Suspiros da Espanha

Javier Cercas e Enrique Vila-Matas constroem grandes romances a partir de resquícios da Guerra Civil espanhola
Cercas: personagens secundários de uma tragédia espanhola
01/10/2004

Se por um lado a Guerra Civil é o capítulo mais triste da história espanhola, de outro tornou-se fonte inspiradora para grandes obras literárias, até mesmo para autores estrangeiros como Hemingway. No cenário local, dois livros empolgantes são Soldados de Salamina, de Javier Cercas, e A viagem vertical, de Enrique Vila-Matas. Mesmo com enredos desassociados do campo de batalha, estes dois romances não perdem em intensidade para Por quem os sinos dobram, pois exploram com sensibilidade as conseqüências da guerra não para a Espanha em si, mas para algumas de suas pessoas.

Nem Javier Cercas tampouco Vila-Matas pretendem contar a guerra, mas conseguem transformar em conflitos de relativa profundidade episódios aparentemente sem importância causados pelo combate, mas que tiveram grande repercussão na vida dos protagonistas.

Em Soldados de Salamina, o autor fez a interessante opção de emprestar seu próprio nome ao narrador, o também escritor Javier Cercas, que investiga um fato supostamente real da guerra, o fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas, intelectual fascista fundador da Falange Espanhola, que lutou contra os republicanos espanhóis. Mas Sánchez Mazas escapou dos tiros, sendo descoberto depois escondido no mato por um soldado.

O autor traça um breve panorama da guerra e escreve uma pequena biografia de Sánchez Mazas, que trocou a literatura pela revolução e virou ministro do General Franco. Mas o que interessa mesmo a Javier Cercas é descobrir quem foi o soldado que poupou a vida do importante inimigo, e por que o fez.

É nessa inversão de valores, com o enredo focado num personagem desconhecido, até com um certo detrimento do personagem histórico, que reside a maestria de Soldados… É a partir do principal — Sánchez Mazas — que Cercas vai em busca dos personagens que foram menos relevantes no contexto geral da guerra, até porque a perderam, mas fundamentais num episódio intrigante, aparentemente real, mas carregado de magia. Afinal, por que um soldado que há poucos minutos fez parte de um pelotão de fuzilamento resolve libertar o inimigo que milagrosamente escapou de sua bala, sem lhe dar qualquer explicação, apenas mirando-o com um sorriso juvenil?

É em busca desta resposta que Cercas percorre um caminho histórico, seguindo os passos de Sánchez Mazas, desde a fundação da Falange até o inesperado encontro com o soldado sorridente. Mas neste caminho Cercas nos apresenta aos figurantes da guerra, como os amigos do bosque, republicanos desertores que esconderam e alimentaram Sánchez Mazas até que as tropas de Franco aparecessem para resgatá-lo.

Em paralelo ao enredo de Soldados… está a história do personagem Javier Cercas, um jornalista que como escritor não passa de um razoável jornalista, com um livro fracassado, uma vida familiar frustrada, e sem motivação para encarar o dia-a-dia da redação.

A investigação da história do não-fuzilamento é uma espécie de colete salva-vidas no naufrágio pessoal do narrador Cercas. Sua peregrinação atrás do soldado que encarou Sánchez Mazas no bosque, mesmo depois de já haver confirmado o acontecimento com fontes confiáveis, parece ser uma busca de respostas para si mesmo. Cercas queria saber por que o soldado poupou o inimigo, o que ele pensou naquele momento. Na verdade, suas reflexões mostram que o próprio Cercas busca um porquê na vida, por que escrever, por que ser jornalista, por que viver.

