Suspense, caçada e inteligência

A arqueóloga medievalista francesa Fred Vargas caminha com extrema competência pelo romance policial
Fred Vargas tem o talento excepcional de nos conduzir a erros de raciocínio
01/02/2005

Com relação à literatura francesa eu sou um chato mais chato do que a própria. Não suporto nada do que foi escrito na língua de Balzac nos últimos cinqüenta anos. Minto. Exagero. Gosto de Michel Houellebecq. Mas acho que é só. Se há um outro nome, ele me escapa agora. Compartilho daquela opinião de que a literatura francesa se acabou quando o pensamento acadêmico tomou conta da indústria editorial. Frases arrastadas, investigação psicológica, existencialismo radical — nada disso me agrada. Me dá sono, apenas, mas para dormir eu prefiro um Lexotan.

Os franceses, aliás, sempre me pareceram esnobes quando o assunto é literatura. Brasileiro adora ser elogiado em francês e ainda residem aqui abaixo da linha do Equador francófilos verdadeiros que acham que os esgotos de Paris fedem melhor do que o nosso. Não é à toa que a nossa literatura caminha para a mesma falência, com os mesmos sintomas e causas, sem que ninguém perceba ou se importe.

Fico apenas rezando para que, daqui a cinqüenta anos, surja no Brasil um Michel Houellebecq ou então uma Fred Vargas, autora dos ótimos Fuja logo e demore para voltar e O homem do avesso, ambos editados pela Companhia das Letras. A autora de romances policiais, que também é arqueóloga medievalista, é tão boa que nem parece francesa. Sua prosa não tem nada de rococó. Para entender suas frases, não é preciso um dicionário de filosofia. Tudo em Vargas é claro e interessante. E seu personagem principal, o delegado Jean-Baptiste Adamsberg, é mais um representante desta novíssima safra de detetives que fazem uso da intuição em vez da lógica. Um alento para nossos quentes espíritos latinos.

Pode parecer pouco, mas não é. O que fascina e repudia nos romances tradicionais do gênero é o apego à lógica, tão presente em Doyle e Agatha Christie. Já com o francês George Simenon, ainda na primeira metade do século 20, este apego cedeu lugar ao humanismo de Maigret. Se por um lado a investigação perdia um pouco da graça, por outro o livro ganhava em beleza, já que tínhamos um personagem muito mais bem construído do que os caricatos Poirot e Sherlock Holmes. Depois a lógica cedeu lugar à violência, com o predomínio do romance noir que, apesar do nome, é marcadamente americano. E agora.

Agora, para a felicidade dos amantes dos romances policiais, os escritores têm se esmerado tanto nos crimes quando nos detetives. Isto é, tanto no caçado quanto no caçador. Adamsberg não tem nada de Sherlock e muito menos de Maigret. Na verdade, eu não encontro comparação para este homem em nenhum lido policial já lido. Porque Adamsberg chega a parecer esotérico, de tão intuitivo que é. E não! Isto não é um defeito.

Fuja logo e demore para voltar, o primeiro livro da autora publicado no Brasil, não é, a rigor, um romance policial. Porque a arqueóloga medievalista acaba se impondo, transformando a história muito mais num romance de enigma do que num romance de caça propriamente dito. Quero dizer, estão lá o assassino, os crimes, os vestígios, a investigação, o mistério e a punição. Mas o que chama a atenção do leitor é, sem dúvida, a motivação histórica, digamos assim, para tamanha carnificina.

A história gira em torno de um misterioso assassino obcecado pela peste negra. Por meio de bilhetes que são lidos em praça pública por um anacrônico pregoeiro, o maníaco avisa que a peste está chegando. As mortes começam a se suceder e o pânico se alastra por Paris. Os intelectualizados franceses cedem à superstição de todos os amuletos possíveis contra a peste. O detalhe é que os cadáveres, apesar de picados por pulgas de rato, são mortos por estrangulamento.

Melhor do que falar do crime é se deter sobre a personalidade de Adamsberg. Ele é um homem estranho, para dizer um mínimo. Não se veste bem e não parece ser bonito. Não é nem especialmente inteligente e, quando fala, as pessoas tendem a pegar no sono, de tão chato que é. Mas é competente. E desvenda os crimes sempre a partir de um insight. Na verdade, ele apenas parece destinado a desvendar aquele mistério, qualquer mistério. Cumpre o seu papel.

