Talento para recriar a vida

O genial "Memórias de um sargento de milícias", de Manuel Antônio de Almeida, ainda desafia as classificações críticas
Ilustração: Robson Vilalba
01/07/2010

Há uma qualidade indiscutível em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida: passado mais de um século e meio da sua publicação — de 1852 a 1853, na forma de um folhetim semanal anônimo, no suplemento “Pacotilha” do jornal Correio Mercantil —, o romance não se dobra às classificações da crítica. E a qualidade só aumenta quando lembramos que a obra nasce em pleno romantismo, três anos antes de surgir, também no formato de folhetim, O guarani, de Alencar; e cresce ainda mais pelo fato de a narrativa ser uma contraposição — ao que parece, irrefletida, espontânea — à grandiloqüência, à retórica e ao sentimentalismo exacerbado dos românticos.

Aliás, no que se refere à espontaneidade, a obra de Manuel Antônio de Almeida apresenta aos escritores a chance de refletirem sobre o ofício da escrita, pois nosso autor sempre falhou — vejam seus poemas, absolutamente medíocres — quando pretendeu ser literato. Alguns de seus trabalhos são, portanto, um convite à reflexão sobre a fronteira que separa a literariedade do texto artificial, o metaforismo do jogo de palavras vazio, a literatura dos malabarismos verbais, a arte do vanguardismo oco, o que efetivamente permanecerá do que é apenas moda aprovada por uma minoria de supostos mandarins da crítica — que também acabam, com o tempo, esquecidos.

Marques Rebelo, autor de um ótimo livro sobre Manuel Antônio de Almeida — esgotado, infelizmente, há mais de 40 anos —, conta que o escritor produzia os capítulos do Memórias de forma despretensiosa, enquanto os amigos discutiam política ou literatura, cantavam e tocavam violão:

(…) esticado numa marquesa, com preguiça de mudar a horizontal atitude, punha o chapéu alto sobre o ventre e em cima dele ia enchendo a lápis as suas tiras de papel, indiferente às risadas dos companheiros, sem dar grande importância ao seu trabalho, que nem era assinado (…).

Comportamento, aliás, que corrobora o testemunho de um amigo do escritor, Francisco Otaviano, segundo o qual Manuel Antônio de Almeida “adivinhava com alguns momentos de atenção tudo o que não estudara e escrevia sobre assuntos examinados de relance, como se de longo espaço os tivesse aprofundado”.

Compadrio e perversões
Surge dessa genial naturalidade o livro escrito por um jovem de 21 anos, obra que, romântica ou não, precursora ou não do realismo, influenciada ou não pela literatura picaresca, narra, por meio de uma voz indulgente e jocosa, o cotidiano de pessoas comuns. O narrador do Memórias flagra os personagens em meio à vida que condena todos, de uma forma ou de outra, ao anonimato, a pequenas e múltiplas mesquinharias — a maior parte das vezes, jamais reveladas — e a insignificantes gestos de heroísmo. Ele se coloca, assim, entre dois outros escritores que, opondo-se ao turbilhão de pieguice do romantismo brasileiro, conseguiram rir: Álvares de Azevedo — infelizmente em raras oportunidades, como no poema É ela! É ela! É ela! É ela! — e Martins Pena.

A verdade simples, banal, das relações humanas nasce, a cada página do Memórias, despojada de idealismo ou angústia, e somos levados, desde a primeira linha — “Era no tempo do rei” — a um microcosmo cujo retrato não tem compromisso algum com a crônica histórica ou com a descrição fidedigna dos costumes da época de d. João VI, mundo no qual o que está em jogo é a sobrevivência diária de homens e mulheres que não se perguntam, sombrios, por qual motivo foram jogados na face da Terra ou qual o sentido de suas existências, mas cumprem seu fado usando os meios que têm à mão, não importando se desagregam lares, ferem interesses de outrem ou maculam princípios éticos e religiosos.

