Teatro de maravilhas

Algumas imagens dos SERMÕES do padre Antonio Vieira
Ilustração: Marco Jacobsen
01/10/2006

Em uma das curiosas anotações de seus Cahiers, Valéry se indaga se haveria a possibilidade de criarmos uma estrutura que pudesse sintetizar em si a completa reversibilidade entre determinados conteúdos e continentes. Segundo ele, tal estrutura teria que nos mostrar a conexão possível entre as dependências recíprocas que fazem de um conteúdo um continente e de um continente um conteúdo, já que estamos em um mundo que está em nós, encerrados no que encerramos, produtos de tudo que entretemos entre as mãos.

Se é possível fazer um recuo drástico, podemos encontrar um tipo de preocupação semelhante, porém levada ao mais alto grau de paroxismo, engenhosidade e jogos de artifícios, no Sermão de Nossa Senhora do O, do padre Antonio Vieira, pregado na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia, em 1640. Talvez não seja exagerado dizer que esta é uma das melhores peças em prosa da língua portuguesa. Conta com uma teia argumentativa muito rica e complexa, toda ela centralizada na figura do círculo, que contempla diversos sentidos e é passível de muitas associações. Desde as mais imediatas e previsíveis, como a semelhança entre esse símbolo e os Os da Senhora na expectação do parto, até outras pouco plausíveis e até mesmo mirabolantes, como a sua comparação com a imagem do ventre divino de Maria na concepção do Verbo Encarnado.

Vieira o inicia com considerações em torno da perfeição do círculo, o objeto mais bem-acabado dentre os quais a natureza já produziu. Em seguida expõe sua tese, defendida ao longo de toda a obra: assim como o círculo do ventre virginal, na concepção do Verbo, foi um O que compreendeu o imenso que é Deus, também o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro círculo que compreendeu o eterno. Passa então a armar uma série de relações entre esses elementos. Diz-nos do milagre que é a concepção da virgem, pois sendo Deus imenso, um círculo cujus centrum est ubique, circunferentia nusquam, ou seja, cujo centro está em todas as partes e a circunferência em parte alguma, frase geralmente atribuída a Pascal e a Nicolau de Cusa, mas que, na verdade, já tem variantes anônimas desde os primeiros padres da Igreja.

Aquele que está ao mesmo tempo dentro e fora do mundo, lhe é transcendente e imanente ao mesmo tempo, como poderia o útero materno de Maria comportá-lo, senão por um milagre? Como, se o mundo está para Deus assim como o mar para o dilúvio? O milagre é ter existido um imenso maior que Deus, e por isso imensíssimo, argumenta Vieira, e ter o próprio Deus podido se deixar cercar, ele que não pode ser apenas conteúdo sem ser continente. Assim chega Vieira ao silogismo (note-se: ele também circular) ternário, aristotélico: o círculo criado que cerca o mundo é o céu, o Incriado que cerca o céu é Deus e o círculo imensíssimo que cercou esse Deus foi Maria.

Na parte IV do Sermão, Vieira nos remete a outros aspectos de sua tese. Explica-nos que Deus, quando falou a João, não o fez em hebraico, sua língua materna, mas em grego, pois só o grego tem a circularidade do alfa ao ômega e termina, por conseguinte, com essa letra, cujo formato é justamente circular. Expõe-nos a Astronomia de Manílio, segundo a qual quem nasce sob o signo de Virgem tem tanta fluência e graça no escrever que, para este, uma letra conta como uma palavra. Cristo nasceu sob o signo de Virgem, e herdou do Pai o Verbo, a suma palavra sobre a terra, e da mãe o O: ambos, palavra e letra, coincidindo numa mesma essência.

Inspirado nos egípcios e caldeus, que representavam a eternidade por um círculo, Vieira especula: qual a relação possível entre o O do desejo da Senhora e a eternidade? E, se há relação, como explicar a eternidade desse desejo circunscrito à duração de nove meses, da concepção ao parto? Basta que desconsideremos o tempo linear, e pensemos em um tempo puramente qualitativo. Não importa a duração, mas a intensidade. Não há desejo que, sendo grande, não traga também em si algo de eterno — vaticina. E, para corroborar sua hipótese, toma como exemplo a carruagem de Ezequiel, emblema da Virgem, cujas rodas duplas simbolizam o tempo e a eternidade: a roda da eternidade é imensa e a do tempo pequena, e, no entanto, a roda do tempo contém a da eternidade. Por quê? Porque como for a vida terrena de cada um assim será sua vida eterna. O tempo de gestação de Maria foi breve na duração, mas eterno no desejo.

