Todo mundo já ouviu, no auge do desespero provocado pela certeza de que não há solução para os problemas, que o tempo é o melhor remédio. Remédio esquisito, porque supõe que o que nos devora é o mesmo que vai nos salvar. Outras afirmações da sabedoria popular não têm relação direta com o sofrimento, mas com o melhor emprego do tempo. “Cabeça vazia, oficina do diabo…” — a oficina só se pode montar na cabeça das pessoas porque presenteamos o demônio com tempo de sobra. Voltamos ao sofrimento se considerarmos que as artimanhas do coisa-ruim não deveriam provocar prazer em quem lhe aluga espaço. Pelo menos é o que imagina quem profere a sentença, do alto da sua agenda lotada.
“Ô, fulano, vá procurar o que fazer.Vá ver se eu tô lá na esquina.” São outras representações para a necessidade de se dar funcionalidade ao tempo. A vagabundagem foi condenada quando as sociedades elevaram o paradigma do trabalho, do progresso e do lucro. A partir do século 17, a exclusão que encerraria, por exemplo, a loucura, em instituições totais, também excluiria do convívio social mais amplo os vagabundos, libertinos e portadores de doenças venéreas, cuja convivência, segundo Michel Foucault, estabeleceu um parentesco com culpas morais e sociais que ainda não se teria rompido.
Esbanjar tempo é a heresia do mundo superocupado que sabe bem representar os perigos da dissipação. Em Campo de sangue, romance da portuguesa Dulce Maria Cardoso — publicado em Portugal em 2002 e laureado com o Grande Prémio Acontece de Romance —, o tempo mal gasto é “material perigoso nas mãos de quem não o sabe utilizar” (pág. 29). Essa relação é oferecida facilmente ao leitor pela insistência com que o narrador afirma esse perigo e pelo fato de o romance fraturar o presente da narrativa com os antecedentes de um crime brutal para o qual são chamadas a testemunhar quatro mulheres que têm em comum apenas um homem. Assim, a mãe, a senhoria, a ex-mulher e a rapariga grávida esperam em uma saleta desconfortável, ao longo de todo o texto, para dividir, com avaliadores das condições mentais do homem que cometeu um assassinato, a sua ignorância a respeito do crime.
A mãe, com seu rosário, reza esquecida de qualquer amor pelo filho; a senhoria da pensão onde ele vivia, satisfeita pela exposição midiática com que o crime favoreceu a engorda de uma indenização, desvela-se no batom vermelho desmaiado que lhe vaza pela boca e pelos dentes; Eva (os leitores poderiam ter se beneficiado com um nome de primeira esposa menos óbvio) parece incomodada com o pouco prestígio que seu muito dinheiro tinha para poder passar à frente das outras no depoimento e a rapariga, paixão tardia deflagrada por um equívoco. Todas contra a mais jovem, que empina “a barriga volumosa (…) exagerada num corpo tão miúdo” (pág. 14). A cada capítulo de espera dessas mulheres, com as quais se assenta o leitor, saturado de referências bíblicas, o passado, a narração de encontros com elas.
Sobre o equívoco, talvez ele, mais que o tempo tão insistentemente danado no texto, seja a força motriz do crime. Em um dos rasgos do passado, quando o homem esperava Eva para receber os presentes do segundo casamento dela, cheques assinados, roupas novas, cartão e dinheiro, ele vê uma jovem. O homem vivia do dinheiro do marido de Eva porque havia desistido dos empregos que não fossem ficcionais. O encontro com a ex se deu, como outros, em um lugar recuado, pois ele e Eva “portavam-se como amantes” (pág. 15). Depois de se despedirem, violando a regra da clandestinidade com um beijo na boca em público, o homem saiu a caminhar e viu uma adolescente que estava na praia com a família. Ainda na companhia de Eva, tinha visto a mesma jovem aos beijos com o dono da esplanada. Só depois, porém, o homem parou a repará-la. Eva o tinha surpreendido a olhar para a jovem e tinha desnudado o ridículo da sua situação. “Tenho é pena de ti” (pág. 23). Assim, precavido, procurava disfarçar a excitação causada pela contemplação do corpo mal coberto com um biquíni cor de mel, pelo pezinho que sustinha uma corrente com um coração e pelo louro dos cabelos.