Assim, não há um só personagem — favorável ou contrário ao protagonista — que não tenha defeitos ou esconda alguma segunda intenção: Leonardo-Pataca (pai do protagonista homônimo) é um mulherengo carente; a mãe de Leonardo (filho de Leonardo-Pataca), uma adúltera; o padrinho, barbeiro que acolhe o menino quando os pais se separam, enganador e ladrão de heranças. A própria comadre, madrinha do menino, sua fiel protetora, quando surge a oportunidade não hesita em mentir para defender os interesses do afilhado e, insinuante, arranja o casamento de Leonardo-Pataca com sua sobrinha. O padre que ocupa o cargo de mestre de cerimônias da Sé, exemplo de moralidade, é amante de uma cigana. E até mesmo o major Vidigal, símbolo irrepreensível da ordem e da lei, acaba vencido por seu calcanhar de Aquiles. O único que vive acima desse gregarismo marcado pelo compadrio e por pequenas perversões — mas sempre usufruindo dele — é Leonardo, que está longe de se mostrar “esvaziado de lastro psicológico”, como afirma Antonio Candido, mas, ao contrário, demonstra o perfil típico de quem é criado, longe dos pais, por um adulto que lhe faz todas as vontades e só o elogia, encontrando méritos nos seus piores comportamentos: será uma eterna criança, acostumada a deixar as decisões a cargo dos que direcionam sua vida; um sonhador que nada faz de útil, vivendo às expensas dos outros, incapaz de lutar pelo que deseja, mesmo quando se trata de uma paixão.

Império feminino
Sempre considerei incrível que, apesar de suas dificuldades financeiras, Manuel Antônio de Almeida tenha conseguido escrever um romance tão leve, descomprometido com a estética de seu tempo, empenhado na tarefa de apenas contar uma boa e divertida história. A vivacidade desse livro não é obscurecida nem mesmo pela presença do vocabulário, de forte influência portuguesa; e essa característica se contrapõe a outro aspecto do romantismo, pois demonstra o quanto não era essencial a luta de alguns, principalmente de Alencar, para dar vida a uma linguagem verdadeiramente brasileira.

O romance, inclusive, diverge da própria organização social do país, supostamente patriarcal, ao colocar as mulheres no papel de protagonistas. Manuel Antônio de Almeida cria um império feminino, verdadeiro matriarcado, onde os personagens masculinos sempre se submetem — além de raramente tomarem alguma importante iniciativa. Elas não se assemelham às heroínas de Alencar, não almejam pureza, santidade ou o êxtase de um grande amor, mas sabem unir sedução, doçura maternal, tirocínio e desembaraço para os arranjos que podem beneficiar a si mesmas ou aos seus queridos. Sim, têm defeitos — “Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas, era naquele tempo cousa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo hábito”, ironiza o narrador —, mas se impõem, unidas, certas do que desejam, sem jamais titubear, para proteger seus escolhidos. Até mesmo a tímida, feia e desengonçada Luizinha confirma o protagonismo das mulheres, pois, logo após a morte do marido, é quem se antecipa no jogo de sedução, a fim de casar com Leonardo.

Mas não estamos diante de uma cartilha que faz a apologia do feminismo. Não. Isso seria diminuir um romance cuja pièce de résistance é a ironia. No entanto, por razões desconhecidas — o autor pretendeu agradar ao público leitor da época, formado principalmente por mulheres, ou manifestou uma influência da infância, quando vivia protegido por sua mãe e pelas irmãs? —, são as mulheres que movem a trama e lutam para girar a roda da fortuna. A importância delas avulta inclusive nas personagens secundárias: a mulata Vidinha, com seu sorriso capaz de derrotar qualquer oponente, e seu bordão, “qual”, repetido sempre com extrema graça, e a vizinha do barbeiro, trocista e zombeteira, persistem na imaginação dos leitores.

Ilustração: Robson Vilalba

Críticas e influência
É estranho que tal romance tenha recebido críticas nem sempre positivas. José Veríssimo fala em “trivialidade do assunto, pobreza do enredo e banalidade dos personagens”, chamando a atenção para o “estilo incorreto, descosido e solto, de uma simplicidade que é trivial, de um caráter sem feição, nem relevo”. E, entre os modernistas, Mário de Andrade, apesar de considerar Manuel Antônio de Almeida um “vigoroso estilista”, achava “incontestável que o autor das Memórias se exprimia numa linguagem gramaticalmente desleixada”. Mário, aliás, não consegue rir livremente enquanto lê o romance. Na introdução que escreveu para a edição de 1941, põe-se a denunciar o “achincalhe das classes desprotegidas, mais cômodas de ridicularizar por menos capazes de reação”. Logo a seguir, volta à carga: “Se exclui e se diverte caçoando, sem a menor intenção moral, sem a menor lembrança de valorizar as classes ínfimas. Pelo contrário, aristocraticamente as despreza pelo ridículo, lhes carregando acerbamente na invenção, os lados infelizes ou vis”. E, no penúltimo parágrafo, solta mais impropérios: “Das suas angústias materiais, da infância pobre, o artista não guardou nenhuma piedade pela pobreza, nenhuma compreensão carinhosa do sofrimento baixo e dos humildes. Bandeou-se com armas e bagagens para a aristocracia do espírito e, como um São Pedro não arrependido, nega e esquece. Goza. Caçoa. Ri”. Certamente, o autor de Macunaíma se refestelaria nos dias de hoje, quando certa subliteratura politicamente correta, de contestável valor, é guindada ao lugar de honra no pódio construído pela crítica literária de esquerda.

