Ariel, de Sylvia Plath, edição restaurada e bilíngüe com manuscritos originais, pretende trazer a público a leitura desses poemas sob nova perspectiva. Foi editado pela primeira vez em 1965, pelo poeta Ted Hughes, marido de Sylvia, omitindo alguns poemas e acrescentado outros, segundo seus próprios critérios de seleção, contrariando a proposta de organização deixada pela autora ao suicidar-se em 1963. Em 2004, por iniciativa da filha do casal, Frieda Hughes, é publicada uma nova edição revisada, desta vez dentro da proposta inicial.
O novo volume inclui textos datilografados e revisados pela autora, em inglês, com a correspondente tradução, manuscritos e originais, através dos quais é possível se ter uma visão mais próxima desse rico e complexo processo de criação poética. Traz também um anexo de notas, no qual são apresentados cada poema, data de produção e alguns comentários com a intenção de facilitar a leitura.
Fato é que, por mais que se persiga o objetivo de uma leitura textual isenta de impressionismos biográficos, a vida tumultuada e a morte trágica e precoce da poeta pairam como fantasmas a cada virada de página, constituindo-se num fio de leitura, que durante muito tempo assumiu destaque, para não se falar em predominância de enfoque. Além disso, é inegável que a popularidade e o sucesso no mercado editorial, no primeiro momento, devem-se muito a isso.
Em uma cena do filme Sylvia (2003), de Christine Jeffs, Sylvia e Ted passeiam num lago azul discutindo poesia. Ted enfatiza a necessidade de uma temática clara e definida para a realização de cada poema, Silvia não se posiciona, como se isso não lhe preocupasse. Ted insiste: “— Você é o tema”. O sujeito confessional e dilacerado está no centro da discussão de toda sua poética, registra suas dores, confessa suas fragilidades, mas não pára por aí. Racionaliza e reelabora essa matéria-prima quando busca uma forma em versos, imagens, sons, cores, lágrimas, gritos, sangue e, compulsivamente, lança-se como flecha em obstinada busca.
Neste sentido, vida e morte entrelaçam-se, mais como problema que como tema, tanto nos textos da poeta, quanto nos outros que vêm sendo produzidos a partir daí, sob diferentes linguagem, desde as variadas leituras críticas, passando pela narrativa cinematográfica, até a ficção contemporânea. Exemplificando esta última, Adriana Lunardi, no conto Victoria do seu livro Vésperas (2002), faz referência à autora de Ariel, através de um personagem, cidadão comum londrino, que reflete sobre a vida ao saber da morte de Sylvia pelos jornais: “Além dos muitos poemas, relata o jornal, Sylvia Plath deixa dois filhos, uma menina e um menino, ainda pequenos. É fácil imaginar que essas crianças logo irão crescer e alcançar a idade que a mãe tinha quando morreu”. Acrescenta, ainda: “em determinado ponto, serão mais velhos do que ela e passarão a enxergá-la com olhos de pais, de pessoas que experimentaram as dores e os impulsos que Sylvia não resistiu, e finalmente a entenderão, apesar de tudo”. Pode ter sido isso que mobilizou a filha Frieda no empenho de publicação. Pode ser isso tudo apenas ficção. Mas seja lá o que for, possibilita-nos hoje o resgate de uma escrita primorosamente elaborada, apesar de tudo, ou, principalmente por tudo.
Ariel, o poema que dá título ao livro, tem um caráter hermético, tenso, que sugere decifração, mas cheio de obstáculos para tal, como muitos outros poemas do livro. Revela-se, entretanto, com uma gama infinita de possibilidades pela força que é empreendida numa dicção alada e sintética. Ritmo e imagens constroem o essencial para estabelecer sentidos provisórios e muitas vezes precários: “Estase no escuro./ E um fluir azul sem substância/ De rochedos e distâncias”. Nas Notas, os organizadores tentam esclarecer: “Escrito no dia do aniversário da poeta (27/10/62). Na peça A tempestade, de Shakespeare, Ariel é o nome do Espírito do Ar; significa ‘leão de Deus’, em hebraico; e é também o nome do cavalo que a poeta costumava cavalgar quando morava em Devon”. A nota é mais ilustrativa do que esclarecedora. Apesar da força de cada palavra e expressão, estas não designam propriamente o que parecem designar. Neste poema, as palavras precipitam-se em saltos, num fluir sem substância, como o sujeito lírico que parece entregue a essa fluidez e, num determinado ponto, projeta-se indo em frente, sem pretensão de controle absoluto para onde, mas assumindo a direção: “E eu sou a flecha.// Orvalho que voa/ Suicida, e de uma vez avança/ Contra o olho.// Vermelho, caldeirão da manhã”.