E é depois de passar pelas aventuras e desventuras de Sánchez Mazas, finalmente chegando a um soldado que esteve no não-fuzilamento, que o narrador encontra o melhor de sua história. Velho e solitário, definhando num asilo, o soldado Miralles tem ainda muito para ensinar sobre a guerra. Ele faz Cercas perceber que o combate não é só feito de heróis, de pessoas como Sánchez Mazas ou o soldado que o libertou. Miralles lhe fala de Miquel, Pipo, Joan, Lela, Gordo, Jordi, jovens como ele que foram para o combate quase crianças:

“Desde que a guerra terminou não se passou um só dia sem que eu pense neles. Eram tão jovens… Morreram todos. Todos mortos. Mortos. Mortos. Nenhum provou as coisas boas da vida: nenhum teve uma mulher só para ele. Nenhum conheceu a maravilha de ter um filho nem viveu a maravilha de ter esse filho, com três ou quatro anos, se enfiando em sua cama, entre sua mulher e ele, num domingo de manhã, num quarto com muito sol. Ninguém se lembra deles, sabe? Ninguém. Não há nem haverá jamais uma rua miserável de alguma aldeia miserável de algum país de merda que venha a receber um dia o nome de algum deles. Ah, mas eu me lembro, me lembro de todos. Não sei por que faço isso, mas faço, não passa um dia sem que pense neles.”

O encontro de Cercas com Miralles é recheado de perguntas sem respostas, e respostas sem perguntas. O narrador vai reconstituindo a história, descobre até que Sánchez Mazas havia reconhecido o soldado no momento que este o deixou escapar: era o mesmo jovem que ele tinha visto pouco antes, quando ainda prisioneiro, dançando um pasodoble na chuva, entoando os versos da tradicional canção Suspiros de Espanha.

Ao investigar a trajetória de Miralles, Cercas descobre que este também gostava de dançar o pasodoble, com predileção por Suspiros de Espanha. Mas ao questionar Miralles sobre seus gostos musicais e sua aptidão para a dança, Cercas é surpreendido com um pedido: “Faz muitos anos que não abraço ninguém”, suplica Miralles.

“Ouvi o barulho da bengala de Miralles caindo na calçada, senti que seus braços enormes me espremiam e que os meus mal conseguiam envolvê-lo, me senti muito pequeno e muito frágil, senti o cheiro de remédios e de anos de clausura e de verdura cozida e sobretudo de velho, e soube que esse era o cheiro desditoso dos heróis.”

Em A viagem vertical, o catalão Federico Mayol é também um desconhecido herói da Guerra Civil da Espanha. Mas as lembranças da guerra passam ao largo de sua vida, ou pelo menos de grande parte dela. Empresário de sucesso, com mais de 70 anos de idade, Mayol dedicou sua existência ao trabalho, ao acúmulo de riquezas, e a algumas amantes. Um dia seu mundo desmorona com o pedido de separação feito pela esposa, também com mais de 70 anos, mas com coragem para romper taxativamente um casamento de meio século, pois ela quer partir em busca da própria identidade (“Decidi, nos poucos anos que me restam, descobrir quem sou realmente ou, no mínimo, quem poderia ter sido e não fui.”)

Mayol custa a acreditar na decisão e na coragem da mulher. Busca apoio da filha e dos dois filhos, mas não obtém sucesso, nem do mais velho e preferido que o sucedeu na empresa, nem do preterido Julián, um artista plástico que alega ter tido uma vida anterior na Atlântida e não suporta a falta de cultura do pai. Só resta a Mayol fazer o mesmo que a esposa, tentar descobrir quem realmente ele era. (“Pensou então em sua vida. Não gostava dela, não podia gostar, parecia encaminhada para um péssimo final. Refletiu que talvez a autêntica vida de alguém fosse aquela que a pessoa não leva.”)

A viagem vertical de Mayol começa quando ele descobre-se sozinho. Ou melhor, que há situações na vida em que, mesmo tendo-se várias pessoas ao redor, amigos, familiares, existe um desencontro que condena à solidão. Mayol tenta uma aproximação com o filho mais jovem, mas percebe não haver comunicação entre eles. Julián tenta explicar-lhe seu processo criativo, de como está pensando em pintar um quadro chamado Porto Metafísico, mas os dois não utilizam a mesma linguagem.

Já os amigos só sabem dizer que uma viagem convém nestas horas. Mayol se dá conta que a única saída para a sua vida era praticar tanto a arte da solidão quanto a de caminhar: “O que devo fazer é me preparar para aprender o que a vida realmente é quando ela se apaga e chega a hora da descida.”