Serão Eugênio Gomes, no ensaio conciso e perfeito de Aspectos do romance brasileiro, e Antonio Candido, no seu Dialética da malandragem — do qual deve ser descontado certo esquematismo sociológico —, aqueles que demonstrarão compreender a índole do romance e seu papel central em nossa literatura, inclusive como antecipador da obra machadiana.

A propósito, a influência de Manuel Antônio de Almeida sobre Machado é tema que pede aprofundados estudos. Mário de Andrade escreve de forma injusta ao afirmar existir “algo do estilo espiritual de Machado de Assis” no autor do Memórias, pois a verdade deveria ser dita na ordem inversa: o autor de Dom Casmurro, além de protegido por Manuel Antônio de Almeida na Tipografia Nacional, onde era considerado um preguiçoso, herdou de seu protetor não só a sutileza da frase, mas a habilidade para construir um narrador irônico, que apresenta os homens sem julgá-los e se dirige ao leitor como se este fosse seu cúmplice. Ascendência inevitável, convenhamos, inclusive porque Machado revisou o Memórias, a fim de preparar o livro para a edição de 1862-1863.

Estamos, portanto, diante de um romance cujas influências são maiores do que se imagina — e ainda pobremente detectadas na literatura nacional, já que os influenciados, repetindo o que o próprio Machado fez, mostram-se lacônicos quando se trata de tecer elogios a Manuel Antônio de Almeida.

Ironia e galhofa
No que se refere à ironia, ela está presente do começo ao fim do livro, sugerindo ou implicando conclusões diferentes daquelas que o narrador parece exprimir: o contexto e as contradições dos termos despertam dúvida ou riso, construindo uma narrativa que alguns críticos, erroneamente, supuseram “moralizante”. Na verdade, o narrador não julga, mas, ao discordar de um costume ou de certo comportamento, apenas expressa, de maneira paternal ou jocosa, a sua censura — escarnecendo, jamais sentenciando. É o que ocorre no capítulo da procissão dos ourives, sobre a qual o narrador aponta modismos e desvirtuamentos, mas também descreve os diferentes aspectos do cortejo religioso, incluindo o encanto e a graciosidade do rancho das baianas — sob seu ponto de vista, manifestação completamente fora de lugar. Ou, em outro trecho, ao depreciar a moda da mantilha, transformada em mau gosto:

Este uso da mantilha era um arremedo do uso espanhol; porém a mantilha espanhola, temos ouvido dizer, é uma cousa poética que reveste as mulheres de um certo mistério, e que lhes realça a beleza; as mantilhas das nossas mulheres, não; era a coisa mais prosaica que se pode imaginar, especialmente quando as que as traziam eram baixas e gordas como a comadre. A mais brilhante festa religiosa (…) tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se inclinavam cochichando a cada momento.

Conclusões mais próximas da galhofa do que de uma pretensa moralização.

Nesse romance, cujas histórias se repetem, todos os dias, em qualquer bairro de classe média baixa, há espaço também para a crítica politicamente incorreta, por exemplo, quando o narrador passa a falar mal daqueles que, hoje, poderiam ser considerados mais uma das minorias ditas indefesas: “A poesia de seus costumes (dos ciganos) e de suas crenças, de que muito se fala, deixaram-na da outra banda do oceano; para cá só trouxeram maus hábitos, esperteza e velhacaria (…)”. E não há traço de ufanismo em Manuel Antônio de Almeida: nenhuma virgem — índia, negra, mulata ou branca — tem “lábios de mel”, e os sabiás, se deles tivesse falado, gorjeariam como qualquer outro pássaro, em qualquer lugar do mundo, às vezes incomodando com seu chilreio repetitivo.

