Teatro é um negócio engraçado. É como se um maluco realizasse cinema mudo hoje. Teatro é anacrônico. E isso não é uma crítica. O que muita gente não sabe é que não se pode ver uma encenação como se assiste a um filme. Ou à televisão. É óbvio, mas ninguém diz: teatro tem ritmo e linguagem próprios. É preciso tempo e horas de exposição a peças para se entender a dinâmica do palco. Para entender a diferença entre o universo de Shakespeare e o de Clint Eastwood, um bom exercício é ver uma mesma partida de futebol na tevê (põe o VCR para gravar) e in loco, no estádio. A ação do jogo muda quando entra a edição, os replays e ângulos múltiplos. A poucos metros do campo, é você que decide para onde (ou para quem) olhar, quanto tempo olhar, etc. Depois dessa experiência, um sujeito criado com telas de projeção e tubos de imagem pode começar a entender qual é a do teatro.
Se ver uma peça não é simples como se pode imaginar, ler consegue ser ainda pior. Outra coisa óbvia que ninguém diz: não se pode abordar um texto teatral como se fosse ler um romance ou conto ou poesia. Para quem acha teatro um suplício, encarar o texto que dá origem ao espetáculo pode ser tão doloroso quanto martelar um prego no próprio umbigo e depois arrancá-lo com aquela parte em “V” do martelo.
OK . O sujeito nunca leu uma peça de teatro na vida, mas sempre ouviu falar que Samuel Beckett (1906-1989), que venceu o Nobel de Literatura e tudo, é um tremendo escritor. Um messias para o povo artista. Na boa vontade, ele decide então ler a tão comentada Esperando Godot, que a CosacNaify acaba de lançar em nova tradução de Fábio de Souza Andrade. Sabe como são as edições da CosacNaify, coisa de primeira, têm apresentações, prefácios, posfácios, fotos, apêndices, sugestões de leitura, capa dura e sobrecapa (com reprodução da obra de um Avigdor Arikha, parte do acervo do Centro Georges Pompidou de Paris). É bem essa edição que o sujeito compra. Quer começar bem, vai logo na obra mais comentada do autor.
Na orelha, fica sabendo que Esperando Godot “se afirmou como divisor de águas do teatro do século 20”, que os personagens principais são “uma versão sinistra” de O Gordo e o Magro e, mais importante, que o personagem-título Godot “prima por não comparecer”. Mesmo sem se dar conta, o sujeito sabe tudo o que precisa saber sobre a história. Se perseverar na leitura do texto, não vai descobrir nada diferente em relação à sinopse do que está escrito na orelha. São dois atos de Vladimir e Estragon esperando Godot, que não chega. Está certo que lá pelas tantas, aparecem Pozzo e o encoleirado Lucky. O segundo é uma múmia que desembesta a falar mais para o final do primeiro ato. E não diz coisa com coisa. Mas eles são distração. O que importa é outra coisa.
O prefácio do tradutor procura explicar a importância de Esperando Godot para o mundo (do teatro e fora dele) e o contexto em que foi concebida. No apêndice, além de fotos de algumas montagens famosas, incluindo a de Roger Blin, palpitada por Beckett ele-mesmo, há inúmeros comentários sobre críticos teatrais que sentiram o impacto à época (na primeira metade dos anos 50) e depois. As interpretações são inversamente proporcionais ao conteúdo do texto. Ao minimalismo da história se seguiu uma miríade de porquês e talvezes (se é que o plural de talvez existe). Não pode ser uma referência a Deus (God). Se for, parece bem óbvia. Seria uma analogia para a situação que Beckett experimentou durante a Segunda Guerra Mundial. Irlandês refugiado na França, trabalhou colhendo uvas esperando o fim do conflito. Mas, no instante em que lançam tal interpretação, críticos se apressam em dizer que não se pode “limitar” o sentido a apenas isso. Sim, os sentidos são vários. E nenhum. Beckett era esperto o suficiente para não explicar suas escolhas.
A postura diante da vida muda de uma pessoa para outra, mas não existe bípede racional que não conheça a sensação desconfortável de esperar alguém ou alguma coisa. Há quem se mate e quem enlouqueça submetido a uma condição dessas — o popular stand by. “Então eu fico em stand by”, dizem agora. Da mesma forma Vladimir e Estragon. Existem leituras que falam de Esperando Godot como uma peça que sintetiza a atualidade. Numa interpretação ampla e bastante difundida, a obra beckettiana seria uma síntese da condição humana. Viver é esperar. Tudo depende do que se faz durante o tempo de espera. Em uma fila de banco, você pode levar um livro ou se entediar com o olhar perdido ora para o assoalho, ora para as paredes. Quando escreveu Godot, Beckett deveria estar numa fase assoalho e paredes.
Outra obviedade: com o livro em mãos, o esforço de leitura é o de criar mentalmente uma montagem própria (as rubricas de Beckett ajudam muito). Daí vem uma sensação de vazio. A edição da CosacNaify fala sobre todas as adaptações importantes que ocuparam os palcos franceses, ingleses, americanos e até bósnio, e o sujeito com o livro precisa se contentar com a versão em texto. É como no cinema. Você pode ter acesso ao roteiro, mas, se não viu o filme, não dá para entrar na conversa. Diferente do cinema, o teatro é esse regalo de poucos. Quanto mais obscura ou remota for a montagem, mais incensada ela será — até hoje defendem que a melhor versão na história do teatro de Rei Lear, de Shakespeare, foi a de John Gielgud nos anos 80, da qual não se vê nem fotos. Se essa percepção sustentada por muitos se confirma, Samuel Beckett seria um gênio do teatro acessível somente aos seus contemporâneos.
Hoje, resta se contentar com as idéias expressas no texto.