Ana Cristina Cesar, em um ensaio sobre tradução, comenta: “No poema de Plath a linguagem é algo com valor absoluto. A poeta encontra as palavras no caminho. As palavras são o outro lado da realidade, ingovernáveis, ásperas. Será por isso que elas não designam, não colaboram com o autor nem obedecem a ele?” Ou seja, citando a própria Plath, a linguagem é “um signo puro, que deixou de designar as coisas”. Pelo menos é essa a proposta de toda uma modernidade, cujo fazer poético é antes de tudo laboratório de experimentação da arte e seus artifícios. O paradoxo que tem que ser enfrentado pelos leitores, em especial, pelos tradutores, é como trabalhar neste sentido. Ou seja, considerando a linguagem como um outro lado da realidade, ingovernável e áspera, como talhá-la e submetê-la à forma e ao conteúdo da expressão escrita? A escolha de cada palavra, sua posição no texto, a linguagem numa nova língua são como as rasuras de um poema, que já foram e continuarão sendo feitas, sempre como novas escritas, reescritas. Neste sentido, “tradução é traição”. E sob esse ponto de vista, esta edição bilíngüe abre muitos leques de questionamentos e leituras. Num trecho desse poema, por exemplo: “Nigger-eye/ Barries cast dark/ Hooks”, podemos comparar o trabalho dos poetas tradutores (sim, pois é preciso ser poeta para transitar nos meandros dessas traduções e traições), Rodrigo Garcia Lopes (“Olhinegras/ “Bagas lançam escuros/ Ganchos —”) e Ana Cristina César (”Sementes, /De olhos negros lançam escuros/ Anzóis…”) ao traduzirem o mesmo texto, fazem diferentes escolhas tanto vocabulares, quanto fonéticas e semânticas. Reinventam, portanto, através da tradução um novo poema.
Na leitura do poema Lady Lazarus, o fio biográfico é bem definido: “Tentei outra vez./ Um ano em cada dez/ Eu dou um jeito”. As tentativas de suicídio desse sujeito lírico se esboçam através de imagens associadas à ressurreição. Esse jogo envolve tanto a referência bíblica de Lázaro, como a alusão aos mitos pagãos de Fênix, que renasce das cinzas, ou Dionísio, que se recompõe sempre após cada morte. “Saída das cinzas/ Me levanto com meu cabelo ruivo/ E devoro homens como ar.” Em outro trecho, também do desespero parte-se para a racionalidade: “É o teatral/ Regresso em plena luz do sol/ Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito/ Aflito e brutal:”. O apelo para a dramaticidade trágica vem carregada da convicção da vitória da vida sobre a morte, mesmo que em linguagem teatral, performática. Tudo é arte, artifício, representação, até o suicídio definitivo, que matou a mulher, garantiu a vida e a imortalidade da poeta, “saída das cinzas”. Afinal, “morrer é uma arte como tudo mais”.
Em A lua e o teixo, estes dois elementos vão se construindo enquanto imagens opostas que se complementam entre luz e sombra, barulhos e silêncios e um sujeito lírico impotente em busca de expressão, um corpo que como espectro se movimenta. “A lua não tem porta. É uma face em seu pleno direito/ Branca como o nós dos dedos, terrivelmente incomodada./ Arrasta o mar atrás de si como um crime sujo; está quieta,/ A boca aberta em total desespero. Moro aqui.” Enquanto isso: “O teixo aponta para o alto. Tem forma gótica//… E a mensagem do teixo é escuridão — escuridão e silêncio”. Como a vida, a obra de Sylvia Plath é permeada de sutilezas, escuridão e silêncios, cuja personagem principal é a própria linguagem, ou melhor, a impotência desta em falar da existência, suas paixões, redenções e desesperos.