O desejo de Maria multiplicou infinitamente o tempo finito da gestação, e assim o O se associa ao zero e a seu valor aritmético progressivo. E eis que Vieira nos coroa com a bela metáfora da pedra (Cristo) que, lançada ao mar (Maria), produz círculos concêntricos, proporcionalmente maiores quanto mais distantes de seu centro. O mar se turva, perturbado. Quando se acalma, os círculos dos Os de Maria começam a se formar em seu coração, e a crescer e multiplicar à proporção de seu amor. O desejo cresceu assim em proporção ao amor, e o tempo em proporção ao desejo. Nesse ímpeto progressivo Vieira nos diz que, quanto mais próximo está o objeto de nosso desejo, tanto mais o desejamos. Assim foi a história humana: nos tempos de Adão, os momentos eram dias; nos de Abraão, os dias eram anos e nos de David, os anos eram eternidades, pois cada um deles estava, respectivamente, mais próximo da vinda do Salvador, e por isso se lhes alongava cada vez mais o tempo à medida do desejo da revelação.

Mas, podemos indagar, qual o motivo do desejo de Maria? Ela já não trazia em si o objeto querido? Então Vieira esboça sucintamente uma ética relacionada às categorias temporais. Diz-nos que o bem, o supremo bem, se manifesta de três maneiras possíveis em relação ao sujeito: se é presente, causa gosto; se é passado, causa saudade e se é futuro, causa desejo. O filho que Maria trazia dentro de si, por não se dar à vista, era em verdade uma ausência; por trazê-lo em si, em verdade não o possuía, pois só possuímos o que podemos apartar de nós. Vieira exemplifica com o mito de Narciso, que nunca pôde ter a própria beleza senão espelhada e alheia. Por conseguinte, comenta a passagem da Bíblia na qual São João diz que Cristo estava junto ao Pai, não nele.

A justificativa dessa aparente heresia está no fato de Deus ser sumamente bom e infinitamente comunicável. Só pode, portanto, se comunicar infinitamente com um seu igual. E por ser sumamente beato, é indisposto à solidão, o que lhe exige a companhia de alguém diferente dele. Nisso reside a unidade e a distinção entre o Pai e o Filho. Ora, o mesmo ocorre com Maria que, já tendo o filho de Deus em si, enseja tê-lo consigo. Vieira faz uma pequena digressão sobre o significado da hóstia e o seu ritual, estabelecendo algumas homologias entre Maria e os fiéis que trazem, cada um a seu modo, Cristo em si e, cada um a seu modo, anseia tê-lo consigo, dando por terminada a pregação.

Múltiplas referências
O que mais nos impr     essiona nesse sermão é a maneira vertiginosa de Vieira expor seus argumentos, multiplicar as referências e comparações ao seu primeiro objeto, o círculo. Este funciona como mote, ou cânone musical em torno do qual outros elementos vêm se somar, como na arte da fuga, estabelecer contrastes, jogos e depois sumir, ou reaparecer sob outra forma ou sentido. No entanto, por mais esdrúxulas que nos pareçam às vezes suas comparações, em nenhum momento ele perde o eixo do pensamento. Ficamos assim presos à própria circularidade de seu discurso, que oscila entre a incorporação de informações novas, ainda não marcadas no texto, e uma espécie curiosa de retorno a um mesmo, à matriz de onde ele deriva, por contigüidade, todas as demais idéias e dispositivos da sua composição.

Essa maneira engenhosa de amarrar os lugares do discurso a partir daquilo que a arte retórica poderia chamar de derivatio ad nauseam e de técnica de disseminação e colheita, que tem por objetivo multiplicar os referentes mantendo um único ponto de vista, já está devidamente exposta no Sermão da Sexagésima, quando compara o sermão a uma árvore. Assim como a árvore, o sermão tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem varas, tem flores, tem frutos. Há de ter raízes fortes e sólidas, porque fundado no Evangelho. Há de ter um tronco, porque abrange um só assunto e trata de uma só matéria. Deste tronco hão de sair diversos ramos, já que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuações dela. Estes ramos não hão de ser secos, mas cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios. Há de ter flores, que são as sentenças. E por remate de tudo há de ter frutos, já que é o fruto o fim a que se pretende o sermão.

