Tediosa floresta

“A Amazônia misteriosa”, de Gastão Cruls, é um romance inverossímil e repleto de figuras despersonalizadas
Gastão Cruls, autor de “A Amazônia misteriosa”
01/05/2014

Agrippino Grieco escreveu que o romance A Amazônia misteriosa, de Gastão Cruls, lançado em 1925, é um “livro de sólida ossatura, com algo de Kipling, Conrad e Chadourne”. O elogio, bem mais longo, publicado em Evolução da prosa brasileira, de 1932, não é apenas imprudente, mas revela o lado desagradável, aético, dos sistemas literários, incluindo o brasileiro, pois Grieco e Cruls eram sócios, proprietários da Editora Ariel, criada em 1930. Essa construção artificial de celebridades, ainda que empolgue as panelinhas e, talvez, facilite temporariamente a venda dos livros, dura, entretanto, como dizem os espanhóis, un rato.

De qualquer maneira, não importa que o louvor exagerado prenuncie um romance repleto de problemas ou deficiências — é preciso ir além da desconfiança, gastar alguns reais, abrir o livro e conceder ao escritor a oportunidade de comprovar que seu amigo não foi desleal com os possíveis leitores.

Ética e personagens
Em A Amazônia misteriosa, Cruls tenta recontar, sob o ponto de vista tupiniquim, o romance de ficção científica A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, publicado em 1896, obra de caráter darwinista, na qual o autor discute os limites éticos da manipulação biológica de animais e seres humanos — prática que hoje recebe o nome eufemístico de “engenharia genética”.

Depois de se perder durante uma caçada, o narrador de Cruls acaba isolado em algum ponto da Hileia, numa tribo composta unicamente de mulheres, as mitológicas amazonas que o explorador espanhol Francisco de Orellana afirmou ter visto em 1541. Ali, depara-se com uma utopia silvícola, na qual, a depender da idade, cada mulher desempenha uma função predeterminada. Tudo é perfeito: da arquitetura — “habitações bem construídas, ruas regulares, estradas largas, e até o arremedo de praças e jardins, onde muitas árvores deveriam ter sido plantadas pela mão do homem” — às relações sociais, estratificadas e plenas daquele desprendimento feliz que, segundo os socialistas, deveríamos sentir enquanto o garrote do Estado nos estrangula.

Tal lugar paradisíaco não teria nascido, contudo, sem uma história sanguínea: no século 16, as predecessoras das amazonas, ao saberem da prisão do grande inca Atahualpa e da vitória dos conquistadores espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, decepcionadas com a derrota sofrida pelos maridos, mataram os filhos de sexo masculino e fugiram pela “vertente oriental dos Andes”, vindo cair em plena Amazônia. Apesar do desprezo que, no romance, alimentam em relação aos homens, uma vez por ano, na “Festa das Pedras-Verdes”, recebem os varões para um rito que, depois de algumas horas, se transforma numa orgia carnavalesca, afinal essas feministas ainda obedecem à libido ou à lei da preservação da espécie.

É nesse lugar idílico que o narrador se depara com Hartmann, médico alemão que, a princípio, esconde os motivos de estar ali há oito anos. No entanto, após rápida investigação, nosso protagonista descobre as experiências que ele realiza com crianças e adultos, dando vida a mutações excêntricas ou, prática mais simples, alterando, por meio de uma lobotomia específica, os centros cerebrais da fala e da memória.

Apesar das aberrações criadas pelos experimentos — o que pode nascer, por exemplo, de um óvulo humano fecundado com o esperma do macaco-aranha? —, a discussão ética surge frágil, pífia, pois o narrador-protagonista não passa de um pusilânime que deseja ficar bem com todos:

Achei de bom alvitre mostrar-me de perfeito acordo com o seu ponto de vista, e, dali por diante, já de regresso, mas sempre conversando animadamente, só tive aplausos para os seus trabalhos. Aliás, esses trabalhos eram de tal relevância e tão grandes e inesperadas as novas aquisições trazidas à ciência que, tirante a desumanidade dos processos experimentais, não haveria quem os deixasse de elogiar. Elogiei-os, portanto, na certeza de que não comprometia de todo a minha sinceridade e com a esperança de, assim, mais fácil, talvez, me fosse a liberdade.

