Tambor às avessas

“Nas peles da cebola” pode ser lido como uma continuação do mais célebre livro de Günter Grass
Ilustração: Ramon Muniz
01/02/2008

Em seu primeiro e até hoje mais celebrado romance, O tambor, publicado originalmente em 1959, Günter Grass narra a estranha vida de Oskar Matzerath, um interno de hospício cujo desenvolvimento corporal parou nos três anos da idade. Oskar, cujo sonho é nunca crescer, envelhece, mas seu corpo permanece infantil. Ainda jovem, ganha de presente um tambor de lata e, mais tarde, torna-se músico de jazz. A seu redor desenvolve-se a Alemanha de Hitler e explode a Segunda Guerra Mundial. A música é sua forma de protesto contra o nazismo, e a recusa em crescer, a metáfora de um país que parece não ter aprendido com a Primeira Guerra e repetido os erros mais grotescos. O tom juvenil apenas potencializa a crítica ao horror do autoritarismo que Oskar, uma das figuras literárias mais marcantes do pós-guerra, eternizou. Muito do material de O tambor era retirado da infância do próprio Grass e trabalhado em forma de fábula.

Quase meio século depois, o autor alemão, vencedor do Prêmio Nobel em 1999, escreveu uma espécie de continuação involuntária de O tambor Nas peles da cebola, aguardado livro de memórias, que causou uma celeuma interminável mundo afora por trazer a confissão de que Grass pertenceu à Waffen-SS, a assustadora polícia nazista, informação até então desconhecida. Toda a discussão em torno da revelação acabou ofuscando outros aspectos da obra, considerada por críticos a sua melhor desde a estréia. E também passou batida para alguns essa possível interpretação de seqüência de O tambor — e uma seqüência às avessas. Como observa o escritor e tradutor Marcelo Backes no posfácio, O tambor é uma espécie de “romance que parodia e suspende o ‘romance de formação’”. Da mesma forma, diz Backes, Nas peles da cebola confunde autobiografia e romance de formação quando Grass aplica analogias entre ele e Oskar Matzerath. O normal seria que passássemos a ler O tambor procurando essas referências da vida de Grass na de Oskar. Muito mais interessante é fazer o caminho inverso. Esmiuçar, portanto, o que pode existir de um garoto que se recusa a crescer em um escritor nobelizado e com cinco décadas de carreira nas costas.

O Günter Grass de Nas peles da cebola se assemelha aos narradores não-confiáveis eternizados da virada do século 19 para o 20 por Henry James (A taça de ouro), Machado de Assis (Dom Casmurro), Joseph Conrad (O coração das trevas) e Ford Madox Ford (O bom soldado), entre outros. Busca sempre reafirmar a sua insegurança quanto aos fatos narrados. Trata-se de um homem que aguarda “o momento em que a morte vier me buscar” enquanto questiona “constrangedoramente” as atitudes do menino de 12 anos, e a proximidade do fim torna um tanto errante o caminho em direção ao vivido. Para deixar claro ao leitor essa imprecisão dos fatos, Grass diferencia memória de recordação. “A recordação”, diz, “ama o jogo de esconde-esconde”, ou seja, embeleza as coisas “e gosta de enfeitar, muitas vezes sem motivo”. Já a memória busca sempre a exatidão, a objetividade, “quer ter sempre razão”. A prova de seu espírito contraditório surge quando, mais à frente, afirma que “a memória gosta de invocar lacunas” e “ama o disfarce”. Como era mesmo o jogo de esconde-esconde da recordação?

E por que tanta insegurança e imprecisão? Porque esse homem que acaba de chegar à oitava década de vida está se batendo com o passado. O autor de Nas peles da cebola ainda é, afinal, também o autor de O tambor, e, como Oskar, recusa-se a crescer, preferindo, desde a infância, “os caminhos de fuga que levavam ao infinito azul da fantasia”. Chega a lamentar, ao comentar a desenvoltura de seu personagem na arte da sedução: “Oskar sabia tornear belas palavras; eu parecia ter engolido moscas (…) Ó, se eu tivesse sido atrevido como Oskar! Ó, se eu tivesse tido seu espírito!”. Não há medo de morte, e nem mesmo nostalgia, pois Grass demonstra não ver nos acontecimentos da infância algo de particularmente especial; é mais como se quisesse ser o jovem na própria fase adulta, visto que se reveste do cinismo para esconder essa saudade da primeira infância, transmitindo a sensação de indiferença para com o passado. Uma couraça que protege o autor em toda a sua ficção. Em seus romances, a manifestação de sentimentos é sempre latente, obscurecida pelo humor. Não surpreende que às vezes utilize a terceira pessoa para falar de si em Nas peles da cebola.

