Não, Um toque de limão, do inglês Julian Barnes, não é um livro sobre a velhice, conforme alguns acomodados tendenciosos andaram divulgando. Infelizmente, a necessidade que temos para simplificar (aqui no sentido de simplório mesmo), ou melhor dizendo, de monotematizarmos tudo, é um dos nossos maiores defeitos. É por aí que se afoga a dialética. A própria velhice nos fornece vários ângulos de observação: a velhice por quem a sofre, a velhice por quem a observa e a velhice por quem de uma maneira ou outra é forçado a conviver com ela. Exemplo? O aposentado que a partir de amanhã não mais sairá para o trabalho, mas continuará acordando no mesmo horário. A velhice, paciente leitor, é um polvo com venenos para todas as boas intenções.
Quem se preocupar tão-somente com as rugas e os cabelos brancos estará gastando pólvora em chimango. Segundo W. Reich, o corpo é o inconsciente visível. E, desse modo, não é de admirar que ao ocaso de uma existência seja tão comum assistirmos a pessoas em tentativas vãs de recuperar o tempo perdido ou de ainda acreditar que há tempo para reescrever algum capítulo não muito honroso de sua vida. Aconselha-se não subestimar a velhice, encará-la como um telegrama avisando que o visitante derradeiro está mais próximo. Coloque um molho de solidão e desprezo e pronto. É só servir. É vida , e não requer entrada, tampouco admite sobremesa.
O leitor que tiver lido pelo menos O papagaio de Flaubert saberá que Julian Barnes não cairia nessa armadilha primária. Os contos de Um toque de limão são de uma profundidade plácida em sua sofrida sensibilidade.
Se por ventura a leitura de Um toque de limão deixar o travo de balanço, acerto de contas, arrependimentos, mazelas e manias, é que, no mais das vezes, lamentavelmente, velhice é isso mesmo. Mas aproveitando a oportunidade, convém conferir o livro de Daniel Pennac — La fée carabine, disponível também na versão espanhola da Editorial Thassalia, com a tradução El hada carabina, em que a velhice é apresentada não como um fim tão-somente, mas como oportunidade para recomeço, um acerto de contas ativo e permanente inconformismo. Para não estragar sua futura leitura, paciente leitor, adianto apenas que a história tem início com uma velhinha estourando os miolos de um policial.
Ainda para fazer contraponto com Um toque de limão, vale a pena a leitura de Se a moda pega…, de Mario Lorenzi (Conex). Previno-os que em nenhum encontrarão velhinhos fazendo palavras cruzadas, jogando dama em praças públicas ou iniciando diálogos assim: “no meu tempo…”
Perceberam o quanto a velhice rende assunto também a contistas e romancistas? Resenhistas pouco talentosos também se amarram, acreditem. Então voltemos ao começo e se até aqui nos resumimos à velhice, foi proposital. A intenção é não utilizá-la como um sinônimo para inutilidade. Embora possa ser vista como um éden das idiossincrasias, permite que a definamos como a esclerose natural dos nossos sentimentos, dos mais aos menos nobres. Ou se preferirem, que tal encararmos a velhice como o fim da ilusão? E o mais grave, ela pode atacar a qualquer idade.
Sendo assim, convido-os a bisbilhotarmos as vidas de Um toque de limão.
Desilusão amorosa
Em 11 contos, Barnes destila crueldade, amenizada por algo que, se não chega a configurar humor, funciona como atenuante para o cenho carrancudo da morte. Algo como ar-condicionado e a nona de Beethoven no corredor da morte. A unidade do livro não é a velhice, é a desilusão amorosa. E por desilusão amorosa não entendam apenas os amores entre homens e mulheres, homens e homens ou mulheres e mulheres, mas aquela desilusão que a consciência da morte traz. E, notem bem, não faço aqui nenhum juízo de valor. Quem quiser ter oito carros na garagem que os tenha; quem se dirige aos cachorros como se estivesse falando com pessoas que continue assim. Mas de preferência que eu não veja. A consciência da gravidade da vida, sua tragicidade, nossa vida miserável mesmo, sua exposição sem maquiagem, aqui está o grande diferencial de Um toque de limão.
Já que falamos de música, vamos tratar do conto O silêncio. Nele, um personagem real, o compositor Jean Sibelius, gastando seus últimos dias de vida, confessa resignadamente ante a opressora solidão: “Hoje em dia, quando os amigos me abandonam, não sei mais dizer se é por causa de meu sucesso ou se é por causa de meu fracasso. A velhice é assim”. Vocês ainda recordam da primeira frase deste texto? Pois é. Se o autor diz que a velhice é assim e nós nos atrevemos a dizer que o livro não se restringe à velhice, então podemos complementar dizendo que “a pobreza também é assim”. A solidão poupa apenas os egoístas e o egoísmo não poupa ninguém. Se bem que ainda se encontrem algumas exceções.
E por falar em silêncio, o conto A história de Mats Israelson nos leva a transformar o silêncio em sentimentos reprimidos e sua conseqüente e arrasadora frustração. Trata da história, patética, de um casal que se ama sem que jamais um tenha confessado isso ao outro. A situação dura 23 anos — o que não é pouco nem mesmo para os quelônios. Elemento complicador: ambos são casados e vivem numa cidadezinha do interior onde todos se conhecem. Entre eles perdura o silêncio até que o homem à beira da morte tenta confessar seu amor, tenta… Se ele ao menos tenta, a ela restou a desolação, dividida entre não amar um homem que merecia ser amado e amando um que não merecia. Nesse embate desigual, um disfarce do silêncio (a dor) sai vitorioso: “Ele tinha esperança — era sua única esperança agora — de que a dor do câncer, a dor de morrer, fizesse desaparecer as dores do amor. Não parecia provável”.
Vigilância é outro conto em que fica bastante clara a necessidade de coadjuvantes para que a velhice se torne penosa. E o mais freqüente é a solidão. Um melômano homossexual consome suas horas a engendrar castigos a pessoas que fazem barulho nos concertos. Da tosse ao desenrolar de balas. Questionado por seu amante se os “barulhentos” estão se comportando pior ou se ele estaria se tornando mais sensível com a idade, ele responde: “— As pessoas estão se comportando pior. Isso é o que me deixa mais sensível”.
Perguntado sobre desde quando passara a perceber essa mudança de comportamento da platéia, não titubeia: “— Quando você deixou de ir comigo”. Mais uma vez a solidão, aqui aguçando a percepção, não deixa de ter uma serventia, não é mesmo?
Quando falei de algo que não chega a caracterizar humor, mas que serve para abrandar a gravidade do relato, percebemos aí mais um toque de mestre de Julian Barnes, pois é impossível não nos vermos em situações semelhantes. Refiro-me à sutileza com que o autor trata a velhice, não a eximindo das dores mais prosaicas ou até mesmo juvenis. Podemos confirmar isso no conto O cercado das frutas, em que um homem de 81 anos decide se separar de sua mulher de 80 para viver com uma de 65 anos. Interpelado pelo filho que o aconselha a reconsiderar a situação, responde: “— Se eu esperar mais um pouco, estarei morto”. E já que falamos em sutilezas, Um toque de limão exige carinho redobrado e extrema atenção em sua leitura. Por exemplo, qual a razão de o autor comparar homens com árvores? A definição de árvores tão retas e honestas quanto um homem, no conto A história de Mats Israelson, é sinceridade ou ironia? A escolha é sua, leitor. Mas a lista dos enigmas é bem maior, e vale a pena o confronto com eles.
Julian Barnes é daqueles raros autores que dá gosto ler, dispensa os excessos (quer sentimentais, quer formais), deixa nas entrelinhas um sem número de interrogações, das metafísicas às psicanalíticas, sem com isso transformar-se em chato, tedioso ou filósofo de mesa de bar. Dito isso, fica o alerta para não irem com tanta sede ao pote porque o sabor é de limão. Selvagem
Estar vivo é não se preocupar tanto em concluir, mas adiar ao máximo o ponto final. E, para não colocar um ponto final nessa nossa conversa, deixo com você uma das inúmeras indagações de Um toque de limão: “Será que você é tão jovem quanto se sente, ou tão velho quanto aparenta?”
Com o maior respeito.
P.S.: O velho e os lobos (Rocco), de Julia Kristeva, é uma providencial leitura complementar.