Toda a precaução, entretanto, deita-se por terra quando o homem se sente surpreendido pelo olhar dos pais da adolescente e, desviando-se do sítio em que ficava muito perto da família, sem prestar atenção à areia por onde caminhava descalço, pisa em cheio numa garrafa de vidro quebrada. Quem se apresenta a socorrê-lo é justamente a família da moça. No caminho para o hospital, ainda o desejo de olhar para trás, para o banco em que, velada pela mãe, senta em silêncio a menina, e a vergonha de mostrar o pé com imensas unhas sujas, esquecidas de tesoura. Dias depois, já restabelecido, o homem inicia a sua busca pela adolescente, corre toda a cidade, dirige-se ao camping em que a família passava férias quando os conheceu, e nada. Na verdade, a busca só se encerra quando o homem encontra uma “atriz” para a sua ficção de amor, outra moça loira, com ar desleixado, criança por pentear, que aceita as condições da representação.
No momento em que ele aceita o simulacro, quando o equívoco vira verdade, o homem se vê tomado pelo delírio que aos poucos põe em risco a integridade de suas mentiras inofensivas e cotidianas. Sim, o homem mentia a todos equilibradamente: à senhoria, que o julgava contador em uma grande empresa (e, para sustentar isso, ele era cumpridor dos horários comerciais); à mãe, que também o julgava bem empregado e a quem ele representava o papel de bom filho, a quem visitava em seu aniversário, carregado com presentes que ela desgostava; a Eva, que julgava que ele precisava dela; e à rapariga, simulacro da outra, para quem ele era um louco manso.
A mentira é uma opção consciente dentro da rede de ficções que marca as nossas práticas sociais. “Tenha um bom dia, como vai?” Nós transformamos “ficções sociais constantemente em fatos e os [vivemos] como tais, sem que o senso comum sequer desconfie desta situação” (Heidrun Krieger Olinto, em Literatura e cultura). A pergunta de Iser — “por que os seres humanos precisam de ficções?” — motivou a Teoria do Efeito Estético e evidenciou uma disposição humana básica que não se encerra nos estudos literários (João Cezar de Castro Rocha, em Literatura e cultura).
As mentiras do homem de Campo de sangue para a sua senhoria respondem aos ditames da ficcionalidade da própria pensão, simulacro de um lar para abandonados em geral, aposentados, loucos, pobres e outros hóspedes transitórios, espaço ameaçado de demolição. Em comum com as outras mentiras para Eva, para a mãe e para tantas pessoas, havia a opção consciente do personagem por atender ao que era esperado dele; o que não pode ser vivido como verdade, sê-lo-á como mentira. Quando elabora suas narrativas, o personagem atua em mundos que agitam a sua rotina de tempo dissipado e, às vezes, é feliz.
A paixão exige novas ficções, precisa de cenário — uma casa nova com tapete à entrada, e gestos largos de palco — passeios de mãos dadas e longos beijos sem discrição. As velhas mentiras brandas, feitas para agradar, de um tempo sem amor, se vêem assim em perigo. Como equilibrá-las? Sem nova argumentação, só, pois a moça cansa de um amor tão excessivo, o homem descobre a agressividade e o crime. Não pode vencer a busca, não pode achar a moça, mas pode tentar anular o poder daqueles que testemunham o seu fracasso real. Ameaça Eva, machuca seu braço, grita com a senhoria e se compraz com seu novo papel, a ficção do super-homem que perdeu Raskolnikov (de Crime e castigo) até a sua redenção, e que não pôde salvar Carolino e Sofia (de Aparição).
De volta à pensão, depois de mais uma procura infrutífera pela jovem, o homem a vê na sala de tevê da pensão. Ele a vê sem que ela lá estivesse, pois sentada na sala estava outro simulacro, uma jovem vizinha que aguardava a chegada dos repórteres que fariam uma matéria sobre a demolição de prédios antigos no bairro — “Aproximei-me, mas ela fez que não me reconheceu, faz sempre a mesma coisa (…) aproximei-me dela e percebi que ia fugir-me outra vez (…), foi então que lhe pedi o coração (…), eu chamei-a com jeitinho e ela veio, tinha escondido a faca (…). Ela assustou-se (…) não sei como não conheci mais cedo o medo que sou capaz de provocar, todos me olham doutra forma, sempre quis ser respeitado” (pág. 258). No depoimento da senhoria, ela afirmara que um pouco antes de conseguirem segurar o assassino, já era então tarde demais para a vítima, o homem, sem direito a um nome, ainda estava sobre o corpo da moça com a mão no peito aberto a procurar qualquer coisa que desse significado ao seu nada.
O caso tem grande repercussão. No exato momento do crime, havia jornalistas na pensão. “Depois de vários meses de investigação concluiu-se que o alegado homicida e a vítima do crime da pensão da avenida tinham um relacionamento amoroso há alguns anos” — nos jornais, a mentira em pele de verdade, a ficção que dá sentido aos apetites dos leitores de manchetes. Em nosso tempo, mais real que o objeto, a mercadoria ou o crime, só a imagem que ordena o desejo (Eugênio Bucci, em Civilização e Barbárie).
Falsa pista ou representação literária de um juízo, o perigo do tempo dissipado pelo personagem é o que mais ameaça o romance. “O tempo continuava à espera dele, ainda podia escolher tudo, ainda não tinha esbanjado o futuro” (pág. 96). O narrador é penetra na festa sem graça de aniversário da mãe e emite, neste e em outros exemplos que podem ser recolhidos ao longo do texto, julgamentos que têm a ver com a funcionalidade do tempo. “Tinha tempo para não se esquecer de nada, do número de telefone do hospital em que Eva trabalhava, inutilidades que lhe ocupavam a cabeça e o ajudavam a passar os dias” (pág. 122). O tempo de sobra aqui só é ocupado em “inutilidades”, é quase a celebração dos perigos da oficina onde o diabo se assanha…
No romance, a voz narrativa compartilha espaço com o pensamento dos personagens, em pleno discurso indireto-livre. Este procedimento dividiria o peso do juízo do narrador com os “atores”, como no trecho “a pobreza é uma doença difícil de curar a partir de certa idade” (pág. 120), em que a voz do narrador poderia bem representar o pensamento de Eva. Entretanto, só de forma demiúrgica o homem poderia fazer um dueto com o narrador quando ele insiste em que “o tempo por gastar é realmente perigoso”, muito antes da desgraça do primeiro.
Campo de sangue condena o vagabundo à loucura e ao assassínio. O romance representa literariamente a exclusão do homem que não se mantém, que não procura trabalho, que mente para todo mundo, que se apaixona por adolescentes, que se equivoca e que é ridículo aos outros. Mas não era suficiente, o desconcerto viraria crime. Campo de sangue representa talvez a nossa prisão, a impossibilidade de viver como se quer, de dizer o que vem na telha, de amar quem o olhar escolher e de ser ridículo muitas vezes.
Filipe Flexa, no Jornal do Brasil, escrever ter sentido na escrita de Campo de sangue um sabor de Saramago. Eu não. Para além de parágrafos, vírgulas e frases finais, há uma voz que não se aproveita do senso comum para transformá-lo. A voz narrativa do romance de Dulce pode representar os valores do senso comum, e esta é outra possibilidade de atribuir um significado menos preconceituoso a tantos juízos, dividindo seu peso com uma coletividade. Mas se não subverte o repetido, endossa-o?
Internado no hospício, o homem pode descobrir um dia diferente, quem sabe (lembremo-nos do mesmo Raskolnikov já citado): “Tem sono. Fecha os olhos. Adormece sem esperar que a aranha mate a mosca. Amanhã é outro dia e com sorte um dia diferente” (pág. 264); “naquela noite sentia-se incapaz de pensar demasiado, de concentrar o pensamento num objeto qualquer, de resolver um problema com conhecimento de causa. Só experimentava sensações, a vida substituíra o raciocínio” (Crime e Castigo). No espaço de exclusão do delírio que para se valer precisa subscrever a periculosidade da loucura, a possibilidade de um dia diferente é, apesar de tudo, uma bela imagem.
Mas se o tempo de sobra é motivo de vergonha hoje, para quem amarga o desemprego ou para quem tem de mostrar serviço para os vigias de cartão de ponto, há rasuras… A malandragem já se riu do esforço e, no seu tempo livre, só de namoros feito, apresentou as alternativas — é ruim da cabeça ou doente do pé.