Mayol decide ir embora não apenas de casa, mas também de Barcelona, e parte para viver sozinho em Porto. Assim que embarca no avião já é outra pessoa, ou procura ser. Encontra no vôo o time de hóquei do Porto, que perdeu a final da Copa da Europa para Barcelona na noite anterior. Finge ser um jornalista para saber como se sente uma equipe após ser derrotada numa partida importante.

Ainda em viagem para sua nova vida, Mayol aprende uma grande lição. Descobre que os jogadores do Porto foram agredidos por torcedores adversários num jogo contra o Benfica três dias antes. Que três titulares estavam ainda no hospital e que o time queria vencer a Copa da Europa para dedicar a eles a vitória. E que estavam tristes não por perder a Copa, mas por não poderem oferecer a conquista aos feridos. (“Como tantas vezes na vida, há sempre um segundo drama oculto, muito mais sério que o primeiro.”)

Mayol começa a descobrir seus dramas ocultos. A guerra o impediu de ir para a universidade. Quando voltou da batalha, teve que trabalhar duro, mas dedicou-se muito e tornou-se um bem-sucedido empresário do ramo de seguros. Teve tudo na vida, menos cultura, como afirmava o filho mais jovem. A última conversa com Julián o fizera perceber que esse era seu drama oculto por trás do drama aparente de ter sido expulso de casa pela mulher. Chegando ao hotel, Mayol sentiu uma necessidade urgente de enviar um telegrama ao filho, no qual escreveu em letra falhada:

“Quero que saiba meu bom pintor de quadros metafísicos, que há vidas tão sossegadas que a simples adoção de uma implicância leva a uma mudança de caráter. Minha vida, como sabe, era sossegada. Mas a grande implicância que adotei contra você desde que cheguei ao Porto fez com que eu mudasse de caráter.”

A partir daí, Mayol se perde em andanças pelo Porto e Lisboa, até que vê imagens da Ilha da Madeira na televisão e decide embarcar para lá no dia seguinte, sem saber o porquê desta decisão. Nesta hora aparece mais acentuadamente o narrador do romance, que mais tarde se revela uma pessoa conhecida de Mayol e também personagem do livro.

Na Madeira mora Pablo, um sobrinho que Mayol sem saber havia quase encontrado por caso no Porto alguns dias antes quando os dois circularam pelas mesmas ruas e mesmo bares. Na Madeira, Mayol descobre seu próprio Porto Metafísico. Tenta fazer-se de intelectual, mas sua fraude é logo descoberta. Mas um dia passa emr frente da Universidade da Madeira e resolve entrar para assistir a uma sessão de palestras. Começa a mergulhar em todos os assuntos como uma criança ávida por aprender. O último palestrante fala de Atlântida, o continente desaparecido. Ao final da exposição, Mayol tem vontade de escrever para Julián e dizer que ele é que é de Atlântida, e não o filho.

A viagem vertical é um romance portentoso, em que temas delicados como a velhice e a proximidade da morte são tratados de forma hábil. A transformação a que Federico Mayol submete-se é uma inspiração contra a imobilidade. Sem querer fazer discurso de auto-ajuda, Vila-Matas mostra por meio de seu personagem que mesmo uma viagem ao fundo do poço tem volta, por mais pesado que seja o balde.

Tanto Javier Cercas como Henrique Vila-Matas dão provas de que a boa literatura ainda tem fôlego. E o fazem com texto refinado, enredo imaginativo e personagens bens construídos. Se a Guerra Civil será sempre uma mancha de sangue na história, Soldados de Salamina e A viagem vertical são suspiros da Espanha.

Ay de mi
Pena mortal
Por qué me alejo
España de ti
Por qué me arrancan
De mi rosal
Quiero yo
Volver a ser
La luz de aquel rayito de sol
Hecho mujer
Por voluntad de Dios
(trecho de Suspiros de España, canção de Álvarez Alonso e Álvarez Cantos)

Soldados de Salamina
Javier Cercas
W11
241 págs.
A viagem vertical
Enrique Vila-Matas
Cosacnaify
256 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho