Com rara freqüência, vemos no Brasil aquilo que Vicente Franz Cecim situa como “a literatura praticada como ontologia, a palavra praticada como vida”, ao referir-se à poética de outro brasileiro, Fabrício Carpinejar. Nas edições de número 30 a 32 deste Rascunho se deu guarida a uma série de anotações críticas de Nelson de Oliveira em torno do Surrealismo que bem poderiam ser comentadas à luz dessa defesa poética partilhada por Cecim e Carpinejar. Oliveira prende-se a um surrealismo de escola, datado, estático, sequer atentando para a ambigüidade do próprio termo a que recorre para titular suas reflexões: “a miragem surrealista”, por ele empregado no sentido de algo enganoso, deixando passar a conotação de uma revelação fantástica, no que pese o fato do adjetivo encontrar-se ainda carregado de certo capricho por conta do Realismo Fantástico que surge também como uma maneira de apropriar-se do Surrealismo rejeitando-lhe.
É naturalmente legítima a defesa que faz Oliveira de seus argumentos, ou seja, não ponho em dúvida que ele acredite, com todas as forças, naquilo que expõe e que claramente o aproxima de opiniões defendidas por Maurice Nadeau e Jean Schuster, o primeiro citado por ele, o segundo decerto desconhecido ou não relevante em seu auxílio. A visão historicista de que estavam impregnadas atitudes e declarações de Schuster tem sido duramente combatida por todos aqueles que compreendem que o centro da questão não é a discussão em torno da datação, mas antes a legitimidade de um vínculo entre poética e rebelião que propicia o Surrealismo, e aqui recorro a uma observação do argentino Juan José Ceselli, ao dizer que “o surrealismo não é uma retórica que se aprende mas antes constitui uma posição natural do indivíduo diante da vida”. Em recente entrevista que fiz ao também argentino Víctor Chab, o artista observou estar de acordo comigo “em que o limite que Jean Schuster estabelece entre o surrealismo histórico e o eterno — com a morte de Breton — é uma violência golpista e arbitrária e totalmente desnecessária”, concluindo que a mesma “carece de fundamento teórico”.
De tal maneira que não cabe, como se pode perceber nas entrelinhas dos ensaios que tem escrito a respeito do tema o poeta Claudio Willer, separar poesia e rebelião, no sentido de promover uma interrupção entre vida e arte, que só poderá ser visto como um retrocesso. Em conversa com Willer, ele cuida de aclarar: “toda vez que trato do assunto uso duplos títulos, como Surrealismo e imagens poéticas, ou triplos, Surrealismo, rebelião e imagens poéticas, com o que mostro que o que importa são imagens poéticas e rebelião, e o surrealismo, na medida em que é expressão ou representação disso, além do que fujo de uma discussão que leva, obviamente, a um beco sem saída”.
Entre as anotações de Nelson de Oliveira — que curiosamente buscam (des)ambientar o Surrealismo da cena cultural brasileira e portuguesa — há uma que pode explicar rapidamente a raiz de seu equívoco, quando diz, referindo-se a alguns poemas de Cesariny de Vasconcelos, Pedro Oom e António Maria Lisboa, que “são tão contundentes, tão belos, tão bem resolvidos esteticamente que resistem por si sós, sem a necessidade de uma etiqueta: poesia surrealista”. Não me lembro de nenhum momento em que Breton, por exemplo, se preocupasse com uma etiqueta para seus poemas. Breton considerava a poesia “o terreno onde se tem a maior probabilidade de resolver as terríveis dificuldades da consciência com a confiança, em um mesmo indivíduo”. Não sendo uma escola, a grande dificuldade no Surrealismo tem sido justamente a identificação do que de fato seja surrealista. E em nome dessa aparente dificuldade é que muitos falsários se aproximam do Surrealismo e outros tantos observadores lhe torcem o pescoço.
