Tchekhov, Bergman e as três irmãs

Do tédio de vidas estagnadas à descrença sob um céu impiedoso
Anton Tcheckov
01/09/2004

As mulheres de As três irmãs, drama em quatro atos de Anton Tchekhov, encenado em 1901, queixam-se, sofrem, choram. Estão quase sempre deprimidas, cansadas, à beira da histeria, e só acendem as efêmeras velas de suas esperanças quando aparecem em sua casa senhorial alguns oficiais do regimento, que as namoram. Olga, a mais velha, vive tensa, é uma corda esticada: enfada-se muito na escola onde ensina, quer um marido, quer ir embora para Moscou, onde passou a meninice. Maria despreza o marido Kulyguin, a quem trai, e aceita docemente a corte de Verchinin, que é casado e com filhos. Irina, a mais moça e bonita, de 23 anos, também detesta o emprego modesto, sonha com uma vida ruidosa, alegre e brilhante. Todas elas, em suma, não chegam propriamente a viver: deixam-se viver na pasmaceira da cidade provinciana, como que à espera de um milagre.

Ainda bem que trabalham, ao contrário das três irmãs do roteiro de Ingmar Bergman para o seu filme Gritos e sussurros, de 1972. Há, naturalmente, uma diferença de classe: as protagonistas de Tchekhov pertencem à pequeno-burguesia rural russa, enquanto as do cineasta sueco têm um toque aristocrático. Sente-se que estas, habituadas às comodidades da vida, dispõem de meios. O mobiliário da mansão em que vivem, também em ambiente interiorano, à beira de um lago e cercada por névoas flutuantes, atesta bom gosto e requinte. Suas toaletes, nas quais predomina o branco, são de damas de porte, altas e soberanas senhoras. Bem vestidas, de penteado alto, espairecem no parque, sob sombrinhas coloridas, quando lhes permitem as raras tréguas de sua convivência conflituosa. Bergman aprofunda divergências e atritos, entre elas, mas Tchekhov foge à inquirição psicológica, empenhado que está, tão somente, em mostrar a vida vazia e inútil de pessoas que, aparentemente, sobram. E em discutir uma possível abertura para uma vida melhor.

Esses dois objetivos ou intenções estabelecem a diferença de posicionamento entre o cineasta e o contista. Qual deles será o mais pessimista? O tema é idêntico, no filme e na peça: três irmãs em estado de solidão, vivendo, sob o mesmo teto, de antagonismos e lembranças, como se recolhidas a um claustro. Para todas elas, o passado arde como brasa. No caso das irmãs bergmanianas, as amenidades, mas igualmente a frieza, a competição e o egoísmo, datam de vinte anos atrás, quando a mãe vivia. No caso das irmãs tchekhovianas, o passado, também mais dadivoso, retrocede a um ano apenas, quando o pai morreu —, e à época distante em que a família morava em Moscou. Escapar à vida medíocre do presente significa buscar alimento no passado, quando, por menos felizes que fossem, elas ainda não estavam, pelo menos, corrompidas.

As épocas em que decorre a ação do roteiro e do drama são diferentes, delas não havendo indicação precisa — talvez entre meados e o final do século 19, o drama, e no final dos anos 60, o roteiro. No entanto, os dois grupos de irmãs se assemelham. Provavelmente o correspondente sueco da Maria de As três irmãs será a Maria de Gritos e sussurros. É que há nas duas um desafio natural aos preconceitos, na medida em que, volúveis por temperamento, se abrem mais para os relacionamentos, para a atividade amorosa — inclusive a extraconjugal. Não há no drama tchekhoviano nenhuma irmã agonizante, vítima de uma doença terminal, como a Agnes do roteiro de Bergman, embora o cancro do tédio e da inquietação lhes corroa o íntimo. As irmãs russas querem viver, bradam pelas benesses da vida (num momento de depressão, Irina, a mais jovem e bela, não entende por que ainda não se matou…), enquanto uma das irmãs suecas pensa no suicídio. É Karin, de todas a mais fria, quase gelada, mas que se derrete quando Maria, num dos seus impulsos pueris, tenta aproximar-se pela carícia. “Mão me toque!”, ela grita e foge, mas a sua couraça se rompe, a sua muralha desaba. A tensão, em Bergman, costuma quebrar-se, e em Tchekhov é mantida até o limite do desespero, que será sinônimo de entrega, de desesperança. Karin acentua a mesma linha pensamental do cineasta e do contista quando, após um jantar silencioso com o marido diplomata, Fredrick, ela exclama com ódio: “Não passa de uma série de mentiras, tudo”. Karin acaba de quebrar involuntariamente o copo de vinho e fita, fascinada, um caco. Repete a frase e, logo depois, martela: “Uma monumental série de mentiras”. O que se segue é uma demonstração extremada de repulsa a si mesma: ela lacera a genitália com o fragmento de vidro e deleita-se no leito conjugal com o gosto do sangue, sob o olhar do marido impassível.