É curioso notar como essa partição do sermão, inspirada na metáfora da árvore, coincide quase que literalmente com as clássicas partições da arte retórica, balizada pelos antigos: invenção, memória, elocução, disposição e ação. Invenção que é o tema, o motivo, a matéria de que tratará o sermão, sempre colhido no Evangelho. Memória que é a faculdade que o orador mobilizará para fazer presente em sua oratória esses temas. Elocução, porque é aquela que diz respeito à estrutura maior da obra sacra, composição, porque discerne e organiza as partes menores desta mesma peça: a fatura de suas frases, palavras, ordem, sentenças e vocábulos. E ação: aquilo que o sermão produzirá no fiel, mobilizando sua paixão em consonância com a paixão e o sacrifício de Cristo, dilatando e fortalecendo a fé e, com ela, o império. Raiz, tronco, galhos, folhas e frutos.

No caso do Sermão de Nossa Senhora do O a raiz é igualmente o Evangelho. O tronco é o círculo, eixo do discurso. Os ramos, as várias associações a que aquela figura geométrica é submetida: os Os do desejo de Maria, o eterno caldeu e egípcio, a astronomia de Manílio, o ventre da virgem, Deus, o mundo, a aritmética, e por aí afora. As varas, as sentenças morais a respeito do rito da hóstia. As flores são as palavras e o fruto é a conseqüência final da pregação para o ouvinte ou o leitor. Entretanto, esse sermão tem uma peculiaridade, compartilhada com muitos outros sermões de Vieira, que é a de se ater especialmente ao tronco e seus desdobramentos, e neles mirar seu foco e atenção. Quando isso ocorre, notamos o interesse irrestrito de Vieira pela capacidade do delectare, de deleitar o ouvinte por meio de uma ornamentação frondosa, cuja função muitas vezes não vai além da celebração e da festividade, já que o sermão pertence ao gênero epidítico, aquele que visa mais o prazer do ouvinte do que a sua instrução.

A alegoria do círculo remonta a tempos imemoriais, quase sempre ligada a categorias metafísicas, como Deus, eternidade, tempo, infinito ou então a grandezas naturais, como o cosmos, o mundo, o universo, entre outras. Para os cabalistas, o círculo, quando inscrito em um quadrado, representava a energia divina e incorruptível que se concentrava no interior da matéria, ícone que está presente até na famosíssima estrutura visual do homem de Leonardo da Vinci. Os alquimistas tomaram como divisa de sua ciência o Uroboros, a cobra que morde a própria cauda e significa em grego: aquilo que está em si mesmo. É interessante pensar que, na arte, o círculo é uma figura tipicamente ligada à proporção, à centralidade e ao volume, sendo produto da antiguidade e, só muito depois, dos séculos 15 e 16.

As primeiras cidades italianas renascentistas foram planejadas com base nessa figura: todas as suas partes eram eqüidistantes em relação a um centro, geralmente uma praça ou um parlamento. Baseado nessa constatação, o escritor cubano Severo Sarduy vai propor uma curiosa definição cosmológica e arquitetônica do século 17: é quando temos o advento e o subseqüente império da elipse, que é um círculo sem centro, ou, pelo menos, cujo centro se encontra deslocado, duplicado. Sarduy vai explicar todo o dinamismo da arte seiscentista, em oposição e derivação à arte da Renascença, apoiando-se nessa metáfora. E se as cidades perdem o seu centro gravitacional, em termos de urbanismo, as obras arquitetônicas perdem a sua centralidade. Na cosmologia, a figura perfeita do círculo cederá enfim à estrutura adelgaçada e elíptica pelas mãos de Johannes Kepler. Essa hipótese estrutural é interessante, e pode ser espraiada para todas as outras produções artísticas do século 17, onde se tem a deformação do círculo.

Vieira não entra na questão da elipse, já que isso introduziria um ruído em seu núcleo argumentativo. Atém-se a glosar o círculo e suas associações inusitadas. No que concerne à pregação, concentra sua atenção na racionalização e resolução do que nos pareça discorde em um futuro que é imediato, porque anunciado como uerbum, como palavra urdida pelo seu engenho poético. Porém, este mesmo futuro é longínquo no tempo, porque só advém sob a forma de verdade revelada, quando a res, as coisas e o estado de coisas terreno, coincidirem com a vontade da Providência, até então encoberta e acessível apenas aos sábios e aos místicos.

Para tanto, usa a alegoria hermenêutica e o método de correspondência bíblica, de espelhamento do Antigo no Novo Testamento, cujo precursor é o sábio alexandrino Fílon, do primeiro século de nossa era, em seu estudo do Gênesis. Assim, quanto mais próximo o bem-supremo Cristo era dos homens, tanto mais crescia, com o desejo de conhecê-lo, a dilação. Na antiguidade remota de Adão, diz-nos o orador que os momentos eram dias; na menos remota de Abraão, os dias eram anos. Já na mais próxima e vizinha, de David, os anos eram eternidades: Et annos aeternos in mente habui. Segundo o pregador tudo isso sucede segundo aquela regra natural, que tanto mais o bem desejado esteja vizinho, tanto maior é o desejo. E mais uma vez estamos diante da relação proporcional entre a eternidade e o desejo, a proximidade de vê-la consumada e a sua conseqüente amplificação para aquele que vive em função desta expectativa.