Há dois ângulos complementares na observação do que se poderia chamar de desdobramentos do que, já em 1924, Breton dizia tratar-se de uma aventura que “se propõe a reunir o maior número possível de dados experimentais, para um fim que ainda não se pode dizer”. Refiro-me a uma compreensão individual daquilo que o argentino Ceselli chama de “elemento mágico que se encontra em toda obra de arte” e a necessidade de “levá-lo até suas máximas conseqüências”, e da possibilidade dessa compreensão ser compartilhada por poetas e artistas em uma mesma conjuntura espaço-tempo. A discussão em torno de existência ou não do Surrealismo em um país, por exemplo, torna-se ingênua a partir do momento em que o próprio Surrealismo se insurgia contra toda modalidade de nacionalismos. A partir daí se poderia inclusive recriminar o surrealismo à brasileira de um Murilo Mendes ou a atitude de isolamento do chileno Vicente Huidobro.
Talvez possamos compreender um pouco o assunto se nos reportarmos a algumas declarações do artista Carlos M. Luis a respeito da inexistência de Surrealismo em Cuba. Luis recorda que os integrantes do grupo Orígenes, incluindo Lezama Lima, viam o Surrealismo “como coisa demoníaca, como rebelião prometéica, mesmo que paradoxalmente eles também se acreditassem prometéicos”. Observa ainda que, ”com o surrealismo havia que aceitar uma nova re-interpretação das coisas, partindo da base do sonho que não se limitava à própria poesia e isto os origenistas não aceitavam”, logo concluindo que os poetas do grupo Orígenes “rejeitavam todas as grandes correntes que abriram novos caminhos à interpretação da realidade: a psicanálise, o surrealismo, o marxismo-humanista, o existencialismo em sua primeira fase etc.”.
O que se passou em Cuba de alguma maneira podemos observar no Brasil e em Portugal, territórios escolhidos por Nelson de Oliveira para suas observações a respeito do Surrealismo. A perspectiva ontológica a que se refere Franz Cecim, por mim citado logo no início, não encontrou tantos adeptos no Brasil nem mesmo se relacionado com Portugal. Um cristianismo exacerbado, fortalecido pela influência, naquele momento, de um Paul Claudel, embaralhou os sentidos de mudança e perpetuidade nos jovens que formavam, em Cuba, o grupo Orígenes. Já no Brasil, bem antes — em Cuba falamos de anos 50 —, quando se buscava fundar uma modernidade, a grande preocupação era de cunho nacionalista, o que explica a rejeição ao Surrealismo. Em nome desse pretenso nacionalismo houve uma distorção imensa, dentre outras coisas, dos princípios defendidos pelo Surrealismo.
Já em Portugal, não vejo nada melhor do que reproduzir uma declaração de Cesariny, no sentido de que “o surrealista não é um mártir da ciência ou de qualquer outro mito aceite pela sociedade dita organizada, nem um combatente pago (ou não-pago) para servir ordens emanadas de qualquer partido ou organização mais ou menos política ou filantrópica”. Talvez caiba dizer que no Brasil o grupo surgido a partir de Sérgio Lima não tenha sabido aglutinar-se de maneira tão vistosa quanto no caso português. A percepção da linguagem como um vírus — defendida por um beatnik como William Burroughs, por exemplo, não era aceita entre nós. Burroughs antecipara-se ao que não conseguimos reter: a manipulação da linguagem levada a termo pelo Concretismo, confirmante de um neokantismo que aprimorava uma tradição brasileira absolutamente refém da razão, cujo choque térmico — considerando a alta voltagem de nossa mestiçagem — tem gerado um mal-entendido em que não cabe, senão como sofisma, aquela idéia do Cecim de uma “palavra praticada como vida”.
Um livro de leitura indispensável para quem deseja saber algo a respeito do Surrealismo em Portugal é A única real tradição viva (Assírio & Alvim, 1998), de Perfecto E. Cuadrado. Ali se pode, dentre outras coisas, comprovar que as dissensões e polêmicas internas não foram senão fruto de um grande número de fortes personalidades e algo bastante comum ao Surrealismo em vários países, inclusive a França. Cuadrado refere-se ao movimento português como uma “manifestação particular do vasto movimento surrealista internacional”, não deixando dúvida quanto ao caráter policêntrico do Surrealismo.