O livro é marcado por um suspense constante. O leitor vai se sentir sufocado com o tanto de pistas que se acumularão até quase o fim, sem que o mistério seja elucidado. Ou sem que Adamsberg tenha o seu insight. Mas é recompensado com uma das mais desconcertantes reviravoltas que eu li recentemente. De deixar qualquer um de queixo caído mesmo.

Já no recém-lançado O homem do avesso, Adamsberg está à margem dos acontecimentos em boa parte do livro. É que os crimes acontecem na costa mediterrânea, longe de Paris. Convém alertar o leitor: é mais prazeroso ler O homem do avesso depois de Fuja logoNão que os livros tenham qualquer tipo de interseção indispensável. É que eu percebo que em romances cujos personagens são recorrentes convém seguir a ordem de publicação, porque o livro anterior sempre dará mais subsídios para se compreender este ou aquele gesto. Preciosismo? Talvez.

O livro conta a história de um… lobisomem. Isto mesmo: lobisomem. Mas não tem nada a ver com aquelas histórias folclóricas tão ao gosto dos modernistas brasileiros. O lobisomem aqui é um ser comum de uma aldeiazinha francesa. Tudo começa com sucessivos ataques aos rebanhos de ovelha, atribuídos a um lobo das redondezas. Só quando surge o primeiro cadáver humano é que as coisas começam a fugir do aspecto natural.

Neste romance, o personagem mais interessante é Camille, a ex-namorada de Adamsberg, à qual somos apresentados em Fuja logo Se Adamsberg é um enigma, um homem quase sem caráter nem princípios, mas nem por isso mau, Camille não deixa por menos. Ela é uma mulher fugidia, que se entrega sem se entregar, que tem uma espécie de fetiche pela fuga. Excêntrica, é compositora e encanadora, mas já trabalhou até como caminhoneira. Enquanto Adamsberg dá a impressão de ter sido ligada numa tomada de baixíssima tensão, Camille está sempre em 220v. Não poderia, pois, haver casal mais estranho e problemático.

O homem do avesso é um policial bastante diferente. Porque o leitor sabe, desde o começo, o nome do assassino. Ele, o leitor, é levado pela escritora a conhecer as estradas secundárias do sul da França, na caça ao lobisomem. Trata-se de um road-book e um genuíno livro de caçada. A história parece estar fadada a uma inusitada volta ao mundo, até que aparece ele, Adamsberg. Aí a coisa muda totalmente.

Fred Vargas tem o talento excepcional de nos conduzir a erros de raciocínio. Ela manipula muito bem as histórias. Já seria mérito suficiente, mas ainda tem Adamsberg e Camille, uns personagens monstruosos pelas suas contradições e pela sua humanidade. Mas ainda tem mais: Fred Vargas é uma perita em compor personagens secundários extremamente interessantes. Em Fuja logo o pregoeiro é também um marinheiro cheio de ressentimentos e o literato não é só um homem apaixonado por livros; ele também faz guardanapos de renda. Em seu O homem do avesso Camille sai em busca do lobisomem na companhia de Soliman, um negro que foi abandonado e que vive lendo verbetes de dicionário e contando histórias inventadas de uma África que desconhece, e o Velador, um pastor com jeito de eremita e com aquela deliciosa sabedoria do homem do campo.

Ao terminar os dois livros, eu fiquei só matutando: Fred Vargas é arqueóloga medievalista. Deveria, portanto, estar escrevendo livros chatos destinados ao pó das bibliotecas acadêmicas e ao sono dos estudantes. Mas ela resolveu escrever romances policiais. Aqui no Brasil, isto seria considerado um degrau abaixo. Será isto uma espécie de ilusão de ótica nacional? Parece-me que os valores literários acabaram mesmo se invertendo. Sorte de quem ainda consegue captar a beleza de um livro de caçadas, quem não se deixou corromper pelos bocejos esnobes da literatura dita séria, que, no entanto, só me faz rir.

Fuja logo e demore para voltar
Fred Vargas
Companhia das Letras
344 págs.
O homem do avesso
Fred Vargas
Companhia das Letras
301 págs.
Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho