Tempo presente

Em “O adiantado da hora”, Carlos Heitor Cony se mostra atual ao misturar trama policial e investigação da memória
Carlos Heitor Cony: brincadeiras com a própria idade.
01/10/2006

O último romance de Carlos Heitor Cony pode ser lido, paralelamente a sua construção burlesca e picaresca, como mais um exemplo do exercício da faculdade da memória na obra deste autor. Faculdade ou condição, a memória parece demonstrar, definitivamente em O adiantado da hora, sua importância e função conceitual. Articulada em boa parte de sua produção ficcional, como em Matéria de memória (1962) e Quase memória (1995) — dois exemplos que deixam evidente já em seus títulos o valor dessa função assumida pela memória em sua obra —, sua presença neste romance parece querer chamar à consciência a condição de quem já se encontra bastante adiantado em sua hora. O autor, do alto de seus 80 anos, possui extensa matéria desta natureza à disposição.

Cony é o autor que transforma, na literatura brasileira, a memória em fato material. Desde seu romance de estréia, O ventre (1958), até este que é seu mais recente nos últimos três anos — seu último romance inédito foi A tarde da sua ausência (2003) —, a memória atua como personagem que coordena como elemento conceitual de fundo o fio da narrativa. Em O adiantado da hora, ela serve de metáfora bastante apropriada à formação da trama existencial entre os narradores e a narrativa.

Na interpretação metafórica que se pode atribuir ao título deste romance, parece haver o autor intencionalmente imprimido a sua condição de avançado na idade, daquele que já se faz tarde. Cony faz parte da geração de escritores brasileiros talvez mais velha atualmente ainda na ativa. Ele brinca com essa condição e demonstra, na composição de mais um romance burlesco no conjunto de sua obra — ao lado de títulos como Pilatos (1973) e O piano e a orquestra (1996) —, que sua escritura ainda se encontra bastante atual e que seu tempo se faz presente.

Planejado inicialmente como peça teatral, como explica o autor em nota introdutória, a narrativa acaba por ser construída e caracterizada como rapsódia e farsa. Afirma ainda, na mesma nota, ter desistido da forma dramática, devido a sua “incompatibilidade com o texto teatral, ainda que em sua versão mais descompromissada” do gênero.

O elenco dos personagens é formado por figuras pitorescas da história mundial, passando por tipos caricatos que constituem o núcleo da narrativa, e nomes ilustres da cultura brasileira. No primeiro grupo encontramos Madre Teresa de Calcutá, Américo Vespúcio e Voltaire; no segundo grupo, um deputado caçado (Seabra, que se chama Antônio Ferreira de Araújo), um candidato a advogado sem vocação (Zé Mário, narrador em primeira pessoa que “procura inventar tudo, inclusive a si mesmo”) e uma mulher de “conhecido furor uterino” (Aparecida, que morreu e ressuscitou); no último grupo temos Euclides da Cunha, Tiradentes e Austregésilo de Athayde. As personalidades do primeiro e do terceiro grupo aparecem todos de forma hiperbólica, presenças indiretas na forma de objetos e de reminiscências: bustos, menções históricas, elucubrações e invencionices. Todos formam, como menção, parte da trama, enquanto esta é de fato habitada pelos tipos caricatos do segundo grupo.

A narrativa apresenta recursos sonoros de repetição, em que os epítetos dos personagens são insistentemente repetidos, constituindo uma estrutura de ressonância que deixa a leitura um pouco cansativa em vários pontos. Além disso, são sugeridos recursos de acompanhamento musical, como a cantata Carmina Burana, de Carl Orff, para o desenvolvimento do enredo. O autor já havia construído uma narrativa inspirada em características musicais em seu romance Balé branco (1965).

Desde Zé Mário, que narra em primeira pessoa, até uma espécie de narrador onisciente, que narra em terceira pessoa e que “tentou narrar o que não acontecia”, a narração constrói-se de forma ambivalente. A certa altura, nos familiarizamos com a alternância entre narradores, a respeito da qual somos advertidos já na “ficha técnica”, que nos apresenta os personagens antecipadamente, assim como os elementos contextuais da trama: época, cenário, efeitos especiais. O romance é constituído por 36 pequenos capítulos, que apesar do recurso às repetições, são de escrita fluida, estilo marcante da obra ficcional de Cony.

Antropólogo moderno
A narrativa tem início com a chegada de Zé Mário a Cabo Frio, um jovem candidato a advogado sem vocação que é enviado à cidade para investigar (captar) o andamento de um caso policial. Lá procura familiarizar-se com o ambiente buscando “captar o clima da cidade, os hábitos das pessoas […] saber o que fazem, como vivem […] o que pretendem”. Tarefa quase digna de um antropólogo moderno.

Seu falecido pai era um advogado que havia tido uma carreira sem prestígio, amigo de universidade de Dr. Evandro, um dos sócios de um escritório de advocacia em que Zé Mário, pela intervenção da mãe e por favor do amigo ao seu pai falecido, foi empregado e é uma espécie de faz-tudo. Dr. Evandro suspeita que a investigação policial conte com a ajuda de um escritório de advocacia concorrente e então encarrega Zé Mário de “captar” os seus desdobramentos. Advogado ambicioso, Dr. Evandro quer se manter informado a respeito do andamento das investigações sobre o sumiço de uma alemã suspeita de tráfico de drogas em Cabo Frio. A cidade, na região dos lagos, ao norte do estado do Rio de Janeiro, é o lugar do acontecido caso de polícia: o desaparecimento de uma alemã de coxas teutônicas que cai no interesse não apenas da polícia federal mas, supostamente, também da Interpol. O motivo de tal interesse é desconhecido: talvez o tráfico de drogas, talvez a construção de uma bomba atômica, devido a um acordo de cooperação entre o Brasil e a Alemanha que teria como fachada a construção de uma usina nuclear para geração de energia elétrica. Fica-se sem saber se esse caso de polícia é verídico na trama da narrativa ou se imaginado pelo atrapalhado Zé Mário, que, ao se ver incumbido de sua “missão”, passa a se sentir um verdadeiro herói de novela de espionagem, comparando-se ao personagem de uma novela policial de Graham Greene. Assim fica armado o contexto para Zé Mário pôr-se em ação e, ao mesmo tempo, nas mãos do acaso, juntando peças de um quebra-cabeça imaginário.

Galeria curiosa
Os quatros capítulos seguintes tratam de apresentar os personagens que constituirão a trama das investigações de Zé Mário. Seabra e Aparecida são os dois articuladores principais desta trama. Em torno dos dois se organizam todos os outros personagens que compõem uma galeria das mais curiosas: um caboclo Ventania, um pai-de-santo, uma menor (Lulunde) com quem Seabra é flagrado em adultério, um artesão negro forasteiro que será suspeito de feitiçaria e do assassinato da alemã de coxas teutônicas que pode ter cometido suicídio, e é confundido com Manuel Firme, outro negro, comprido como um pente e amigo de infância de Aparecida. Em torno deste universo de personalidades pitorescas, beirando a caricatura, organizam-se os acontecimentos imaginados, ou nem tanto assim, pelo narrador na voz de Zé Mário.

No episódio da apresentação do personagem Antonio Ferreira de Araújo ou, simplesmente, o Seabra (no capítulo 2), este finge não reconhecer a própria filha, durante uma cena em que fabrica uma crise de amnésia, para se livrar de um vexame numa ocasião em que fora flagrado em adultério com uma menor de idade, Lulunde, “dona da melhor bunda das adjacências”. Após a contextualização da trama, no primeiro capítulo, os próximos quatro capítulos tratam de apresentar os personagens centrais, na construção de uma história que Zé Mário supostamente é incumbido de “captar” em sua missão a Cabo Frio. Neste núcleo, Seabra e Aparecida são os articuladores principais e, em torno deles, giram os acontecimentos com os quais Zé Mário vai aos poucos tecendo sua história. Seabra faz parte de uma galeria de personagens com identidade multifacetada que têm presença recorrente na obra de Cony. Como exemplo, pode-se citar o primo do narrador que é o personagem principal em O piano e a orquestra (1996); Marcelino Jesus Caldas, em A verdade de cada dia (1959), ou o anti-herói que carrega sua genitália em uma compota de vidro, em Pilatos (1973).

Após muito especular e fabular, Zé Mário é procurado por Maria Ignês, a filha renegada de Seabra, bonita e dona de “excelente fêmur”. A partir deste encontro (cap. 14), a trama começa a se encaminhar para seu desfecho. A esta altura, na metade da narrativa, Zé Mário cria coragem e começa a organizar em relatórios ou “bilhetes indecentes” os fatos e as imaginações “captadas”, enviando-os ao Dr. Evandro. Até o fim, serão acrescentados detalhes do envolvimento dos personagens na fabulação de Zé Mário. O “caso” parece resolver-se com os envolvidos passando a acreditar nos “delírios” do narrador, principalmente Seabra. Finalmente, Zé Mário é chamado de volta ao Rio de Janeiro. Lá chegando é surpreendido por um Dr. Evandro insatisfeito e irritado que o processa por incompetência.

O universo de Cony marca presença nesta nova obra ficcional de sua lavra: além da referência recorrente à memória, a figura difusa do pai, elementos eclesiásticos e o seu contumaz latinório. A impressão que se tem é, simultaneamente, a de paródia de novela policial, como somos advertidos no capítulo 13, ou então a de tentativa de construir um romance auto-explicativo, isto é, ao mesmo tempo em que se narra o enredo, vai-se explicitando que elementos levaram a narrativa a se constituir desta ou daquela forma.

Se é verdade, como diz o escritor Fernando Monteiro, que “todo escritor escreve para aprender […] para conhecer algum núcleo misterioso das coisas e o seu eu” (Rascunho 74), a escritura de Cony não é nenhuma exceção a esse caso, mesmo que tal afirmação não seja também nenhuma regra.

Ao final da narrativa, cria-se no leitor a impressão de que Zé Mário deve ter sofrido de alucinação imaginativa. No momento em que este irá receber a sentença final, durante o julgamento de sua acusação por parte do Dr. Evandro sobre sua incompetência, o juiz a suspende sem maiores explicações. Fica-se então sem poder decidir entre a alucinação do personagem e uma possível artimanha por parte da memória do segundo narrador, em terceira pessoa. Final intencionalmente misterioso e provocativo para quem já está no adiantado da hora.

O adiantado da hora
Carlos Heitor Cony
Objetiva
217 págs.
Carlos Heitor Cony
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1926, e atua como jornalista desde 1952. É membro da Academia Brasileira de Letras desde 2000. É autor dos romances Tijolo de segurança (1960), Informação ao crucificado (1961), Antes, o verão (1964), Pessach: a travessia (1967), A casa do poeta trágico (1997), Romance sem palavras (1999) e O indigitado (2001), entre outros.
Rodrigo Borges de Faveri
Rascunho