Outro aspecto bom de se observar, e que vem em auxílio do que defendo aqui, encontramos em uma afirmação de Cesariny, de 1949, quando situa que a posição surrealista daqueles poetas e artistas portugueses decorria, dentre outras fontes, “de uma vida de imaginação” e “de um certo poder de repulsa e de obstinação”. Esta união permanente entre rebeldia e poesia é o que leva Perfecto E. Cuadrado a concluir que o Surrealismo em Portugal se caracteriza como “uma irrupção fulgurante e uma intervenção decidida — breve, apaixonada, agitada, amplamente polêmica — que viria a supor uma rajada de ar fresco no panorama da arte e da literatura portuguesa da época”.
No decorrer da veiculação das reflexões de Nelson de Oliveira se publicou no Brasil a tradução de A estrela da manhã (surrealismo e marxismo) (Civilização Brasileira, 2002) de Michael Löwy. O autor menciona a necessidade de discutir “um surrealismo que não é nem eterno nem historicamente terminado, mas atual”, aclarando a defesa de uma atualidade dinâmica, inovadora. Há um plano em que se mesclam poesia, filosofia e política, por exemplo, em que não se pode ausentar a presença quando menos provocativa do Surrealismo. Löwy aponta muito bem os abismos decorrentes dessa equívoca observação de uma limitação do Surrealismo a um “papel histórico” — como salienta Nadeau e segue Oliveira —, concluindo de forma instigadora um livro bastante lúcido no tratamento do tema: “o surrealismo é também, como a feitiçaria, a pirataria e a utopia, um caso de imaginação criadora. Como os cangaceiros, os bandidos de honra dos sertões brasileiros, os surrealistas estão condenados a inovar: as estradas consagradas, os velhos caminhos, as trilhas batidas estão nas mãos do inimigo”.
E aqui acrescento uma observação de Claudio Willer, em nossas conversas constantes: “realmente, o que interessa é rebelião, contestação da ordem estabelecida e, por extensão, do status quo literário, e a contribuição surrealista a isso”, em seguida situando que “mapeamentos bons são aqueles amplos, a exemplo do que fez Andrade Muricy em relação à presença do Simbolismo no Brasil, ou seja, os que revelam algo, que acrescentam, trazem mais informação, e não os que circunscrevem, delimitam”.
Evidente que as observações ajuntadas até aqui não tornam o Nelson de Oliveira um inimigo do Surrealismo — até mesmo considerando a voltagem de sua prosa poética —, mas antes de tudo um leitor apressado, em algo padecendo da influência do efeito sobre a causa, uma recorrente inversão de valores de uma cultura — a brasileira —, em que os rasgos não são aceitos senão sob medida, em que todo o devaneio deverá encontrar uma razão de ser, ainda que seja à luz da poesia, claro, a poesia segundo o racionalismo de turno. O que torna ainda mais sem sustentação a rejeição de Oliveira à existência de Surrealismo no Brasil e em Portugal é o depoimento de poetas como Roberto Piva e Sérgio Lima ou Cesariny de Vasconcelos e Cruzeiro Seixas, que a seu tempo enfatizaram a ligação com o Surrealismo.
Qualquer que seja o nome dado ao assunto, voltamos ao ponto de partida, no dizer de Franz Cecim, ou seja, de que necessitamos de uma “literatura praticada como ontologia”. Discutir apropriações conceituais é uma forma de alienação progressiva. Não cabe o registro pontual de atas, manifestos, adesões, senão como material de pesquisa destinado às teses inócuas que definem uma visão acadêmica de mundo. Perde-se assim a idéia do espontâneo, do que não cabe definir-se e justamente por uma intensidade de percepções. Esse objeto inclassificável é o que norteia a busca de mais realidade no Surrealismo. Encerro essas observações, confesso, sem compreender os motivos de Nelson de Oliveira, aparentemente desconhecedor de abordagens anteriores às suas que já foram devidamente contestadas em diversos países.
Por último, recordo mais uma passagem de minhas conversas com Willer, quando observa que é ingênuo delimitar todo e qualquer movimento, pois “todos tiveram zonas cinzentas”. Isto parcializa a visão de Surrealismo do Nelson de Oliveira e torna quando menos precária a discussão em torno do assunto. Por trás dessa cortina da rejeição ao Surrealismo segue imperando toda uma tradição brasileira que necessita ser aclarada e discutida. Talvez pudéssemos dar entrada na matéria, aqui mesmo no Rascunho, e com a presença do Nelson de Oliveira, partindo da Semana de Arte Moderna e seus antecedentes.