo histórico. A partir da nossa história política dos anos de ditadura militar, são construídos personagens caros ao protagonista: Bira, o melhor amigo, revolucionário perseguido e assassinado em plena praça pública por forças policiais, e o sogro, militar reformado que se suicida e leva consigo segredos de Estado que jamais serão revelados.
Por fim, entre os mistérios e segredos que a escritura tenta inutilmente desvendar está a figura materna que admiravelmente sobrevive com sua visão apurada de costureira dos fragmentos desse tempo. “Com a mesma delicadeza com que passara a vida a enfiar a linha no fundo de uma agulha”, vela agora a noite de insônia do filho. Este ainda se inquieta e, depois de tantas perdas e vazios, tem curiosidade quanto ao que pode ser visto pelo fundo da agulha. Recortes de um tempo que ainda sobrevive em ruínas do passado? Fragmentos leves como seu corpo semi-adormecido, camelo capaz de atravessar a fronteira do sono e da vigília, pelo fundo da agulha? Ainda bem que essa mulher batalhou para dar estudo a seus filhos. Agora, quando tudo parece sem sentido e Totonhim não sabe mais se tem sonhos próprios, lhe resta “uma pilha de livros… para tomar de empréstimo sonhos alheios na esperança de vir a ter os seus…”, quem sabe, um dia.