Ilustração: Ramon Muniz

Conversa com o leitor
O título, aliás, foi tirado da metáfora da memória como uma cebola cujas camadas são lembranças descascadas conforme a narrativa avança. A imagem da cebola também pode ser atribuída à forma como o texto se desenvolve. Grass parte de um material bruto — a cebola em si — e vai descascando-o lentamente, partindo-o em pedaços iguais que representam os fluxos memoriosos e os fatos que vão sendo dissecados. Grass não trabalha como um historiador, listando fatos e dados ou seguindo cronologias temporais; mais do que contar, ele conversa com o leitor, assumindo que este já está familiarizado com informações prévias sobre sua vida e obra, e, portanto, não precisa de contextualizações complexas. Um estilo talvez não tão claro, mas intimista e sedutor. Mesmo ao “confessar” o pecado de ter sido voluntário da SS, Grass o faz nessa maneira discreta, como se a informação fosse pública e notória desde sempre.

É bastante complicado condená-lo ou absolvê-lo pela adesão. De um lado pode-se argumentar que é impossível julgar alguém no calor da juventude, alguém que ainda não percebe a dimensão dos atos que comete. Por outro, é de se perguntar por que escondeu tal fato por tanto tempo. Outros grandes artistas do século 20 admitiram sua simpatia com o nazismo durante algum tempo — caso do cineasta sueco Ingmar Bergman. O problema é que enquanto a obra de Bergman nunca se prestou, diretamente, a abordar o tema da Guerra, a do alemão explora, com acidez e cinismo, justamente os períodos da imundície nazista e a posterior tentativa de reconstrução moral da Alemanha. Além da literatura, Grass se intrometeu bastante na vida pública do país como membro do partido social-democrata, sendo reconhecido como uma espécie de reserva moral da nação. Ele revela sentir culpa — “eu me deixei seduzir”. Não parece, no entanto, ter resolvido a questão tão bem consigo, pois passeia muito rapidamente pelo assunto, flanando logo para outros caminhos. Essa impossibilidade de se resolver com o erro pode ser o mote por trás da decisão de escrever Nas peles da cebola.

Fora a sua aptidão para as artes plásticas, o pequeno Günter Grass não se diferenciava tanto de outras crianças. Filho de comerciantes, foi criado em um ambiente católico, porém sem repressão religiosa. São deliciosas as passagens sobre a formação intelectual (as solitárias leituras no sótão) e emocional (chegou a responder a carta de uma pretendente corrigindo seus erros ortográficos; logicamente, ele a perdeu) do pequeno artista, futuro pintor e poeta, só bem mais tarde prosador. Os longos trechos sobre a sua adolescência e as aventuras durante a guerra perdem vivacidade, muito pelo estilo evasivo de alguém que, como se disse, ainda não parece reconciliado com aqueles tempos. Bem mais interessante é a parte em que encontramos Grass em Paris, agora trabalhando com esculturas e começando seu primeiro casamento enquanto macaqueia o “nada existencialista” dos ex-amigos Sartre e Camus (de quem tomou partido), então em voga (“Cogitar o suicídio, fumando, quando se estava na companhia de um grupo, era de bom-tom”, analisa, hilário). Nas peles da cebola termina quando, ainda na capital francesa, ele avança na escrita de O tambor. Um fim que marca o início.

Nas peles da cebola
Günter Grass
Trad.: Marcelo Backes
Record
417 págs.
Günter Grass
Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1999, o alemão Günter Grass é autor dos romances O tambor — considerado uma das obras-primas da literatura européia do século 20 —, Um campo vasto, A ratazana, Anos de cão, O linguado e Maus presságios. Ele passou a se dedicar à literatura depois de estudar desenho e escultura, e sua obra inclui também poemas e peças de teatro.
Jonas Lopes
Rascunho