Somos remetidos, então, não mais ao texto de As três irmãs, mas à novela O duelo, de 1891, em que Tchekhov faz Laievski bradar: “Tudo mentira, mentira, mentira…” Laievski tentava, no Cáucaso, justificar uma existência parasitária e o seu desamor por.Nadiejda Fiodorovna. Acuado por dívidas, entregue ao jogo e à bebida, acabará por encontrar a salvação dentro de si mesmo, na resistência heróica. Virginia Woolf também se aproxima, com ou sem deliberação, do contista russo, no conto O vestido novo, publicado em maio de 1927, quando leva a personagem Mabel a dizer, revoltada: “Mentira, mentira, mentira!”

Uma teia de mentiras, ciúmes, traições, ânsias e frustrações sobrecarrega as vidas precárias de criaturas em ambientes claustrofóbicos, de águas estagnadas e vidas sem sentido. Em As três irmãs, essa teia está subentendida, porque as irmãs russas disfarçam pudicamente seus sentimentos menos nobres, ocultando-os nas entrelinhas, mas em Bergman os vulcões interiores entram em erupção na superfície, sob a forma de gritos, e não somente de sussurros. Tchekhov, aliás, faz da reticência um dos seus ideais artísticos. Não precisa dizer que as irmãs jamais partirão para Moscou: nós sabemos de antemão. Também sabemos, por essa arte sutil de cumplicidade, no texto tchekhoviano, que o barão Tusenbach morrerá no duelo à bala com Solioni, e que a Irina restam as lágrimas. Da mesma sorte que pressentimos a solidão de Irina, a velhice atormentada de Verchinin. Em Gritos e sussurros, graças à instantaneidade da imagem visual, ao jogo fisionômico e aos sorrisos dissimuladores, as personagens são mais explícitas, embora igualmente eloqüentes nos seus silêncios, pois os dois escritores cultivam igualmente a arte de “esconder gavetas”.

Onde esses dois mestres do realismo psicológico se desencontram será nos rumos de sua linha de pensamento crítico. A atitude de Bergman para o pessimismo é quase que impulsiva, parece uma escolha. A família se desagrega em Gritos e sussurros. Depois da morte de Agnes, depois que o sacerdote católico pede, na encomendação de sua alma, que ela reze por todos os que ficaram na Terra, “na escuridão e sob um céu impiedoso e vazio”, advém a venda da propriedade, a partilha dos bens entre Karin e Maria, que se aprestam a partir com seus maridos. A despedida ressalta a dissolução total de laços que já eram frouxos. Apesar da sua frieza aparente, Karin baixa a ponte levadiça da sua fortaleza, ao recordar a Maria as carícias, a proposta de amizade. Mas a inconstante Maria já esqueceu tudo. O marido Joakin a espera impaciente. Aquele marido desastrado (ou acovardado) na tentativa de suicídio, ao espetar superficialmente uma faca no ventre, quando se descobre traído.

O traço “aristocrático” da família, com todas as prerrogativas e preconceitos, está evidenciado no relacionamento das três irmãs com Ana, a criada e o faz-tudo da casa. Ela serve ali há doze anos, é a única amiga de Agnes, a quem consola nas crises agudas de dor e medo. Ana acorre, entra no leito, despe o busto e nele aconchega uma Agnes de rosto crispado. Ana embala Agnes mesmo quando esta, já morta e enterrada, retorna ao leito e pede socorro. Relógios grandes, de parede, cercados de bibelôs, marcam o tempo, que flui inexorável nas estocadas do ponteiro. Apesar de dedicada, Ana vem a ser despedida sumariamente, e com secura, quando a família se dissolve. De Agnes, ela guardará o diário com o registro de seus secretos mecanismos psíquicos. Ana e Agnes são as únicas personagens “boas” da tragédia, conquanto não isentas de sentimentos de culpa. O contraponto de Ana será no drama russo a velha criada Anfissa, que tem oitenta anos de idade e está há trinta com os Prosorov, mas Natacha, astuciosa cunhada das irmãs, a despede grosseiramente, por ter origem camponesa, ser “inútil” e vulgar.

Em Tchekhov as três irmãs continuam unidas na tristeza, no desespero de suas vidas cinzentas. Seu mundo não desabou porque já estava no chão, nivelado ao que há de mais prosaico. Ainda assim, Maria diz: “É preciso viver! É preciso viver!” E Irina secunda: “Enquanto esperamos, é preciso viver… É preciso trabalhar. Somente trabalhar.” O trabalho como único antídoto ao tédio e à indiferença. E por fim Olga conclama: “Minhas queridas irmãs, nossa vida ainda não terminou. Viveremos”.