Não há espaço para crises ou conflitos no romance. O protagonista se refestela em seus divertimentos bucólicos, a possível discussão ética é jogada no limbo e os personagens, hábeis contemporizadores, simplesmente seguem a vida, cada um divertindo-se em seu universo particular — enquanto as corajosas amazonas caçam, pescam, plantam e se comportam de forma servil.

O desejo de fuga desse paraíso inverossímil surge quando a esposa de Hartmann, Rosina, que se torna amante do narrador, praticamente impõe a decisão, pois o médico planeja usá-la em suas experiências. Mesmo a relação adúltera é descrita de forma inconsistente, superficial — e o máximo de emoção que o escritor consegue oferecer são parágrafos cujo estilo remonta ao século 19:

Filtrava-me no sangue a exultação da natureza ambiente e as minhas narinas arfavam sentindo um aroma delicioso. Seria o perfume do seu corpo ou a fragrância das corolas recém-abertas, da erva tenra e dos frutos maduros? E os nossos lábios se colaram num longo beijo…

Um só personagem tem vida própria, individualidade, e se expressa de maneira natural: Pacatuba, fiel companheiro do narrador, nordestino eternamente arrependido da viagem e saudoso de sua gente. Esperto, logo percebe o mal que se esconde sob a aparência solícita de Hartmann; e quando é informado das experiências, conclui:

— Eu não lhe dizia que aquele não-sei-que-diga tinha de ser muito miserável? Aqueles olhos de xexéu não enganam. Lá nos meus mundos a gente já sabe, tipo de olho azul não presta, tem temperamento muito sanguinário. Seu doutor entende como é? Não presta não…

E, como eu o interpelasse, a respeito do que pensava da nossa situação, caso tivéssemos mesmo de ficar prisioneiros, ele respondeu-me:

— Que é que eu penso? Eu não penso nada… — E, depois de uma ligeira pausa em que parecia querer se recordar de alguma coisa: — Olhe! E recitou-me:

A desgraça do pau verde

É ter um seco encostado,

Vem o fogo, dá no seco,

E fica o verde queimado.

Logo a seguir, inquiriu-me: — Seu doutor entende como é? — Fiz que não com a cabeça, e ele concluiu: — Pois é. O pau verde sou eu… O doutor foi vigiar as bruxarias desses barbaças e agora paga o justo pelo pecador.

Movido por incrível senso prático, medroso, bem-humorado, parcial, religioso, fiel ao poder das rezas e das mezinhas, Pacatuba é o único homem — no sentido de ter sentimentos, fraquezas, perplexidades, etc. — em todo o romance.

Linguagem
O que não seria problema nas mãos de um bom escritor transforma-se, na pena de Gastão Cruls, em obstáculo intransponível: o livro foi escrito sem que ele conhecesse o Norte do país, a não ser “através de numerosa e selecionada bibliografia”, diz a nota da Editora José Olympio; seu primeiro contato com a Amazônia só ocorre em 1928, quando acompanha a expedição do Marechal Rondon à fronteira do Brasil com a Guiana Holandesa, atual Suriname.

Seu apego à bibliografia — e não à sua capacidade de fantasiar; o desejo de escrever uma obra que fosse réplica da floresta — e não exercício de verossimilhança; a aflição evidente de transpor para o livro cada mínimo elemento amazônico, atribuindo-lhe seu nome específico; tudo contribui para a criação de uma narrativa artificial, que obriga o leitor ao exercício de consultar, página a página, o “Elucidário”, formado por cerca de 250 palavras. Usar a expressão “o lago estava saru”, por exemplo, é condenar a um vazio mental o leitor que não domina os regionalismos.

Mas, fosse este o único problema do romance, Agrippino Grieco ainda poderia dizer que Cruls se agarra desesperadamente à barra da calça de Joseph Conrad, cujas narrativas utilizam, inúmeras vezes, o vocabulário náutico.

Na verdade, Cruls não consegue ir além do preciosismo. Tenta repetir o que Euclides da Cunha já fizera, mas só consegue criar retórica destituída de dramaticidade, mero discurso ostentatório:

Sumaumeiras gigantescas, tocaris hercúleos, majestosos cedros, abrindo as ramas no alto, faziam o travejamento desse maciço zimbório de verdura, que transverberava claridade vaga, deixando o recesso da mata num crepúsculo esverdeado. Aí, numa luta surda mas de todos os instantes, comprimia-se, amotinada, a legião sem fim dos outros vegetais. Árvores portentosas confundindo raízes e sapopemas na difícil conquista do solo; troncos seculares abarcados por cipós constritores; copagens grenhudas entretecidas de monstruosas trepadeiras; forquilhas cravejadas de caraguatás e parasitas; moitas espessas de palmeiras; tufos sombrios de folhagem; estolhos aculeados e refilhos gavinhentos rojando pelo chão, unhando a galharia, engrimpando-se nos ramos; hastes colubreantes, volutas sarmentosas e redouças virentes — tudo aquilo revolto, emaranhado, inóspito, mas borbulhando viço e regurgitante de seiva, na “frescura eterna da vida orgânica”, subia às avançadas para o azul, num mesmo anseio de luz.

É o discurso de quem não viu e, pior, não consegue imaginar, agarrando-se aos adjetivos, tábua de salvação do escritor medíocre.

No Capítulo 9, o problema se agiganta. O canto do uirapuru é formado de “vocalizações argênteas, notas de cítara e violino, harpejos, estridências de sistro e suavidades de flauta, o chocalhar de muitos guizos…”. O pássaro é “cantor mágico” e “instrumentista incomparável”; a melodia, “acariciadora e envolvente”; e, depois de alguns segundos de silêncio, “as escalas recomeçavam cálidas, vivas, ondulantes”. Quando o uirapuru se afasta, os “trinados” ficam “cada vez mais flébeis e amortecidos pela distância, até que os sons já surdinavam ao longe, numa toadilha quase imperceptível”. Mas não chegamos ao fim. Pouco depois, o narrador se lembrará do pássaro, “sentindo aos ouvidos, num eco inesquecível, as dulcíloquas melodias do gorjeador incomparável”.

“Dulcíloquas” é o tipo de vocábulo que Cruls aprecia. Ele diz: “nos dessedentamos”; “aos rescaldos do licor ebriático”; “orgulho do mais exigente ginasiarca”; “viajante êxul”; “garridice dos seus trajes”; “inimitável lavor artístico”. Certo personagem não caiu, simplesmente, mas “cambalhotou precípite no rio”. E a lista é interminável: “os índios lançavam mão desse alvitre”; “insetos bezoavam no ar”; “ao bochorno do meio-dia”; “belo animal de pelo cetinoso e largamente ocelado de negro”; “fauce hiante”…

Seu amor pelos arcaísmos soma-se à afetação exagerada para criar parágrafos em que renascem os piores momentos de Alencar:

Estava uma manhã esplêndida, de sol muito claro e céu azul, sem nuvens. No ar luminoso, cortado de voos e regorjeios, pairava o imenso perfume da mata próxima, a luxuriar na gala de seus verdes mais vivos. Uma brisa ligeira fazia estremecer a fronde dos cajueiros vigorosos, onde concertavam de súcia, numa traquinada azoinante, os grandes bandos de araçaris, anambés e pipiras que, de momento a momento, acudiam aos seus ramos. Ouvia-se também o rechino de algumas cigarras; e, pelos sibilos e assobios, macacos deviam folgar nas fruteiras altas.

Agrippino
No início do romance, o narrador salienta que é preciso conhecer a “imensidade da Amazônia para poder avaliar a mesquinhez ridícula que assumem as cartas geográficas, quando, diante delas, procuramos refazer mentalmente algum trecho já percorrido”. A Amazônia misteriosa sofre de mal semelhante: representação imperfeita, esta mimese da floresta não é só inverossímil e repleta de figuras despersonalizadas, mas foi construída numa escala enfadonha, tediosa — e isso é pior do que saber que Agrippino Grieco realmente exagerou.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Paulo Setúbal e A marquesa de Santos.

Gastão Luís Cruls
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 4 de abril de 1888, e faleceu na mesma cidade, em 7 de junho de 1959. Diplomou-se pela Faculdade de Medicina do Rio, exercendo posteriormente funções de médico sanitarista no Ministério da Educação e Saúde. Publicou seus primeiros contos na Revista do Brasil e por volta de 1917 frequentou o círculo de Antônio Torres, de quem se tornou grande amigo. De 1931 a 1938, dirige o Boletim de Ariel, revista bibliográfica cujo redator-chefe era Agrippino Grieco. No âmbito da ficção, deixou: Coivara (contos, 1920); Ao embalo da rede (contos, 1923); Elisa e Helena (1927, romance); A criação e o criador (1928, romance); Vertigem (1934, romance); História puxa história (1938, contos); e De pai a filho (1954, romance).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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