Problema central
Sob outro aspecto, há a presença forte da doutrina eucarística perpassando todos os seus sermões. E por meio dela chega-se a um problema central de todo o cristianismo: a Encarnação. Pois é basicamente dela que tratam os sermões, dos mais didáticos e festivos aos mais fortemente marcados pela doutrinação teológica e política: o milagre do Verbo e a visão unitiva na qual ele se fundamenta, ou seja, o enigma da unio mystica e uma visão integral do ser, tão cara à religião cristã. Ela será sempre a chave de acesso às matérias expostas e o eixo em torno do qual gravitarão todas as demais questões, sejam elas tratadas em gênero deliberativo, epidítico ou judiciário, como Aristóteles e Quintiliano prescrevem em relação à matéria de um orador. Além do sermão do O, esse aspecto eucarístico e a doutrina da encarnação podem ser vistos de maneira mais marcante na série que compõe os Sermões do Mandato e no Sermão do Santíssimo Sacramento, além de outros, esparsos, dedicadas a celebrar a figura da Virgem.

Nos Sermões do Mandato, Vieira concentra a pregação em um tema muito passível de mover o ânimo dos ouvintes e despertar a sua paixão: as finezas de Cristo. Fineza, no entanto, mais do que o adjetivo palaciano ou cortesão que atesta civilidade, argúcia de inteligência e delicadeza nos tratos, é um conceito teológico que tenta dar conta do grau de complexidade de um ato humano. Toda a pregação vai se desenvolver sobre a seguinte questão: foi maior fineza de Cristo, sendo Deus, ter sofrido como homem para redimir os homens ou, sendo homem, ter renunciado a seu poder divino e assim morrido humanamente, como morreu, para se igualar aos homens? O enunciado pode parecer tautológico, mas não é.

Há uma grande diferença entre a renúncia à divindade de quem já se sabe Deus e a entrega à mais completa humanidade, com tudo o que ela tem de falível e contingente, operando-se assim a cisão entre o homem e Deus em benefício do primeiro, não do segundo. Como Deus, Cristo morreu na cruz para redimir os homens. Como homem, Cristo morreu na cruz para ser finalmente homem. Entre a potência da conversão e aquele que se converte por meio da renúncia a seu antigo estado há uma longa discussão teológica. No primeiro caso, ele é intercessor, enviado, e sua morte, o emblema do Deus que encarnou para sofrer como homem e assim se aproximar dos homens para poder redimi-los. No segundo, é o homem que renunciou a Deus, foi mais fundo em sua descida, porque seu amor pelos homens foi tanto e tão divino que por ele renunciou à sua própria e original divindade.

Nesse círculo retórico, microcosmo do círculo que é Deus, Vieira nos prende, representante que era da Igreja e da unidade do pensamento católico e político sob a Coroa portuguesa. Toda forma de superação que ele nos propõe se fundamenta em uma escatologia providencial, em que devemos encarnar o divino no mundo e só assim, mais do que escolher o bem, querer o bem, traço muito característico da ética tomista e agostiniana. Essa visão de mundo concorda com a visão política de sua época, havendo heresia só na aplicação que ele faz da hermenêutica sacra a textos laicos e profanos, como as trovas do sapateiro Bandarra, lidas em chave profética. Se essa consumação comporta alguma visão de progresso, no sentido iluminista do termo, ou de ruptura, no sentido romântico, é por conta e risco de quem o diz e crê.

BIBLIOGRAFIA

VIEIRA, Padre Antonio. Sermões. Texto editado por Frederico Ozanam Pessoa de Barros, sob a supervisão do Padre Antônio Charbel e do Prof. A. Della Nina. Editora das Américas, São Paulo, 1957. 24 vols.

PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. São Paulo, Edusp/Editora da Unicamp, 1994.

__________ . & HANSEN, João Adolfo. “Vieira moralizado” in Tempo Brasileiro, nº 114-115, 1962.

SARAIVA, Antonio José. O Discurso Engenhoso. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1980.

SARDUY, Severo. Barroco. Tradução Maria de Lourdes Judice. Lisboa, Vega, 1989.

Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

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