Tchekhov acaba de banhar as irmãs, nesse instante, com a sua religiosidade inata. Apesar de cético, ele acredita que a humanidade, por força de uma evolução lenta, mas progressiva, chegará a conhecer uma vida mais alegre, mais útil, mais feliz. Ainda em As três irmãs, um dos protagonistas, o comandante Verchinin, insiste em afirmar, à guisa de consolo, que “a vida é pesada para se carregar. Muitos entre nós a consideram silenciosa e desesperada, e no entanto devemos confessar que ela se torna dia a dia mais luminosa, mais fácil, e tudo nos faz crer que não está longe o tempo em que ela se iluminará inteiramente”. Em outra intervenção, ele diz que “o tempo continuará a passar… apenas duzentos ou trezentos anos… e nossa vida atual parecerá então espantosa e dela rirão… e tudo quanto é o nosso presente será olhado como desastroso, pesado, muito incômodo e estranho”. Em resumo, Verchinin acredita, via seu criador Tchekhov, que as gerações atuais serão sacrificadas, quanto à felicidade (ou ao conceito que disso se faz), em benefício de gerações futuras. “Não tomaremos parte nesta vida, é verdade…”, ele adverte. “Mas é para ela que estamos vivendo hoje. É para ela que trabalhamos e, se bem que a soframos, nós a criamos. E nisso está o objetivo único de nossa existência e, se você quiser, de nossa felicidade.” Como tantos agnósticos, Anton Tchekhov era um religioso sem religião e rituais. Era o homem da doçura discreta e das preces silenciosas.

Embora materialista e sem crença, ele foi “tomado por uma inquietude de essência religiosa, atormentado por uma verdade que pressente intuitivamente, mas que está longe de reconhecer”, escreve Sophie Laffitte no seu ensaio sobre o mestre russo. E assevera, em outra passagem, que certos contos dele sugerem, e as peças (que seriam “dramas líricos”) falam “de seu sonho de uma vida bela e feliz, de suas desencantadas meditações sobre a condição humana, de sua busca nostálgica de um sentido para a vida”.

Há uma nota de suave melancolia em certos contos de Tchekhov. Doente, e sobretudo cansado, ele parecia atraído pela paz dos cemitérios — e era eles que procurou, algumas vezes, em viagens ao exterior, principalmente a Itália, para escândalo dos seus contemporâneos, que queriam divertir-se em mesas de jogo e na convivência de mulheres. Era como se os cemitérios guardassem, em ultima instância, no seu silêncio apaziguador, aquele mistério cuja asa parecia roçá-lo, nos contos e dramas, mas que escapava sempre.

Em alguns de seus contos, salvo os contos urbanos de teor intimista, ouve-se o sussurro de árvores, o tanger de sinos de igrejas, ao entardecer, o deslizante rumor de tróicas. Suas descrições da natureza são sempre curtas, porque para ele o conto deverá despir-se de todos os acessórios. A natureza será sempre o prolongamento do estado de ânimo das personagens — e em geral estas anseiam por algo vago, indefinido, prometedor de uma estação de repouso. Permanecem elas em estado de nostalgia quase abúlica. Sente-se, então, como quê um de anseio de religiosidade, de abandono. Em O estudante, seu conto preferido, um rapaz retorna da caça, em tarde tempestuosa, de frio cortante, e acolhe-se à fogueira de uma viúva e sua irmã bronca, a quem narra a maneira como Pedro negou Jesus três vezes. O escritor detém-se no episódio de Pedro a jurar que não conhece Jesus, perante uns esbirros — e a dor do apóstolo, a sua consciência pesada, a sua incapacidade de dormir. A narração pungente desperta o sentimento de misericórdia das duas mulheres, que se põem a chorar, enquanto o estudante volta à aldeia.

Portanto, há brechas na muralha de pessimismo do contista russo. Já Ingmar Bergman, de um ceticismo mais contundente, parece não distinguir sinal de luz, vago que seja, na escuridão em que vê atolados os homens e o mundo. Seu realismo é mais cru, embora ele o tempere com líricos apelos à memória, aos sonhos e aos fantasmas, assim temperando sua devassa nos porões da personalidade.

Em ambos os textos, o roteiro cinematográfico e o drama, sente-se a importância da comunicação como fator de concórdia ou trégua. Esquivas tentativas de aproximação, a necessidade que têm as personagens de se tocarem fisicamente, de lançar pontes ou arriar as portadas de seus castelos pessoais, se impõem à primeira vista. Mesmo que impliquem o risco de repulsa temporária.

Notas

Tchekhov, Anton — As três irmãs. São Paulo: Editora Nova Cultural, tradução de Maria Jacintha, 2004.

Bergman, Ingmar — Roteiro de Gritos e sussurros, relançado em DVD no Brasil pela Versátil Home Vídeo, em 2004.

Woolf, Virginia. — Objetos sólidos. São Paulo: Siciliano, tradução de Hélio Pólvora, 1992.

Laffitte, Sophie — Tchekhov. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, tradução de Hélio Pólvora, 1993.

Hélio Pólvora

É ficcionista, crítico literário e tradutor.

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