Tecelã de mitos

Em “Prova”, a poeta Rosane Carneiro percorre corpos e ruas para descortinar um desejo permanente
Rosane Carneiro reveste o ordinário com o sagrado
01/01/2005

O erotismo pode ser vivenciado num livro de páginas em branco, em que resgatamos a plenitude dos corpos inscrevendo-lhe os versos que nós, leitores, jamais ousaríamos pronunciar, às seis da tarde, em plena metrópole. Assim podemos “traduzir” a experiência de Ave-Maria, poema que abre Prova, segundo livro de Rosane Carneiro. Somos, de cara, convocados ao livro por uma prece, ou por um torneio metonímico que nos rouba da razão urbana para o terreno “sagrado” do texto, veículo inconfessável e perene, indício de uma breve suspensão do tempo retórico, este tempo em que o prazer do contato encontra-se enclausurado pelo pensamento, como dizem os versos: “a face interna dos homens/ entardece em filosofias”.

Pouco a pouco, atendendo ao chamado da prece, vamos descortinando o corpo das ruas e do eu narrativo, este sim, um dos mais ricos recursos estilísticos de Prova. Cidade e corpo que se procuram, mas fadados à perda do estágio mítico: esta vida, imaterial, que sobrepaira qual a sombra do gigante de Swift, capturado pelos liliputianos personagens da sátira urbana. Meditação azul reforça a idéia da tentativa de se buscar pela natureza os Diálogos com Leucó, o último testemunho de Cesare Pavese sobre a perdida mitologia do amor, da morte e da dor: “Nas pedras em tranças/ alcançar/ o sentido/ da praia estendida sobre o vão/ Lençol de perguntas/ rebatendo na face/ — Para onde? Para onde?”. Rosane, nestes versos, não procura resgatar a linguagem do mar, das ondas que rebatem perguntas?

O mar de Homero e seus rios podiam sentir a cólera e a tristeza dos homens em guerra. Os afrescos azuis de Rosane, postais líquidos da cidade carioca, também sentem o frio contraponto da filosofia e de determinada arquitetura, que, ao invés de se inserir como mais uma nota ao ritmo das formas sensuais e femininas da natureza, desenha uma fissura na paisagem: os prédios monolíticos, silêncios de concreto e vidro. Mas, por outro lado, as luzes nos arcos da Lapa, a igreja da Glória, o Cristo Redentor, são todos símbolos icônicos que se mesclam ao desejo, à poesia, e que se descortinam pelos versos de Rosane.

“Canetas vazar-me-ão os olhos para que somente escreva visões de dentro, espaços sísmicos entre a mente e o coração abarrotado de esferas.” Ecos de Rimbaud? Para se fazer visionário, ou, vislumbrar a vida em meio ao caos urbano, é necessário um desregramento de todos os sentidos.

Há o encontro entre a mulher do “vestido roxo decotado”, de “olhos atormentados do ontem, da bebida, da ansiedade”, e a freira, numa calçada imaginária do Rio de Janeiro: “Cálido contato, eu sei o que é ser assim, irmã”. A religiosa e a poeta dão-se as mãos em parceria do mesmo ofício: o de revestir o ordinário com o sagrado.

Sagradas também são as montanhas: “Minhas palavras são grandes como as montanhas”. O corcovado, o morro da Urca, a pedra da Gávea dialogam a cada instante com olhos que sabem ler na geografia as páginas do livro oculto dos enamorados pela palavra: despir a fácies em clausura do idílico, afastar Tanatos por um ato de afeto.

Em Lanternas vermelhas, vagões do metrô se metamorfoseiam em dragão chinês. Como não escapar ao rito cotidiano, à ansiada busca pelo ordinário? Caminho este que poderia nos recuperar do tempo previsível e mecânico do engenho ocidental, e que Rosane, recriando-se “larva apaixonada”, se deixa ser engolida e aos pensamentos, em gozo de amor intransitivo.

“O AMOR, QUERIDO, É LIBERTÁRIO como uma multidão de campânulas ao vento, as damas-de-honra da chuva com o vão, na nave da aurora, na morte da hora atrás, no estertor do tempo, tragado pelos campos bandeiras de Deus”. Rosane Carneiro, como sáfica deidade, percorre o tênue caminho que hoje ainda resta a Eros. Tecelã de mitos, nos dá o testemunho de que a tentativa de ultrapassar a distância que separa os amantes, a cidade do peregrino, ou a página do pensamento é uma só: um gesto de Proteu — transformar-se pelo olhar e pela palavra, desafio livre e possível.

Prova
Rosane Carneiro
Ibis Libris
80 págs.
Leonardo Vieira de Almeida

É escritor, mestre em literatura brasileira e tradutor. Autor do livro de contos Os que estão aí (2002).

Rascunho