Plasticidade
A descrição da casa de um fidalgo, na qual o pó cobre da rótula à palma benta esquecida a um canto, e do próprio morador, “de cara um pouco ingrata”, que se apresenta ao visitante “de tamancos, sem meias, em mangas de camisa, com um capote de lã xadrez sobre os ombros, caixa de rapé e lenço encarnado na mão”, ou os pormenores utilizados para nos apresentar a sala de aula em que Leonardo estudará — “mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso, uma mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde escreviam os discípulos, toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros; nas paredes e no teto haviam penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios, dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas qualidades” — são alguns dos inúmeros trechos que extrapolam o simples realismo ou a crônica de costumes, passagens talvez inspiradas nos relatos de Antônio César Ramos — funcionário do Correio Mercantil, que chegara à patente de sargento nas milícias de d. João VI — ao escritor, mas que, certamente, foram transfigurados por acréscimos e distorções.

Se a força imaginativa desse jovem autor cria cenas de inusitada plasticidade, seus personagens parecem respirar, não devido ao exagero de características, mas à escolha perfeita do que merece ser ressaltado:

Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona ingênua ou tola até certo ponto, e finória até outro; vivia do ofício de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que se faziam.

Descrições nas quais a psicologia nunca é menosprezada, como no trecho a seguir, quando o narrador justifica a atitude tolerante do barbeiro em relação às estripulias de Leonardo:

Era isto natural em um homem de uma vida como a sua; tinha já 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato. Assim à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira.

Ilustração: Robson Vilalba

Falsificação e verdade
Perguntei-me, enquanto relia o Memórias, quais seriam os defeitos da obra. E encontrei-os, acreditem: no final do Capítulo IX do Tomo II, vemos as dificuldades de um narrador onisciente que, apesar de reter em suas mãos todas as informações — o que, de fato, não é um problema —, parece ter medo de se alongar, por falta de tempo ou espaço, sentindo-se premido a unir os fios soltos do enredo mediante considerações genéricas, inconvincentes. Situação repetida no Capítulo XIII do mesmo tomo, no qual o narrador resume os fatos, dando ao texto um tom superficial, esquemático. Em outros raros momentos, abusa-se de uma solução redentora: no Capítulo X do Tomo II, transcorrem semanas antes que descubram onde Leonardo está, pois abandonou a casa paterna depois de brigar com sua jovem madrasta; mas quando o protagonista se vê acossado por rivais, surge no instante propício, inesperadamente, sua principal defensora, a comadre.

Tais senões, entretanto, são tragados pela absoluta maioria de ótimas cenas. Vejam o Capítulo I do Tomo II, no qual acompanhamos as minúcias de um parto, da preocupação e ansiedade do pai às orações, práticas e mezinhas da boa parteira — e não se trata, aqui, apenas de perfeição da escrita, mas do raro poder de revelar humanidade. Ou, ainda, a descrição dos estados de ânimo do protagonista ao se apaixonar por Luizinha: seu desconforto por desejar reciprocidade imediata, mas só receber, a princípio, falta de jeito e timidez. E sua insegura declaração de amor (Capítulo XXIII, Tomo I), enquanto Luizinha apenas gesticula ou enrubesce, “página que antecipa Machado de Assis em suas melhores realizações de caráter psicológico” — segundo a correta afirmação de Eugênio Gomes —, exemplo vivíssimo de um autor que domina a técnica do diálogo, transmitindo, por meio das reticências, dos silêncios e da brevidade das falas, a carga dramática adequada.

Mesclemos todas essas qualidades à correta adjetivação — às vezes exagerada de maneira proposital, a fim de ridicularizar ou escarnecer —, à capacidade de síntese — uma “equação meirinhal pregada na esquina” (Capítulo I, Tomo I) concentra, em poucas e felizes palavras, tudo que foi descrito antes, com extrema ironia — e ao formidável poder narrativo — quem não consegue enxergar um meirinho depois de ler que “nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense. Seus olhares calculados e sagazes significavam chicana”? — e teremos um romance genial, em que a natureza humana está presente sem falsificações; ou exatamente graças a elas, pois foram imaginadas com tal nexo, com tal harmonia, que recriam na ficção a excelência de uma verdade imorredoura.

NOTA
Desde a edição de junho, Rascunho publica uma série de ensaios do crítico Rodrigo Gurgel a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Jornal de Timon, de João Francisco Lisboa.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho